quarta-feira, 30 de maio de 2012


Egberto Fernandes de Aragão
Nota Biográfica (Digitado, 10/2005)



Egberto Fernandes de Aragão nasceu na cidade de Conquista, hoje Vitória da Conquista, em casa na Rua Grande, hoje Praça Tancredo Neves, sítio mais antigo da localidade.
Em 30 de outubro de 1936, data do nascimento de Egberto, Conquista não tinha grande expressão. Sequer possuía escola com curso secundário. A principal praça da cidade, onde residiam seus pais, era pouco arborizada e sem atrativos, exceto a arquitetura de algumas poucas casas.
Egberto é filho de Guilherme Felipe de Aragão, português, caixeiro-viajante que aportou na cidade com dois outros irmãos, Leandro e Norberto, e de Ana Angélica Fernandes de Aragão, de tradicional família conquistense.
Os primeiros anos de escolaridade, Egberto passou na Escola da Professora Helena Cristália e cursou ginásio no Instituto de Educação Euclides Dantas, em Vitória da Conquista, Bahia, e estudou por algum tempo em Teófilo Otoni, Minas Gerais.
Aos doze anos de idade, Egberto fez suas primeiras pinturas. Adolescente, já era considerado pintor pelos jovens amigos.
Em sua adolescência, Egberto era leitor assíduo de romances e poesia e dizia encontrar aí elementos da pintura. Foi ele, indubitavelmente, o introdutor da pintura surrealista em Vitória da Conquista e, igualmente, o iniciador do fazer pintura não por diletantismo, mas com apuro e busca constante de aperfeiçoamento. Seus ensinamentos marcaram profundamente a pintura de Geraldo Rocha, promissor artista prematuramente falecido, e de Adilson Santos, prolífico pintor figurativo, nacionalmente reconhecido.
Avesso a exposições e à comercialização de seus quadros (evitava mesmo curiosos de sua arte), Egberto não se tornou pintor conhecido, mas isso em nada obscurece a importância de seu trabalho artístico e de sua influência, que propõe maior admiração por força do meio, ao tempo desestimulador, onde passou fase de auto-aprendizagem. Poucas de suas telas encontram-se em poder de terceiros.
Em 1967, Egberto uniu-se a Valdenir Pereira de Jesus, sua companheira a partir de então até o restante de seus dias, com a qual teve os filhos Laudiê Pereira de Aragão, Marco Antonio Pereira de Aragão e Itamar Pereira de Aragão.
O pintor faleceu em 01 de junho de 2005.
De 21 até 31 de outubro de 2005, o Museu Regional da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia rende-lhe homenagem com exposição de quadros de sua autoria – “A Pintura Fantástica de Egberto Aragão”.
(Ruy Medeiros)

LEGISLAÇÃO COMO FONTE DA HISTÓRIA
O JURISTA E O HISTORIADOR.




Ruy Medeiros(Digitado, 09/2005)




“Como poderia considerar-se honesto e sincero o historiador que ocultasse algum documento encontrado em suas pesquisas? Se tal fizesse era que não procurava lealmente a verdade, mas, desprezando-a, apenas pretendia vestir com as aparências dela o preceito que o levara à improbidade da tarefa” (Alfredo de Araújo Lopes da Costa – Direito Processual Civil Brasileiro – 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959, vol. 3, p. 193).


Lex (latim), nomos (grego), law (inglês), gesetz (alemão), lei (português), ley (espanhol), loi (francês).... A primeira questão que o tema propõe é a seguinte: A lei é fonte de direito ou fonte da História?

O operador do direito não tem dúvida de que a lei é fonte do Direito, isto é, uma das formas como o Direito manifesta-se: expressão de um dever ser. Aquele profissional opõe lei (regra, norma) a documento (meio de prova), mas pode conceder-se o direito de falar e escrever “documento legislativo” para significar lei. O objetivo do operador do direito é o de preencher de significado normativo o enunciado legal (interpretar) e aplicá-lo. Às vezes ele, no seu mister, necessita de verificar a evolução legislativa, quer para fixar sentidos, quer para verificar revogação. A lei aparece aos olhos do operador do direito como fonte, porém fonte de normatividade.

Houve momento em que o debate quanto à interpretação entre os juristas cingia-se a buscar a voluntas legislatoris (vontade do legislador) ou a voluntas legis (vontade da lei). Aqueles que buscavam encontrar na lei, para interpretá-la, a vontade do legislador entendiam ser necessário que se pesquisasse o momento histórico (“método histórico”) da elaboração da lei, ou da finalidade para a qual esta fora criada (“método teleológico”), porém sempre em busca do sentido da normatividade. Havia, em tais buscas, - é evidente – contato com a História.

Mas hoje os estudiosos do direito tendem a entender que há diferença entre o enunciado da norma e a norma propriamente dita, isto é, o enunciado devidamente interpretado. Só há norma quando o enunciado é interpretado, pois a interpretação é que preenche de conteúdos significativos o enunciado. E a hermenêutica jurídica ficou renovada. O método lógico-sistemático passou a incorporar a idéia de sistema aberto, houve surgimento da tópica, alguns postulados (princípios) interpretativos surgiram sobretudo para as especificidades da Constituição (como o método concretizante, por exemplo). Mas essa não tem sido a visão do historiador.

Para o historiador, a lei é também fonte de direito, mas é sobretudo, documento informativo. Sua interpretação como fonte encontra múltiplas possibilidades: História da Política ou do poder, História da Família, História da cidade, História da Educação, História das mentalidades, etc, etc.

A crítica do documento, inclusive do “documento legislativo” pelo historiador evoluiu de forma diferente daquela da história da hermenêutica jurídica. Com o positivismo, a crítica era o passo necessário e o historiador previamente deveria solucionar: o documento encontra-se no mesmo estado em que foi produzido? Foi danificado? Como foi fabricado? É parte de outro texto? Qual o seu texto original? É falso? É verdadeiro? (crítica externa) Que quis dizer o autor do documento? Tinha condições de dizê-lo? Acreditou naquilo que disse? Por que acreditou? (crítica interna). Com operações para utilizar o documento, o historiador positivista buscava reconstituir o fato. Sua história era a história factual. Buscava o fato, não a norma. O documento valia por si mesmo, inclusive isoladamente.

Depois os historiadores, criticando acerbamente a história na visão dos positivistas, sua visão de fontes e a forma de utilizar os documentos, evoluíram no sentido de alargar o conceito de fonte e o conceito de documento. Documentos que não eram privigeliados (inventários, testamentos, estatísticas, etc) passaram a sê-lo. No âmbito da expressão documento entraram fotografia, filme, fita magnética, etc.

A “crítica” (mais que a velha diplomática) dos historiadores modernos passa por outras considerações: O documento pertence a uma série? E qual a série anterior? Qual sua série posterior? Há coerência com documentos da mesma espécie? Qual o propósito do documento? Qual o seu sentido? Por que silenciou sobre fato? Há sentido na omissão? Há fórmulas repetidas? Por quê?

Ora, a nova “diplomática” dos historiadores não pode distinguir crítica interna de crítica externa porque ambas estão indissoluvelmente vinculadas. O documento falso tem valor para determinados usos, não é descartado, por exemplo. Ele, no contexto de uma série, tem o sentido determinado por esta. À medida que o historiador atual faz crítica interna, procede igualmente àquilo que era chamado crítica externa. O processo é uno.

Agora, o historiador não se preocupa apenas com a dimensão do fato (este mesmo passa a ter outro tratamento), mas com processo, mentalidade, cultura, identidade, relações étnicas, gênero, estado civil, classes, economia, poder, longa duração, etc, etc.

A superação do positivismo, a ampliação do conceito de documento (documento/monumento) e o surgimento de novos objetos da História terminaram por exigir do historiador novos métodos. Mas seu objetivo é outro, não é o objetivo normativo do jurista. Sua crítica documental é diferente da crítica do jurista, assim como seu método e, evidentemente, seu objeto (desnecessário dizer).

É evidente que o diálogo entre ambos é possível e necessário, mesmo que a hermenêutica e o objetivo sejam diferentes.

Não resta dúvida de que a lei (conjunto de enunciados dos quais se extrai norma) é fonte da história: documento-monumento. Seu uso merece os cuidados da hermenêutica documental. Embora não se possa falar da hierarquia documental, o texto de lei adquire importância muito grande face a alguns objetos da História. Veja-se a História do Estado, por exemplo.

Cumpre, portanto, além do rigor que a Ciência da História alcançou no trato com os documentos, certos cuidados em não transformar a História da Educação numa História da Legislação Educacional ou percebê-la apenas em função das forças materiais e ideológicas (inclusive doutrinas pedagógicas) motivadoras do aparecimento da lei.

A lei é um dado essencial da realidade, inclusive da realidade histórico-educacional.

Não se pode, como claramente aparece em certos textos, confundir a lei existente com a realidade. Também, a título de “protesto contra o passado”, negar a eficácia da Lei para moldar relações. Já houve historiador que afirmasse que a Lei de 15 de outubro de 1827 não foi aplicada. Ora, não foi integralmente aplicada e em algumas vilas, no rastro dessa lei, surgiram escolas para meninos, e são erros de quem não faz pesquisa em arquivos, ou daqueles que se apressam a afirmar ou a negar, confundir níveis e espaços de eficácia.

A linguagem da lei exige colaboração entre juristas e historiadores. Como o jurista, sem auxílio da pedagogia, iria entender a expressão ensino mútuo que há na Lei de 15 de outubro de 1827? (Art. 4º. As escolas serão de ensino mútuo nas capitais das províncias; e o serão também nas cidades, villas e logares populosos dellas, em que for possível estabelecerem-se). Trata-se no caso (ensino mútuo) do “Método de Lancaster”. Como o historiador da educação ou o pedagogo historiador iria entender a expressão “exercício consciente da cidadania” que há na Lei 5.692, de 11 de agosto de 1971? (Art. 1º. O ensino de primeiro e segundo graus tem por objetivo geral proporcionar ao educando a formação necessária ao desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de auto-realização, qualificação para o trabalho e preparo para o exercício consciente da cidadania). O historiador ficaria atônito com o fato de a ditadura militar ser tão cínica a ponto de dizer o que hoje muitos democratas dizem: Educação para a cidadania. Mas o jurista iria evidenciar que cidadania é princípio e que estes são lidos de forma aberta e atualizável em cada momento. Para a fixação do sentido de princípios desenvolve-se pugna interpretativa entre operadores e a ideologia penetra necessariamente o debate.

O diálogo entre operadores do Direito e Historiadores da Educação é algo necessário – quando se trata de utilizar documentos normativos como fonte da História. Ninguém de bom senso e rigor, ao escrever, por exemplo, a História da Educação no Brasil, pode deixar de utilizar crítica e contextualmente as leis nacionais e estaduais. Mas se é certo que para entender expressões como método de ensino mútuo, ensino técnico, ensino científico, jubilamento, pré-requisito de disciplina, núcleo comum, aceleração, educação sistemática, educação seriada, ciclo, etc, o jurista necessita do pedagogo ou do historiador da educação, estes necessitarão do jurista para entender significado de diretrizes legais, normas gerais, preceitos, regras, princípios, normas cogentes, validade, eficácia, competência legislativa, etc. Nenhum saber é isolado, muito menos os saberes do pedagogo e do jurista, especialmente em História da Educação e Direito Educacional.

JORNAIS CONQUISTENSES DO PASSADO

“O Combate sem o seu fundador”



Ruy Medeiros.(Digitado, 05/2006)




Em edição comemorativa de vinte anos de “O Combate” (11 de agosto de 1949), Camilo de Jesus Lima, em trecho de longo artigo diz que “Ninguém sabe, do lado de fora, o que é a luta desigual e titânica de um homem pobre e honesto que mantém por vinte anos – uma vida – um jornal, no interior do Estado. Quanta prudência, quanta tolerância e ascetismo são precisos para tal tarefa! O que é regabofe e negociata para os Chatôs, é, para o jornalista honesto do sertão, uma série de amarguras e prejuízos, de horas carregadas de luta econômica e moral, dignas de um romance”. E assim foi com Laudionor Brasil, fundador daquele jornal.

Laudionor, nascido em 13 de fevereiro de 1902, filho de Manuel de Sena Brasil e de Henriqueta Soares Andrade Brasil, faleceu em 14 de março de 1950, deixando viúva D. Áurea Celina Brasil, e filhos Alda Volúsia, Sônia, Athene, Solange, Valdinice, Nadir, Wladimir, Waldo. D. Áurea estava grávida e Laudionor não chegou a ver o último filho que gerara e que ganharia o seu nome – Laudionor. Ao tempo, o jornalista era secretário do Diretório local do PSD e da Prefeitura Municipal. Desaparecia com 48 anos de idade.

Se com o experiente chefe era difícil a manutenção do jornal, fundado em 1929, imagine-se o que deve ter sido para a família movimentar a gráfica e o semanário. “O combate” teimou em viver. D. Áurea Celina, auxiliada por Dr. Raimundo Oldegar Azevedo, que já era redator-gerente do jornal, continuou a editá-lo. Em agosto de 1950, Bruno Bacelar é redator junto a Raimundo Oldegar Azevedo, tendo como gerente Claudionor Brasil. O semanário, continuara a apoiar Regis Pacheco, em sua política local e em sua candidatura ao Governo do Estado pela Coligação Democrática (PSD, Ala Autonomista da UDN, PTB, dissidência do PR, PTN e PST), em substituição ao falecido candidato Lauro Farani de Freitas. Explica-se a presença de Raimundo Oldegar na redação: era leal partidário de Regis Pacheco de quem Laudionor se aproximara.

Antonino Pedreira, prefeito teve apoio do jornal que colaborou na campanha de Gerson Gusmão Sales, com apoio de Regis Pacheco, candidato a prefeito. Este, vitorioso, ainda continuou a ter “O Combate” como colaborador. Mas à medida que Gerson Sales vai-se afastando de Regis Pacheco para formar um grupo político próprio, o jornal o trata com alguma cerimônia.

Em 1955, D. Celina Áurea Brasil, aluga o jornal ao Padre Luis Soares Palmeira e a amigos desse, dentre os quais os advogados Orlando Leite e Nilton Gonçalves. Em novembro do mesmo ano, o Padre Palmeira, combatendo o caráter golpista da UDN, rompe com esta (já vinha se afastando havia algum tempo). Isso terá importância para a política local, pois o padre tinha muito prestígio (chegaria mesmo a Secretário de Educação do Estado da Bahia). De início, Orlando Leite foi diretor do jornal, mas a partir de novembro, Nilton Gonçalves ocupou a diretoria. O redator-chefe era aquele padre. O semanário, assim, passa a combater nacionalmente a UDN e localmente a administração de Edvaldo Flores, sucessor de Gerson Sales e correligionário deste. Suas páginas se abrem para o combativo vereador Alberto Farias. A Ação Popular que esse requerera contra Edvaldo Flores, em razão de aumento dos subsídios do Prefeito, foi exaustivamente noticiada e mesmo o jornal publicou a extensa sentença prolatada naquela ação judicial contra Edvaldo. Esse é um fato dentre outros a demonstrar o gradativo afastamento em relação ao grupo de Gerson Sales à medida que esse vai-se distanciando da maioria do PSD.

Em abril de 1959, finda-se o contrato celebrado entre a viúva de Laudionor Brasil e o Padre Palmeira e este devolve-lhe o jornal. A família de Laudionor Brasil volta a editar “O Combate”.

A partir de maio de 1959, a direção do semanário fica a cargo de Athene Brasil e a redatoria geral cabe a Reginaldo Carvalho Santos. O Padre Palmeira continua a ter espaço no jornal, mas Gerson Sales volta a ser bem noticiado e durante algum tempo não sofre oposição dos novos diretores de “O Combate”. É algo que a história demonstraria ser provisório.

Athene e Reginaldo comemoraram condignamente os trinta anos do jornal que mais marcou a vida política conquistense.

Alguns meses iniciais do ano de 1960 não contaram com a circulação do jornal sobre o qual aqui estou escrevendo. Mas ele retornou em maio de 1960, com a direção de Solange Brasil e como Redator-Chefe ainda Reginaldo Carvalho Santos. Gerson Sales, de novo Prefeito (vencera as eleições de 1958 contra José Pedral, seu principal adversário) não recebe ataques do jornal, Edvaldo Flores, ex-Prefeito é bem noticiado. Empolga-se com a candidatura “oposicionista” de Jânio Quadros a Presidente da República. É entusiasta do “candidato da vassoura”.

Gradativamente, em fins de 1961 e à medida que as eleições para Prefeito Municipal se aproximam, sem radicalismo “O Combate” critica a administração municipal, especialmente quanto à inexistência de serviço público de abastecimento de água e à precariedade do serviço energia elétrica. Também, ao lado de seu caráter noticioso (sempre o foi) torna-se mais reivindicativo dos interesses de Vitória da Conquista. O afastamento total de Gerson Sales corresponde à aproximação maior do PSD e da liderança aí nascida de José Pedral, cuja candidatura a Prefeito, em 1962, - “O Combate” apoiou entusiasticamente. Desde janeiro de 1962, Edinaldo Teixeira passa a ser redator chefe do jornal, mas Reginaldo Santos continua seu diretor. Pedral venceu as eleições contra o Vereador Jesus Gomes dos Santos, candidato de Gerson Sales. A nova administração contou com o apoio de semanário que Laudionor criara em recuado e difícil tempo. Continuou noticioso, político e com contribuições culturais de diversas pessoas.

E os meses finais? O Combate parece que retomara o caminho mudancista pensado pelo seu fundador quando imaginou que a Aliança Liberal traria transformações. Então, na década de 60, após as eleições de 62, retomará a idéia de mudança. As “reformas de base” contam com apoio de “O Combate”.

Mas vem o hediondo crime de 31 de março de 1964. “O Combate” não sobreviverá aos tempos negros. “As trevas da noite” se estabelecem. O jornal é aniquilado.

Rever a trajetória de “O Combate” é também rever a trajetória da política Conquistense durante 35 anos. Mas é também recordar de pessoas como Flaviano Dantas, Clóvis Lima, Euclides Dantas, Flávio Jarbas, Ciro Teles, Camilo de Jesus Lima, Newton Lima, Edmundo Macedo, José Duarte, Aníbal Viana, Aroldo Ramos, Marinho, Bruno Bacelar, Ubirajara Brito e tantos outros que colaboraram com escritos para “O Combate”. Mas, certamente, dentre esses, há uma colaboradora que me merece especial lembrança: a doce e inteligente Miriam Tourinho com as suas crônicas – Retalhos de Vidas.


Jacaraci/Irundiara

A ocupação não indígena



Ruy Medeiros(Digitado 01/2006)






1. Introdução.

No ensejo de comemoração de 50 anos de elevação de Irundiara a Distrito, integrante do Município de Jacaraci, Bahia, os professores Elton Soares de Oliveira, Celene Gonçalves Bonfim Reis, Maria Cláudia Vieira e o Sr. Luiz Gonçalves da Silva (Luizinho Barão), apaixonados por aquele lugar, pediram-me que dissesse algo sobre as origens da ocupação não nativa naquele solo.

A história regional foi muito desprezada e se realiza num atraso muito grande entre nós, daí a falta de estudos sobre a esmagadora maioria de regiões e de municípios. Antes, estudiosos faziam escritos à moda das chamadas corografias e mesmo essas deixaram de ser escritas. No entanto, faça-se justiça ao interessante livro Jacaraci Ontem e Hoje, de autoria da Sra. Zoraide Guerra David, meritório esforço de pesquisa e escritura sobre Jacaraci, bem interessante.

2. Jacaraci e Irundiara – Localização e Ocupação Antiga.

Irundiara é distrito do Município de Jacaraci, elevado a essa categoria pela lei nº 628 de 30 de dezembro de 2003. Está localizado na Mesorregião Geográfica do Centro Sul Baiano e Microrregião Geográfica de Guanambi.

O texto a seguir, quase reprodução de palestra que proferi no dia 27 de dezembro de 2003, em Irundiara, tem caráter preliminar, pois o tempo de preparo não permitiu aprofundamento.

Vejamos resumidamente os fatores que determinaram a ocupação da região.

Fatores de ocupação não indígena de Jacaraci/Irundiara: a) Estabelecimento de Atividade Mineradora em Minas Novas e Rio de Contas; b) Revoltas de Mineradores na Região das Minas Gerais; c) A ocupação da casa da Ponte; d) Estabelecimento do Distrito Diamantino, em Minas Gerais.

Vejamos cada um desses fatores de ocupação não indígena da região de Jacaraci e de boa parte do Centro Sul Baiano.

a) Estabelecimento de Atividade Mineradora em Minas Novas e em Rio de Contas.

Por volta de 1690, houve descoberta de ouro em Rio de Contas (Chapada Diamantina Meridional na Bahia). Aí surgiu o Arraial dos Crioulos, ponto de concentração de inúmeros garimpeiros. A atividade de exploração de ouro desenvolveu-se e o governo resolveu edificar Vila, encarregando para tanto o bandeirante Pedro Barbosa Leal. Este edificou a Vila (em 1724) em lugar que depois foi considerado insalubre e a Vila por isso foi transferida para um pouco mais acima, onde é hoje a cidade de Rio de Contas.

Aí foi estabelecido um pólo dinâmico de mineração, atraindo paulistas e baianos.

Também por volta de (1690), na região da cabeceira do Rio Jequitinhonha foi encontrado ouro. O movimento de garimpeiros expandiu-se por toda aquela área. Em 1720 novas minas foram descobertas e pouco tempo após foi criada a Vila de Minas Novas do Arassuaí, sob jurisdição da Bahia, ao tempo do Vice-Rei (Conde de Sabugosa). O Governo deste criou a Superintendência do Ouro sob direção de Pedro Leolino Mariz. Dois pontos do território, um na Chapada Diamantina (Minas do Rio de Contas) e outro no Alto Jequitinhonha foram ocupados. As áreas circunvizinhas do Alto Jequitinhonha, que já vinham sendo povoadas há algum tempo, passaram a abrigar novas populações e, apesar de em 1701 haver sido proibida comunicação da Bahia para Minas e em 1704 a Comunicação de ambas por caminho através do Espírito Santo, a ordem não era obedecida por força dos interesses dos mineradores. Com o fato de Minas Novas de Arassuaí ficar sob jurisdição da Bahia, as comunicações entre estas e Rio de Contas se intensificaram, pois estavam ambas as áreas sob jurisdição da Bahia, não se podendo aplicar a proibição referida.

As ligações entre Minas Novas e Rio de Contas fizeram com que uma grande região passasse a ser percorrida e mesmo que por elas passasse um do principais caminhos de ligação entre Bahia e Minas Gerais, conforme se vê do Roteiro de Delgado Quaresma na parte que descreve a rota do Rio das Contas para Minas Novas do Arassuaí. O mesmo se pode dizer do Roteiro do engenheiro Miguel Pereira da Costa. Quem visita o morro do Chapéu e adjacências percebe o porquê da região ser ponto de passagem. Em alguma vertente do morro referido nasce o rio Gavião que despeja suas águas no Rio de Contas; noutra vertente nasce o Rio Verde Pequeno afluente do Rio Verde Grande que, por sua vez, deságua no Rio São Francisco. Então na área do Morro do chapéu os mineradores transpunham de uma bacia (Bacia do Rio de Contas, através do Rio Gavião) para outra bacia (Bacia do São Francisco, através dos Rios Verde Pequeno e Verde Grande). Aliás é possível que Morro do Chapéu (denominação freqüente em nossa Geografia) seja realmente Morro do Chape (cha/Eça + pé = vista do caminho) que em tupi significa Ver o Caminho, isto é, seria o morro de onde se via o caminho a tomar. Não se trata de morro em forma de chapéu, mas de elevação a partir da qual o caminho é divisado.

Não só a região passou a ser percorrida e conhecida em razão do estabelecimento daqueles dois pólos de mineração, mas também em razão da redistribuição da população por outras áreas em razão de esgotamento de jazidas ou em razão de grande concentração de população em área que não possuía produtividade suficiente para suportá-la. Aliás, a própria autoridade recomendava a redistribuição de população, como foi o caso do Conde de Sabugosa. Além disso, há evidências de que houve mineração na área do Morro do Chapéu e adjacências.

b) As revoltas de mineradores –

Várias revoltas ocorreram nas áreas de mineração de ouro na região das Minas Gerais. Houve revoltas em Vila Rica (1720), no Rio Sapucaí (1721), em Pitangui (1736). Tais revoltas foram respondidas pela autoridade colonial com forte repressão e muitos daqueles nelas envolvidos fugiram e foram procurar áreas outras para suas atividades de mineração. É, por exemplo, emblemática a figura de João da Silva Guimarães, parente do poderoso Pascoal da Silva Guimarães que esteve clandestinamente dirigindo a Revolta de Vila Rica, em 1720. João da Silva Guimarães migrou para a região de Minas Novas (do Fanado) e passou a percorrer as regiões de São Mateus (no atual Espírito Santo), Rio de Contas, toda a Serra Geral e Chapada Diamantina, e o Planalto da Conquista. Nos últimos anos de sua vida, esteve obcecado na procura de Minas da Prata. Conseguiu ajustar-se aos interesses do Governo Colonial, por intermédio de Pedro Leolino Mariz (Superintendente do ouro) e recebeu carta de Mestre de Campo.

Não se deve estranhar, portanto, que as revoltas de mineradores tenham provocado migrações para áreas adjacentes e mesmo para áreas mais distantes. Em conseqüência daqueles fatos, ocorrem relatos dando conta de fuga de revoltosos. Assinale-se que é com pessoal de Rio de Contas e Minas Novas que é formada a primeira bandeira para a Conquista do Sertão da Ressaca (Planalto da Conquista), projeto a que não está estranho o objetivo governamental de redistribuição de população para desafogar áreas tidas como densamente povoadas.

c) Ocupação da Casa da Ponte –

Antonio Guedes de Brito (1625) foi agraciado com a doação de extensa sesmaria que ocupava grande extensão de terras, inclusive em área de Irundiara  Jacaraci. Com o afluxo de população, as terras de Antonio Guedes de Brito (Casa da Ponte), que era casado com D. Guiomar Ximenes de Aragão, passaram a ser aforadas (contratadas em regime de enfiteuse*) com muitas pessoas, que passaram a criar gado e a manter cultura de subsistência. As terras depois passaram para Isabel Guedes de Brito, que se casou com Antonio da Silva Pimentel. A prática de aforar as terras, parcelando-as, fez surgir, assim, diversas “fazendas”, com o que a região foi sendo ocupada. Os registros dos contratos feitos pela Casa da Ponte demonstram que algumas localidades e povoados surgiram de fazendas originárias dos mencionados contratos. No Século XIX, houve autorização legal possibilitando não só o aforamento daquelas terras, mas também sua venda. Assim, a Casa da Ponte, convergindo com interesse de terceiros em explorar a terra, contribuiu para ocupação de grande faixa sertaneja.

d) Estabelecimento do Distrito Diamantino –

Parece-me, também, que o estabelecimento do Distrito Diamantino, em Minas Gerais, é responsável pela ocupação da área de Condeúba, incluindo Jacaraci e Irundiara.

Como se sabe, descobertos diamantes no Serro (minas Gerais), sua exploração passou a ser feita de forma diferente da exploração do ouro. Para a exploração do diamante, o governo de Portugal, mediante contrato, serviu-se de um contratador. O Contratador de Diamantes exercia grande autoridade sobre uma imensa região e, mediante paga ao tesouro de Portugal, explorava o diamante, arcando com todos os custos desta. À medida que pedras preciosas iam sendo descobertas nas áreas vizinhas, o Distrito Diamantino ampliava suas fronteiras. Veja-se que estas chegaram até o Valo Fundo.

Ora, uma área de economia dinâmica exigiu em seu entorno área produtiva complementar. Apesar de restrições para a entrada de pessoas no Distrito Diamantino (as entradas deviam ser autorizadas), isso não impediu relacionamento entre esse e área circunvizinha, dando dinamismo a essa.

3. Conclusão – O Povoado de Almas.

Parece-me evidente que o processo de ocupação de Jacaraci e Irundiara foi complexo, envolvendo ocupações formais (contrato com a Casa da Ponte para estabelecimento de fazendas); ocupações não formais (mineradores individuais ou em grupos, clandestinos) patrocinada inclusive por fugitivos após repressão feita a mineradores pela autoridade colonial; dinamização do entorno da área após a descoberta de diamantes; ocupação clandestina de terras como meio de luta pela sobrevivência de pessoas pobres, inclusive enclaves (quilombos) de escravos fugidos.

Com a criação da Vila de Caetité, as terras de Jacaraci/Irundiara ficaram na circunscrição da mesmas, inclusive o Povoado de Almas, arraial surgido da velha fazenda Almas, origem da cidade de Jacaraci. Aí foi estabelecida capela filial da freguesia de Nossa Senhora do Rosário do gentio. Em 1857, a lei provincial nº 65, de 16 de dezembro, estabeleceu o Distrito de Boa Viagem e Almas, com terras desmembradas da Vila de Caetité.

Em 07 de junho de 1880, a lei provincial 1958, conferiu autonomia ao distrito, elevando-o à categoria de Vila (Município), instalada em 25 de abril de 1885, conservando o nome: Boa Viagem e Almas.

Eis, em traços muito gerais, como percebo a origem do Município de Jacaraci, incluindo o Distrito de Irundiara.



*Affonso Dionysio Gama define enfiteuse: “Dá-se a entiteuse, aforamento ou emprazamento, quando, por ato entre vivos ou de última vontade, o proprietário atribui a outrem o domínio útil do imóvel, pagando a pessoa que o adquire, e assim se constitui enfitêutica, ao senhorio direto uma pensão, ou foro, anual, certo e invariável” (Teoria e Prática dos Contratos por instrumento particular no Direito Brasileiro, Livraria Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1925). Na enfiteuse, o proprietário do terreno (senhorio) transfere a uma pessoa (enfiteuta ou foreiro) o domínio útil da terra, permanecendo com o domínio direto desta. O enfiteuta é obrigado a pagar anualmente um valor em dinheiro (foro) ao senhorio. Quando o enfiteuta desejar vender o domínio útil do imóvel, terá de dar preferência ao senhorio (que tem o domínio direto). Se o senhorio não recomprar o domínio útil, terá direito de receber um valor percentual sobre a venda (este valor durante muito tempo foi de 2,5%).


                                   Incêndio de Homens. Incêndio?

                                                                     Ruy Medeiros. (Digitado 03/1999)


 Volta  a imprensa a noticiar novos incêndios de mendigos. No meio de outras matérias, como se tratasse de algo banal, pura e simplesmente se diz que mendigos são assassinados.
A maneira de noticiar em si mesma já denuncia muita coisa: não é um homem, é um mendigo. Não tem nome, nem sobrenome; é um mendigo. Não se trata de assassinato, mas de incêndio.
Em verdade o ato reveste-se do caráter de  “culminância fascista” do tratamento que o homem vem merecendo por parte da sociedade. É exatamente isso: Um tratamento fascista cotidiano contra pessoas, antes seleto, hoje cada vez mais abrangente, culmina com a morte e com a forma de noticiá-la: Mais um mendigo foi incendiado.
A notícia na forma como é transmitida revela um encobrimento de caráter ideológico nitidamente fascista ( repita-se este termo terrível): Não se trata de um assassinato hediondo de um homem; trata-se de um, dois, dez  “incêndios de mendigos”.
É como se estivesse a dizer que finalmente incendiaram, como consequência natural, quem já  “não contava” para a sociedade burguesa ( e alguém conta para essa sociedade em que o valor do homem é posto em sua maior ou menor capacidade de explorar outro homem?).
O fascismo cotidiano da sociedade burguesa, cuja culminância é assassinato de pessoas indefesas, alimenta-se de mil formas.
As pessoas perdem o emprego, ou nunca o conseguem, moram na rua, vasculham lixo em busca de alimento, dormem ao relento, impõem-se-lhes condição de animal,  “animal sem dono”,  sequer sem condições de exercer o dom da liberdade porque cercado pelas grades da fome, da perseguição, das mil muralhas de ódio em que se transformaram as cidades. Assim, as pessoas, tratadas desumanamente, não são vistas como homens, mulheres, Pedro, Maria. São qualquer outra coisa, dessemelhantes; nunca iguais.
De início, não são  “consumidores”,  nem  “contribuintes”,  nem  “clientes”,  nem  “eleitores”,  nem  “alunos”,  nem  “donos”, enfim. É essa maneira de tratar as pessoas a partir de seu adjetivo, ou de seu atributo, é eficaz para não tratá-la como pessoa. É dessa forma que agem os nazistas em seus campos de concentração e nas prisões em que as cidades são transformadas. É assim também que agem os policiais violentos.
Mas adjetivos e atributos não são auto-aplicáveis. Alguém é que define que nome terá aquele  (des)semelhante.
Quando tudo isso que  “conta” para a sociedade burguesa ( ter bens, explorar gente, ser contribuinte, ter clientes, ou ser dono, etc) é complementado pela (des)assistência social dos governos, o quadro vai-se completando: Ora é a (des)assistência que consiste em  “institucionalizar” a mendicância com distribuição de  “esmolas”,  denominadas  cestas básicas; ora é a falta de toda e qualquer atitude. Já notaram a satisfação de certos burocratas da previdência social quando negam a aposentadoria de um miserável homem que sempre trabalhou, mas que nunca teve a carteira assinada pela incúria do próprio Governo?  Aí não bastam as mãos calos, nem o corpo que assumiu a forma ditada pela enxada. É preciso o documento que o burocrata sabe que não existe:  “Minha vida por um papel apodrecido pela assinatura de um sacana”:  explorador premiado pelo direito não reconhecido ao explorado, tudo para honra e glória da previdência (as)social brasileira.
Essa forma de tratar o homem. Essa idéia absurda de que  “previdência social” é um privilégio, tem muito,  é só fascismo. Sua culminância só pode ser o incêndio de homens transformados em  “alguma coisa” (tal como entende a sociedade burguesa)  chamada de  “mendigo”,  algo carburante, que começa a ser destruído com o crime continuado da exclusão social até a culminância do incêndio.
Só um idiota não percebe que estes  “incêndios” de homens são o complemento de políticas econômicas que protegem alguns poucos privilegiados, mesmo que a custa de um país inteiro. Só um bando de imbecis ou desonestos não percebe que estes jovens fascistizados que  “incendeiam”  pessoas são produto e consequência de uma sociedade em que a mercadoria dita o valor das gentes. Só os povos não entendem que políticas governamentais excludentes levam à consequência de existirem mendigos para serem incendiados. Somente esses, e os que lucram assustadoramente com a situação. Esses têm o poder de encobrimento, de transformação de conceitos, de manipulação.
Sim, detendo, como detêm, os grandes meios de comunicação, todos os que lucram com a existência da sociedade burguesa podem dizer  “incêndio de mendigos” ao invés de dizerem:  assassinatos. Podem contar o fato como algo banal e isolado, não como consequência de crimes anteriores que conduzem ao crime da exclusão e, daí, ao assassinato.
Quem pensa que está a salvo do fascismo cotidiano que tece cada vez mais a sociedade burguesa ( sob mil justificativas) deve olhar em seu redor:  Nas cidades pululam ódios, nos cárceres e nas ruas assassinatos.

A UESB e a Autonomia Universitária (Digitado, 04/1999)


            Uma das lutas maiores dos professores de nível superior foi aquela pela autonomia das universidades. Vencida a luta contra a cátedra vitalícia, uma forte palavra de ordem do movimento estudantil nas décadas de 50 e 60, os estudantes e professores centraram poder de fogo contra a ditadura militar e a favor da autonomia universitária.
            Foi o movimento dos mais responsáveis, dos que realmente amavam a liberdade e o ensino. A luta contra a intromissão militar na universidade foi conduzida com força, nas ruas e nos espaços internos das escolas. Muitos foram presos em razão do combate pelo ensino livre e de qualidade.
            É sempre bom lembrar: O Decreto-lei 477/69 passou a ser a justificativa “legal” da ditadura militar para expulsar estudantes e professores das escolas, inclusive das universidades. Muitos foram expulsos. O atual Presidente da República, por exemplo, foi aposentado compulsoriamente da USP - Universidade de São Paulo, quando era professor e sociólogo. A “base legal” (?) de sua expulsão foi o Decreto-lei 477/69, instrumento fascista contra o ensino e os professores.
            Aquele terrível Decreto-lei nazista passou a ser alvo de ódio de professores e estudantes, os quais sempre entenderam que a sua revogação era “tarefa primordial” das “forças democráticas” (assim se falava então). As universidades foram peadas militarmente. A reação foi-se formando aos poucos, a partir dos jovens, na década seguinte, especialmente a partir de 1975. A luta pela revogação do 477 era um dos aspectos da luta pela autonomia universitária.
            No final dos anos 70, mais especialmente a partir dos anos 80, iniciou-se o processo que ficou conhecido como “universidade emergente”. Pequenos atos de rebeldia e de desobediência criadores foram-se estabelecendo e impondo nova forma de conceber e gerir a universidade. Professores e alunos retomavam antigas “palavras de ordem” com novas táticas. Aos poucos, os colegiados acadêmicos foram fortalecendo-se, associações de professores foram criadas, estudantes reorganizaram-se, a luta pela qualificação de professores ganhou espaço, nova concepção de universidade foi-se estabelecendo. Não era só a estrutura tecnocrática pretendida pelos militares que era contestada, mas a própria função da universidade. Não se tratava, segundo professores e estudantes avançados, apenas de modernizar a estrutura da universidade, porém de mudá-la estruturalmente considerando sua função política. O saber não devia ser apenas o saber técnico. A universidade precisava romper com o seu caráter de
“aparelho ideológico do estado”, na expressão de outros.
            Na Constituinte de 1988, a luta ecoou. A busca da autonomia universitária reconhecida constitucionalmente foi bandeira que abrigou o maior número de professores e estudantes, juntamente com a luta pelo “ensino público, gratuito e de qualidade”. Da redação definitiva da Constituição da República passou a constar a autonomia universitária. A Constituição do Estado da Bahia tinha que abrigar o instituto e o abrigou.
            Uma das questões postas pela autonomia universitária é exatamente a eleição direta por votação secreta de todos os seus dirigentes, ou mais estritamente, de seus reitores.
            A legislação aplicável às universidades federais dispõe que o reitor seja nomeado a partir de uma lista tríplice formada por professores universitários escolhidos de votação uninominal secreta e direta. O colégio eleitoral escolhe os professares e os três mais votados compõem a listra tríplice. Daí sairá o Reitor, por nomeação do Sr. Presidente da República.
            No Estado da Bahia, a legislação prevê providência semelhante àquela existente no âmbito federal, porém não define que a votação dos candidatos a figurarem na lista tríplice tenha a forma de votação uninominal. Na Bahia, a lei não prevê votação uninominal, e os decretos que aprovaram os regulamentos das respectivas universidades prevêem a eleição direta, voto secreto, mas não definem a forma uninominal de votação. No entanto, o regulamento de cada universidade, devidamente aprovado, diz que cabe ao órgão máximo da Universidade resolver os casos omissos e fixar a interpretação de suas normas.
            Ou seja, a lei baiana deixou campo um pouquinho maior para a universidade estadual no que se refere à forma de votação para candidatos a figurantes na lista tríplice a ser submetida ao Governador do Estado para que, dentre aqueles, nomeie o Reitor. A universidade pode definir a “forma de votação”, se por listas, se por chapas, se uninominal, etc...
            Mas, a situação, como em outros momentos, “está pegando fogo”. Sempre se sabe que as eleições na UESB - Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia são disputadíssimas. Mas também se sabe que aí vigora uma prática que tem sido obedecida desde a eleição de Carlos Botelho: O mais votado é aquele cujo nome é submetido ao Governador. Assim ocorreu com Pedro Gusmão e assim ocorreu com o atual Reitor, Waldenor Alves Pereira Filho (como dizem os mais velhos - “o filho de Nôzinho Coletor”). Na eleição deste, foi feito um pacto entre os concorrentes: o menos votado não aceitaria a nomeação a fim de que a maioria não fosse frustrada em sua escolha. Waldenor, apesar de não ser filiado aos partidos dos que vêm governando a Bahia nos últimos anos, foi nomeado Reitor.
            Agora, a briga retorna. E retorna inclusive quanto à forma de votação: É que o Conselho Universitário regulamentou a votação dos pretendentes a cargo de Reitor na forma de chapa. Isto é, os participantes do Colégio Eleitoral votam em uma chapa. A chapa vencedora já terá os três nomes mais votados, submetidos ao Governador de Estado para que um dentre eles seja nomeado Reitor. Este articulista soube que, posteriormente, por interferência do Sr. Secretário de Educação, o Conselho Universitário da UESB reuniu-se a fim de dar nova regulamentação à matéria (“forma de votação”). Aquele Conselho, que não estava legalmente obrigado a dar outra regulamentação, reuniu-se e aprovou outra opção: a forma de votação plurinominal. Isto é, o eleitor vota em três candidatos. Os mais votados farão parte da lista tríplice. De novo, um grupo de professores está contestando a validade da norma que prevê a votação plurinominal.
            Não dá muito para entender porque o Conselho Universitário da UESB aceitou a interferência do Sr. Secretário de Educação em matéria de competência daquele colegiado. Porém muito menos é aceitável o comportamento de pessoas que buscam aquela interferência ou que, em prejuízo da pouquíssima autonomia universitária, querem que a forma de votação seja imposta de cima pra baixo.
            A pequena autonomia universitária que hoje se tem foi conquistada com luta. Alguns que a buscaram foram expulsos das universidades, tiveram careiras coarctadas pelo arbítrio militar. Errou o CONSU da UESB quando, a pedido do Secretário de Educação, reapreciou a matéria (embora a tenha reapreciado de forma legal, possível, apesar de não agradar aos políticos situacionistas). Erram aqueles que querem jogar fora o pouquinho de autonomia de que gozam as universidades. É tão pouquinho que quase não se vê, mas foi fruto de uma luta de gerações.
            É evidente que o Estado é um só. É uma bobagem achar que, com tantos regulamentos e peias do estado burguês, a presença de um Reitor de oposição cause estragos. Também é bobagem achar que a ocupação de espaços no estado burguês é algo revolucionário. A autonomia universitária é importante, não porque se possa “aproveitar brechas”, ou coisa semelhante. Ela é importante porque o ensino precisa da mais ampla liberdade (maior mesmo que a denominada autonomia universitária).
            Neste sentido, não se pode abraçar soluções que impliquem em diminuir a autonomia da UESB. Abraçá-las seria atentar contra a história e contra a liberdade de ensino.

A Tragédia do Tamanduá – Finalmente a História.
(Digitado, 069/2004)


Em 10 de outubro de 1895, no município de Belo Campo, que pertencia ao domínio de Conquista (hoje Vitória da Conquista), na Região Centro Sul do Estado da Bahia, sob comando de Calixtinho, cerca de 110 homens sitiaram a Fazenda Tamanduá e promoveram a chacina de número superior a 20 pessoas. Era a tragédia do Tamanduá, como ficou conhecido na região o desenlace de uma luta de famílias, cuja forma encobre algo maior: a violência política presente nos sertões.

O fato permaneceu na memória dos familiares das vítimas, especialmente passa de pai a filho no âmbito das famílias Ferraz, Fernandes de Oliveira e Lopes Moitinho. Em Pau de Espinho, fazenda vizinha, estão restos mortais das vítimas.

Embora vivo na memória e considerado de grande importância, o fato foi objeto de registro escrito de forma resumidíssima, abstraído de seu contexto, fragmentariamente.

Isnara Pereira Ivo, historiadora, Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, resolveu, em mestrado, pesquisar e escrever sobre o tema. O resultado, com alterações que melhoraram a sua dissertação, é este livro. Finalmente, a Tragédia do Tamanduá tem a sua História escrita. A autora fez demorada e profunda pesquisa e, com isso, pode apreender a contexto maior daquele fato. Mandonismo local, estrutura e entrelaçamento familiar, poder público, vinculação entre ordens privada e pública, violência, disputas internas, memórias, estão examinados e contextualizados. Disso resulta o conhecimento – embora mais que isso – da configuração do mando na Imperial Vila da Vitória, que seria depois município da Conquista, e desde a década de 40 do século passado, Vitória da Conquista. Assim, não é apenas a história da tragédia, mais de uma sociedade num lugar determinado, em afirmativo panorama.

A jovem historiadora lega-nos estudo fundamental para conhecimento da vida político-social de grande parte do Sertão, pois o palco onde ocorreu quase que foi toda a mesoregião Centro Sul do Estado, imensa área da Bahia.

Este é um livro essencial.


Ruy Medeiros 

A Irrealidade Brasileira

Ruy Medeiros (Digitado, 08/1999)




                                   A irrealidade passou a ser componente da realidade brasileira. É assim. No Brasil tudo é possível. Então não vacile em acreditar que a irrealidade faz parte de nossa realidade brasílica.
                                   Um ministro, o da saúde, resolve dizer que famosa produtora-apresentadora de programa de televisão não é bom exemplo para adolescentes porque trombeteou e deu foros de normalidade à “produção independente” de uma filha. O ministro atribui à apresentadora a força de desencadear gravidez a torto e a direito (à direita e à esquerda?): “A exaltação da produção independente estimula meninas de 12, 13 anos a terem filhos”, disse o ministro dentre outras coisas.
                                   A apresentadora-produtora de programas alienados e alienantes para (e na) televisão responde ao ministro: “Olha, eu não me casei, viu? Mas eu tenho condições de criar e educar a minha filha, o que não acontece com a maioria de nosso povo. Sabe por quê? Porque ele é vítima de políticos que preferem dar entrevistas de impacto em vez de tomar decisões que melhorem a vida das pessoas”.
                                   Não pensem que o escrivinhador destas linhas está a inventar lérias (ou lereias). O fato aconteceu. O grande número de gravidez entre adolescentes – fato que se agrava – e a prostituição infantil não tem muito que ver com Dona Xuxa. A contribuição desta não é diretamente com a gravidez dos outros, mas com o reforço de condições de alienação, presente em seus programas, em alto grau. A própria apresentadora televisiva é fruto de alterações ocorridas na sociedade, no comportamento das pessoas, apresentadas de forma diferente por nossos valores. Valores morais que hoje justificam uniões consensuais e gravidez fora do casamento ampliaram-se de um círculo restrito para um ambiente maior. A aceitação disso também. A situação de desinformação, miséria, analfabetismo, alienação, etc., contribui para que pessoas que não têm condições de criar e educar seus filhos “partam para a produção independente”. Mas o fato radica numa realidade social propícia a escolhas não livres por parte dos pobres.
                                   Mas soa irreal ouvir dos lábios da loura televisiva a crítica ao ministro. É evidente que ele mereceu a resposta. É evidente também que o ministro é um dos responsáveis pela situação de miséria em que vive a população brasileira, porque participa de escolha de políticas que têm agravado os problemas sociais. Mas aquela apresentadora “vive” a crítica?  Acredita profundamente no seu teor? Sabe a conseqüência da crítica? Tudo leva a crer que não. O ritual aristocrático e nababesco com que cercou o nascimento de sua filha (e, depois, o aniversário) foi verdadeiro escárnio à maioria esmagadora das mães, num país em que muitas destas fazem parto em filas de hospitais mantidos pela pasta do ministro da saúde (direta ou indiretamente). A crítica da apresentadora teve sentido, mas não induz a que as pessoas imaginem que ela pense de acordo com a crítica que fez. Isto é, trata-se de uma irrealidade tão grande quanto a afirmativa do ministro. Também é irreal dizer que “criança” é produção. Gente não é mercadoria!
                                   A irrealidade não fica só no debate do ministro com a apresentadora; permeia grande parte dos discursos. Recentemente, um senador que cresceu à sombra do regime ditatorial e que patrocinou escandaloso auxílio a uma das maiores empresas do mundo (com dinheiro e recursos que o governo não tem para atender à  “produção independente” de mães pobres) resolveu ser paladino verbal da erradicação da miséria em solo brasileiro. Criou grande rebuceteio. Então, aquele homem que apoiou a ditadura militar (miséria desumana que aumentou a miséria social) agora é o condutor dos povos à redenção? Estranho. Tudo soa irreal. Quando aquele senador atuou politicamente em defesa da população pobre? O que Xuxa falou do ministro aplica-se bem àquele senador? Mas se o fato é irreal – no sentido de que não induz credibilidade – também irreal (fruto da falta de análise séria) é o discurso de apoio ao “discurso” senatorial do novo defensor do povo feito pelo Sr. Prof. Cristovam Buarque, presidenciável do PT. Ou o ex-reitor da UNB não acompanhou (nem conhece) a trajetória daquele senador, ou não sabe ler nas entrelinhas do “plano” de combate à pobreza ou simplesmente não tem projeto alternativo a remendos  demagógicos.
                                   Custa crer.
                                   A irrealidade campeia e agora tem textura de suspense (talvez pelos cem anos de Hitchcock). Qual o próximo lance? Qual a seqüência? Que cena imprevista virá?
                                   Mal pensa o articulista terminar sua meia página e vê e ouve e ouve e vê um senador pregar o calote da dívida interna reconhecida judicialmente (pagamento de precatórios). Ou seja: União, Estados e Municípios não devem pagar direitos reconhecidos em sentenças condenatórias já irrecorríveis. O Presidente da República, de logo, diz não ter detalhes, mas apoia a idéia a princípio.
                                   Vejam só: Trata-se de desrespeitar sentenças transitadas em julgado, na forma de execução prevista em lei (precatórios). Uma ofensa às leis que eles próprios, burgueses, criaram. Muitos destes grandes precatórios são decorrentes de condenações trabalhistas (diferenças salariais, direitos econômicos não pagos por entes públicos, etc.), inclusive pelo Estado da Bahia, o qual deve e recusa pagar vários precatórios. Chega-se à seguinte situação: Sentença contra o poder público não vale nada: Viva o calote! E o presidente (a quem a lei burguesa atribui precipuamente a defesa da Constituição) prega contra esta ao apoiar, em princípio, a proposta de um senador baiano. Proposta, aliás, conveniente ao Estado da Bahia que deve muito a seus servidores em conseqüência de sentenças que reconheceram aquele estado descumpridor de obrigações e o condenou a pagá-las.
                                   Com a palavra o Ministério Público.
                                   Não parece que se está no mundo da irrealidade? Por que não deixar de pagar a dívida externa aos banqueiros internacionais? Não iria o poder público gastar muito menos estancando a sangria de juros pagos pela dívida externa? Quem sabe não será esta a próxima seqüência do filme ficção-realidade?
                                   Tudo muito bem: Cobram-se créditos na Justiça contra o poder público. Este é condenado a pagar. Recebe precatório, feita a quantificação da sentença, diz que provisionou recursos no orçamento seguinte, não paga nunca. O jogo é um faz de conta. Para acabar com isso declara-se abertamente: Não pago! E a “Justiça” fica com cara de pau. Os burgueses rebelam-se contra suas normas?
                                   Toda essa irrealidade brasileira encaminha ideologicamente para um populismo específico, que recusa o Estado de Bem Estar Social (Welfare State), mas começa a sentir as limitações do neoliberalismo nas relações do Estado com a massa no mundo pobre. Está-se gestando em círculos burgueses um novo movimento político com vistas à inquietação social. Aqui e ali aparecerão discursos desse novo populismo de um Estado forte (“gente decidida”, lembram-se?) que tenha um plano de erradicação da pobreza. Um duce? A construção desse discurso é algo real. Infelizmente real.
                                   ( A Alfred Hitchcock, in memoriam, cujo suspense foi superado pelo suspense da violenta irrealidade brasileira mistificante, no ano de seu centenário).


IV Congresso de História da Bahia
Salvador, 27 de setembro a 02 de outubro de 1999.
(Texto de Conferência)



A Idéia de Conquista e o Sertão da Ressaca

Ruy H. A. Medeiros


1. Introdução



No século XVIII, os portugueses já haviam acumulado experiência suficiente para planejar e executar a guerra de conquista no contexto humano-geográfico de sua colônia americana, rara e  dispersamente povoada.
Apesar de decorridos dois séculos de dominação portuguesa, o território brasileiro, como se sabe, era ainda bastante desconhecido e grande parte dele não contava então com a presença do colonizador.
Impunha-se a guerra de conquista. A conquista daquilo que já era colônia portuguesa. A situação denuncia os limites do conceito colônia – pois ampla região ainda não estava de fato sob o domínio da metrópole, mas sim de tribos indígenas de diversas famílias.
A guerra de conquista, nas condições específicas do Brasil, tinha outros contornos. A situação geral é interessante: no contexto internacional, salvo contestações no século anterior (século XVII), quando franceses e holandeses ocuparam parte do território e salvo problemas de limites, que permaneceram, já  há certo consenso de que o Brasil pertencia a Portugal, embora o temor deste em perdê-lo fosse evidente face à evolução de interesses europeus com impacto em política externa. No âmbito interno, no entanto, os portugueses ainda persistiam na conquista do território. Duzentos anos decorridos não foram suficientes para realizá-la.
As diversas lutas anteriores,  quer contra holandeses e franceses, quer contra diversas tribos indígenas, terminam por fixar contornos de uma noção de conquista, ou de guerra de conquista, entre os portugueses habitantes da colônia. Pode-se inferir de documentos históricos uma concepção  ou um embrião de teoria de guerra de conquista entre os portugueses que se envolveram, com armas, na conquista da colônia. Conquista da colônia ou invasão de terras indígenas, já que o conceito pode ser fixado a partir do português ou a partir do indígena. Povoamento português significou despovoamento indígena. É inevitável a conclusão = realidade.
Não se tratava de uma idéia de guerra tal como se praticava na Europa de então, embora a guerra em todos os tempos tenha apresentado traços comuns. Não se tratava apenas de uma diferença de armamentos. No particular destes, era incontestável a supremacia do português diante do índio. Desnecessário dizer que o português tinha a pólvora e graças à cooptação de alguns indígenas podia usar as armas e procedimentos destes em conjunto com suas próprias armas.
A diferença se estabelece a partir da guerra de movimento adequada, contra grupos de cultura diferente e com maior mobilidade em razão do tipo de vida que levavam. E também pelo caráter semi-privado do empreendimento da conquista, em condições próprias.
O território desconhecido, as formas desconhecidas de reação indígena, a multiplicidade de tribos, as dificuldades de alimentos e existência de pequenos contingentes guerreiros eram fatores que deveriam ser levados em conta.
Aos poucos, documentos foram expressando arranjos táticos, conselhos técnicos e normas dos quais se pode deduzir o que era o conhecimento da guerra, ou pelo menos o que era a idéia da conquista, entre os portugueses da colônia. Expressões como  “guerra brasílica” e  “estilo de guerra dos paulistas” aparecem nos documentos coloniais.
Esta exposição busca refletir a idéia ou noção de conquista, ou guerra de conquista, embrião de um pensar sobre a guerra, que se pode captar a partir de escritos, mas sobretudo de dois documentos dos anos vinte do século XVIII, que se referem à parte do território do Brasil, na Bahia, conhecido por Sertão da Ressaca.
Os dois documentos referidos dos quais se pode inferir uma idéia de guerra de conquista, que implica a existência de um pensar a guerra, são uma extensa carta do coronel Pedro Barbosa Leal ao Vice-Rei, Conde se Sabugosa, datada da Bahia, aos 11 de julho de 1725 ( mais precisamente a parte final de referida carta), e  uma  “Forma de Regimento que o coronel Pedro Leolino Maris a cujo cargo está a incumbência da Conquista e Governo que sua Magestade que Deus Guarde manda fazer ao gentio bravo que infesta os certões e povoados, e impede o povoar as excelentes terras, que habita, dá a cabo da dita conquista, e guerra, o qual observará a dita forma do regimento, enquanto o Excelentíssimo Senhor Vice-Rei deste Estado não mandar o contrário”,  datado de 11 de julho de 1727.
Ambos fazem parte do Códice  “Manuscritos do Brasil”, 7, existentes em Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, estudados em conjunto para fins do objeto desta exposição, pois se referem ao mesmo projeto.
Seus autores foram destacadas personalidades coloniais, exercentes de cargos públicos.
Pedro Barbosa Leal,  capitão de infantaria em 1691, foi dos mais importantes sertanistas. Seu nome está vinculado ao processo de ocupação de grande porção de terra na Bahia e em Minas Gerais. Foi um dos fundadores da Vila de Jacobina, guerreou índios na região do rio Doce, ocupou sesmaria nas Minas Gerais, entre o rio Doce e Itacambira. Realizou diversas tarefas de pesquisa de metais preciosos e de conhecimento de regiões nos Governos de João de Lencastre e do Conde de Sabugosa (Vasco Fernandes Cezar de Menezes).
Pedro Leolino Maris, chefe militar, exerceu cargo de Superintendente das Minas. Fundou casa de fundição em Minas Novas e vinculou-se a diversas iniciativas de busca de metais e pedras preciosas e de ocupação do território. Foi uma das mais importantes autoridades no Sertão no período de 1724 a 1763.
O território a cuja conquista se referem os documentos mencionados ( a carta de Pedro Barbosa Leal e a forma de regimento de Pedro Leolino Maris) é aquele que na história colonial teve o nome de Sertão de Ressaca. Este Sertão de Ressaca é uma faixa de terra situada entre os rios Pardo e das Contas, porém distante do mar, ou melhor além da Mata Atlântica. Grosso modo é território situado entre os paralelos de 14º e 16º de latitude sul e os meridianos de 40º e 41º de longitude Oeste. De forma mais estrita pode-se dizer que se trata da área do Planalto da Conquista, na mesorregião Centro-Sul da Bahia.
Sobre o território mencionado – o Sertão de Ressaca – surgiriam arraiais dentre os quais o principal foi o Arraial da Vitória, também conhecido como Arraial da Conquista, sede de um dos Distritos da Vila de Santana do Príncipe de Caitité (hoje Caetité). O Arraial da Conquista, no Sertão da Ressaca, fundado por João Gonçalves da Costa, deu origem à Imperial Vila da Vitória, depois Município de Vitória da Conquista.
Portanto é a partir de documentos que tratam da conquista do Sertão de Ressaca, onde surgiria depois a Imperial Vila da Vitória, origem do atual Município de Vitória da Conquista, que esta exposição procura auferir a idéia de conquista – um embrião da teoria da guerra de conquista na colônia.
Importa também dizer que farta documentação colacionada nos  “Manuscritos do Brasil” indica que a idéia de conquista não está apenas vinculada ao objetivo de descobrir novas fontes de riqueza, mas também de distribuir população que se concentrava bastante em Minas Novas – população que não tinha condições de manter, conforme se depreende de cartas de Pedro Leolino Maris ao Vice-Rei e a João da Silva Guimarães e vice-versa (Torre do Tombo/Portugal, e. Biblioteca Nacional/ Rio de Janeiro).
Enfim, antes de caracterizar a noção de guerra de conquista, é bom relembrar:
Por volta de 1720 grande contingente populacional ocupava regiões auríferas de Minas do Rio de Contas (na Chapada Diamantina) e de Minas Novas do Arassuaí (no Alto Jequitinhonha, àquele tempo integrante da capitania da Bahia). Em ambas as vilas foi estabelecida casa de fundição.
A partir destes dois núcleos, Pedro Barbosa Leal planeja conquistar o Sertão da Ressaca, em 1725, expondo em carta seu propósito, e Pedro Leolino Maris, após, faz idêntica proposta daquela conquista, resolve iniciá-la, expedindo para tanto uma  “forma de regimento”, depois de ouvir o Vice-rei do Brasil, Conde de Sabugosa.
A partir de ambos os documentos, pode-se verificar em que consistia a idéia de guerra,  ou de guerra de conquista naquele tempo.
É o que se vê a seguir.
Para efeito de digressão, o tema fica separado em duas partes. Na primeira destas, o interesse é centrado no  “pensar a conquista”,  enquanto que, na Segunda parte, o foco de atenção é a  “normalização da guerra”.  Uma conclusão sumária reaponta os traços fundamentais de um embrião implícito de teoria da guerra de conquista.
A exposição é breve.



2. Pedro Barbosa Leal – Pensar como fazer a conquista.


Após, em extensa carta ao Vice-Rei, sumariar aquilo que se conhecia sobre o sertão (Sertão de Ressaca, inclusive, como logo depois seria chamado), e de demonstrar porque tinha convicção de que aquele era rico em metais preciosos, Pedro Barbosa Leal indica, justificando  seus pontos de vista, como invadir e conquistar o grande território que medeia entre os rios das Contas, rio dos Ilhéus e Jequitinhonha. Área maior que a do  Sertão de Ressaca, porém compreensiva desta.
A primeira providência que Pedro Barbosa Leal indica para a conquista daquela região é edificar-se três arraiais: Um dos quais, no sertão, entre o rio das Contas e o rio dos Ilhéos (vê-se tratar do rio Pardo); outro entre o Jequitinhonha e o rio Doce, e o terceiro, com caráter de povoação, na Barra do Morro de São Paulo, no litoral.
Os dois primeiros arraiais, que seriam suportes da conquista, segundo Pedro Barbosa Leal deveriam ser fortificados,  para se sustentarem as tropas dentro do território inimigo, e cada um deveria contar com trezentos homens, dentre índios mansos das aldeias, paulistas, soldados pagos e paisanos. Os homens deveriam ser capazes de andarem descalços e de se alimentarem apenas de alimentos silvestres. Propõe aquele sertanista, para chefiar o primeiro  arraial, André da Rocha Pinto e Damaso Coelho de Pina, e para comandar o segundo arraial, propõe Domingos Dias do Prado, Lucas de Freitas e Pedro Leolino Maris, pessoas capazes e práticas no sertão.
Mas, o terceiro arraial – ou povoação, melhor dizendo – sito na terra firme, na ponta da Barra do Morro de São Paulo, teria finalidade administrativa e de conservação da conquista. Neste terceiro núcleo, já no litoral, haveria escrivão e almoxarife  “para o que pertencer à fazenda real”.  Daí partiriam expedições para os sertões referidos, com gente de guerra e munições. Seria posto fiscal e militar.
A povoação da ponta da Barra do Morro de São Paulo deveria ser ligada por estradas para os dois arraiais referidos para fins de socorro e de recolhimento de presas.
Pedro Barbosa Leal sugere que essa povoação litorânea poderia ser a sede de arrecadação para as minas do Rio de Contas, Tocambira e outras que fossem descobertas. Deveria a povoação a ser criada naquele ponto – Ponta da Barra do Morro de São Paulo – protegida com a fortaleza deste Morro e seria facilmente socorrida, em 24 horas,  pois estaria localizada a 12 léguas de Salvador, por mar. Além disso, a povoação apresentaria  “conveniências para o comércio por mar e o trato do sertão e suas minas”.
Feita a descoberta esperada das minas, as conveniências seriam mais esclarecidas, inclusive a presença de um administrador e o controle da população.
Pedro Barbosa Leal imagina que sobre os comandantes, para superintender a conquista, deve haver um cabo maior,  “pessoa de autoridade a que todos os subalternos tenham respeito e obediência”,  “Pessoa de prudência e valor e que tenha neste conhecimento dos sertões, dos naturais da terra, dos paulistas e da gente auxiliar de que se hão de compor as tropas para manter a união”.
A idéia de conquista em Pedro Barbosa Leal, portanto, é formulada em níveis bem determinados:
a) Define a região a ser conquistada: necessário é saber sobre qual região será dirigida a guerra da conquista. Esta é definida pelos limites dos principais rios aí existentes.
b) Delimita os objetivos: livrar a região do controle indígena e descobrir minas.
c) Formula estratégia que permita estar no campo adversário para manter a ofensiva (ter arraiais fortificados no campo inimigo).
d) A conquista precisa de pessoas adequadas – pessoas competentes para o comando, pessoas que possam sobreviver sem outra coisa que os alimentos silvestres adquiridos na campanha, e chefe para a manutenção da unidade do corpo de soldados.
e) A conquista não se exaure em combates: necessita ser conservada e administrada. Logo, a presença do Estado se impõe. Não basta vencer os inimigos, pois logo depois é necessário controlar os vencedores. Nesse sentido precisa de um núcleo administrativo.
A idéia de conquista, em Pedro Barbosa Leal, que reflete o estágio a que tinham chegado os portugueses na colônia, sobre o assunto, importa, assim em que:
A guerra de conquista deve definir a região a ser conquistada, delimitar objetivos e obedecer a um planejamento que garanta a continuidade com a presença do poder de Estado, e deve ser conduzida por um corpo com comando hierarquizado capaz de manter a ordem.
Estrategicamente, a guerra de conquista fáz-se conquistando, isto é, trata-se desde logo de ocupar o terreno, pois difícil eram as condições de recuo para o ponto de origem de partida da tropa. Não se trata de enviar expedições, derrotar o inimigo e retornar. A ocupação fá-se desde logo, com arraiais fortificados. Também é necessário que haja estradas de comunicação. A ofensiva de início parte do interior, mas depois sustenta-se a partir do litoral.
Pedro Barbosa Leal, com o pensar sobre a guerra, não entende a conquista como mero ato militar de impor a derrota. Conquistar é derrotar o inimigo, auferir lucros da conquista, mas administrar conquistados e conquistadores: um ato de poder permanente – a presença efetiva do Estado na região invadida e finalmente subjugada. Uma mudança de parte da população, não o simples domínio dos vencidos, e uma nova forma de relações sociais, que substitua as relações dos vencidos.
A idéia de conquista em Pedro Barbosa Leal supõe uma estratégia geral, que  busca o controle permanente do território. Vai  além da destruição do antagonista. Quer a construção de uma ordem dos conquistadores. Mas, a menção que faz à guerra brasílica e aos paulistas, indica que ele apreendera táticas de combate e que o pensamento sobre a forma de conquistar militarmente já podia ser estruturado em bases que refletiam situações concretas na colônia, em inícios do século XVIII. O Gênio europeu casava-se com meios descobertos nos embates dos colonizadores contra os índios (a presença de índios, já subjugados, em tropas de conquista era constante).


2.1.  Pedro Leolíno Maris – Pensar a Conquista e Normalizá-la.


No entanto, é “na forma de regimento” que o coronel Pedro Leolino Maris fez para a conquista do gentio bravo, que se observa com mais precisão a idéia de conquista – ou de guerra de conquista.
A “forma de regimento” está estruturada em 39 artigos, nos quais consubstanciam-se exigências de realizar tarefas e de seguir normas. Neste sentido, vai além da estratégia, pois normaliza o próprio modo de conquista e, em certo sentido, alguns artigos configuram uma lei marcial. Ao lado de execução de tarefas e de recomendações táticas, há normas de comportamento, típicas de código marcial.
Em primeiro lugar, trata-se de uma guerra oficial. Não se cuida de simples assalto de uma região por particulares. Para isso,  o autor da  “forma de regimento” preocupa-se em dizer autorizado pelo Vice-Rei do Brasil e determina que o cabo maior da bandeira, André da Rocha Pinto, perfile com os soldados diante do Senado da câmara da Vila de Rio de Contas e deixe patente o caráter oficial da conquista do sertão. Há um início solene.
Tal como ocorre com a carta  de Pedro Barbosa Leal, a “forma de regimento” escrita por Pedro Leolino Maris define o território a ser conquistado: faixa de terra entre o Rio das Contas Grande e o Rio Pardo. Área menor que a imaginada por Pedro Barbosa Leal. Área que corresponde ao Sertão de Ressaca: entre o Rio das Contas Grande e o Rio Pardo, porém na parte onde termina a mata grossa (Mata Atlântica) e começam os campos (mata de cipó, gerais, etc).
Também como acontece com o documento de Pedro Barbosa Leal, o escrito de Pedro Leolino Maris prevê a criação de arraiais no território inimigo. Mas não prevê a criação de um povoado na terra firme, no litoral. Tudo indica que Pedro Leolino se satisfazia com a existência da Vila de Minas de Rio de Contas e com a Povoação de Minas Novas do Arassuaí (esta é um de seus centros de atuação), para os misteres administrativo, fiscal e de apoio militar. Mas prevê igualmente estrada para a Vila de Ilhéus de onde espera socorro que deve ser enviado pelo Vice-Rei.
Mas, estrategicamente, está o sertanista Pedro Leolino Maris preocupado em conhecer todo o território e para isso manda que se faça um roteiro onde serão assentadas as ocorrências de minas, locais bons para roças e fazendas de gado, acidentes geográficos, etc., e, à própria medida que a bandeira penetre o território, vá fazendo estradas e roças: conquistar se faz conquistando e produzindo.
Tal como, em Pedro Leolino Maris, a guerra supõe um comando hierarquizado e obediência estrita ao cabo maior.
A tarefa é a conquista da terra, mas esta não é só a redução dos indígenas ao domínio português (Kamakã, Pataxó e Aimoré). É mais que isso, pois quer a ocupação efetiva do território economicamente: criação de fazendas de gado e exploração de minas de ouro, prata e pedras preciosas.
A conquista, segundo se depreende do texto da “forma de regimento” não se faz sem guerra aos indígenas, mas esta não exclui o oferecimento da paz. Entretanto, aos mucambos de escravos fugidos que, segundo informações, havia no território, impõe-se sua destruição e o aprisionamento dos negros.
A conquista implica a execução de tarefas táticas previamente definidas, dentre as quais: a) anotação de ocorrências com a descrição e delimitação de cada sítio percorrido (mesmo quando os soldados saíssem em busca  de seus alimentos silvestres, deveriam observar a região, dar informações sobre relevo e recursos, relatarem a existência de melhores locais para acampamento). A conquista é acompanhada da construção do conhecimento da terra para futura continuidade da dominação territorial. A conquista não se faz apenas com um ato. É um processo contínuo.
b) Plantação de roças – o regimento manda que, durante a marcha, sejam plantadas roças. É necessário que o terreno seja preparado para a  ocupação efetiva e tenha a possibilidade de alimentar futuros ocupantes ou mesmo os conquistadores em outro momento. Importa em dizer que a guerra é inseparável da imediata (embora rudimentar) ocupação econômica.
c) Abertura de estradas – o escrito manda que sejam abertas estradas para futuros transeuntes.  As estradas conduzem ao rio mais próximo ou deste partem.
d) Construir arraiais – Devem ser construídos arraiais dentro do território inimigo. No caso, Pedro Leolino Maris indica dois lugares para a construção de arraiais, porém estes não são permanentes. Mudam de acordo com a necessidade da campanha. Sempre devem ser feitas roças nos arraiais.
Mas ao lado das tarefas que os conquistadores devem realizar, há as normas de conduta que devem obedecer e a sanção em caso de seu descumprimento. São normas de conduta marcial.
As normas de conduta do escrito de Pedro Leolino Maris refletem idéias militares da metrópole ( e da Europa), mas também adicionam preceitos obedecidos nas guerras dos “paulistas”.
A primeira das normas de conduta do código marcial presente na  “forma de regimento” daquele sertanista é a de obediência ao um comando único, supremo, que, no caso, foi entregue ao coronel André da Rocha Pinto. É uma norma universal.
As outras normas de conduta podem ser resumidas em:  a) Dar socorro aos feridos em combate, não os abandonando; b) Não permitir deserção, prender e castigar asperamente o desertor, privando-o igualmente de qualquer prêmio no fim da conquista, exceto se o desertor reabilitar, lavando sua honra com o próprio sangue; c) Punir o desertor da paragem inimiga e do conflito, mantendo-o em corrente até resolução do Vice-Rei; d) Não permitir cisma e punir cismáticos e enredadores, a fim de manter a união; e) Não admitir desobediência do soldado a seu respectivo cabo; f) Coibir crime do soldado contra a lei e entregá-lo com a nota de culpa onde houver justiça; g) Não permitir, encontrando-se mina de pedras, que os soldados as explorem, devendo estes ficarem retirados em distância de dez léguas das minas; h) Não permitir que nenhum cabo forme bandeira particular, nem saia do arraial sem permissão do cabo maior; i) Punir o soldado que não se recolha ao por do sol.
A  “forma de regimento” de Pedro Leolino Maris prevê táticas de combate. As tarefas determinadas no escrito têm caráter tático, pois a realização delas interessa ao domínio do território inimigo. Porém o autor define também táticas de combate e, no particular, manda que seja observado o estilo de guerra dos paulistas. Obriga que a marcha tenha boa ordem, não seja demorada, que o acampamento se faça às dez horas e que os soldados se recolham ao por do sol.
Além disso, dispõe que: a) Deve-se manter sentinelas e adotar medidas convenientes para o pernoite em segurança; b) Acampar em lugar abundante de caça e pesca e não permitir que ninguém abandone o cordão; c) Não permitir deserção, nem desobediência ou cisma  (também, sob outro aspecto, norma de conduta marcial); d) Cuidar para que os caçadores e exploradores não campeiem muito ao largo a fim de não despertarem a atenção do gentio; e) Só atacar mucambos certificando-se das forças e com a certeza de que pode aprisionar os negros; f) Os batedores escoltados para abrir estradas devem ser protegidos por duas colunas de soldados  (esquadras), uma para proteger os trabalhadores, outra para caçar o sustento; g) Bater sempre as áreas próximas; h) Os ataques devem ser de surpresa; i) Evitar ser notado pelo inimigo; j) O cerco de grupo indígena deve ser feito de madrugada, chegando os soldados arrastados ao chão até bem próximo das choupanas e atacar de surpresa ( para o cerco devem ser escolhidos soldados que não tenham tosse, que não dêem espirros – a fim de não serem notados – e que sejam os mais fortes, sadios e vigorosos, e que não exponham os mais soldados a risco).
Obriga o regimento de Pedro Leolino Maris que os feridos sejam socorridos e dispõe sobre a partilha das terras conquistadas, das crias de negros aprisionados, dos indígenas feitos prisioneiros e dos prêmios de tomadia de escravos fugidos que forem presos. Observe-se que o Estado, através do Vice-rei, aquiesceu com o projeto de conquista e seu regimento (Manuscritos do Brasil, Livro 7).
Em Pedro Leolino Maris, a guerra é normalizada em seus diversos aspectos: de execução, estratégicos, táticos, de conduta, de prêmio, de tarefas. Fá-se  a guerra com recursos de armas, utensílios e munições previamente obtidos, mas o grosso do sustento cotidiano da tropa e sua manutenção é feito com caça, pesca e frutos silvestres, sendo fundamental a plantação de roças à medida que o território seja penetrado. Neste sentido, o regimento manda que o arraial só se mude para a proximidade do rio São Matheus quando roças feitas aí estiverem com frutos maduros. A conquista aparece como algo oficial, mas com resultantes e prêmios para os conquistadores que são atraídos para a mesma com promessa de recompensa.
A leitura conjunta dos manuscritos, para que se obtenha a idéia de conquista, é possível, pois ambos tratam da mesma matéria, são do mesmo tempo e referem-se ao mesmo projeto. Pedro Barbosa Leal houvera conseguido permissão para a conquista, mas não conseguiu levá-la a cabo. Pedro Leolino Maris propõe fazê-la (respeitando interesses de Pedro Barbosa Leal na partilha do resultado da guerra), continuando esforços do anterior, e obtém permissão, para isso, do Vice-rei.


3. Conclusão.

 


Da leitura de outros documentos da época (mas principalmente dos dois manuscritos citados), relacionados com a conquista (dentre os quais certidão de atos registrados pela câmara da Vila de Rio de Contas, transcritos no códice  “Manuscritos do Brasil”,  livro 7), pode-se inferir a idéia geral de conquista, que comporta os traços já assinalados no decorrer desta digressão, mas sobretudo permite as seguintes conclusões:


  A conquista é um processo de natureza econômico-militar, que atende a interesse público e privado, comporta divisão de trabalho e de atribuição, cujo resultado deve ser o domínio permanente de uma região e a substituição de um conjunto de relações sociais por outro. A necessidade da conquista ocorre quando a terra não responde às pressões que sobre ela exercem as pessoas de determinado local, exigindo distribuição de população. Disso se valem Estado e particular. A própria vila deve servir à conquista, ou mesmo ser construída em função desta – do investimento econômico que representa. A conquista é excludente.
Esta é uma conclusão possível da idéia/teoria da conquista que se encontra subjacente aos documentos: relatos, cartas, regimentos, etc.
                        A conquista é algo mais concreto/complexo que a guerra: envolve, além de tática própria de avanço sobre o território, escolha de determinada forma de ocupação de espaço e a escolha de forma de vida que se diferencia – às vezes amplamente – de forma anterior de seus agentes, pelo menos nos primeiros tempos..
                        “Conquista” sofre mutações no decorrer do processo histórico e suas opções levam em consideração uma gama variada de garantias para a realização do projeto. Afinal, não se trata apenas de resolver que determinado espaço vai ser ocupado, mas também de ter presente que aquele será objeto de nova construção e que os agentes estão dispostos a esvaziarem relativamente outro espaço e redefinir forma de vida. A idéia envolve a real possibilidade de arregimentar homens. Nem sempre é possível engajá-los como agentes pagos em razão da inexistência próxima de um exército profissional ou funcional. No entanto é viável a promessa de recompensa. A compulsoriedade de envolvimento pode ocorrer (obrigação de homens de se engajarem), não em função de um “emprego” ou “cargo”, mas em razão de uma circunstância histórica determinada que faz do projeto de conquista o seu projeto. A violência contra os inimigos/vencidos, volta-se depois contra os vencedores, já em condições de paz  (em verdade a violência altera, já que estar em serviço de guerra é também violência).
                        A idéia de conquista de Sertão de Ressaca, formulada nos anos vinte do Século XVIII, radica em torno de fatos bem concretos: uma crise em determinado espaço, uma vontade de enriquecimento, um projeto privado com chancela oficial, a presença de agentes dispostos a redefinir condições de vida em território não abordado anteriormente e a vontade colonizadora do Estado.
                        A conquista do Sertão de Ressaca possui especificidades em relação a outras ocupações ocorridas no Século XVIII, na Bahia, especialmente em certas regiões auríferas. Sua formulação é pensada e planejada de forma mais orgânica. Contraditoriamente o poder que estava às voltas com dificuldades de manter o processo de descoberta do ouro (ordenou por várias vezes El-Rei que não se fizessem novas descobertas pela dificuldade de manter as minas ou pelo medo de perdê-las) chancela o projeto de conquista daquele sertão e promete recompensas.
Desde os anos 20 do século XVIII, o Sertão de Ressaca foi objeto de planos de conquista, afirmação que contraria a idéia de que ele seria um território tampão estrategicamente não ocupado pelos colonizadores por opção do Estado Português.
Apesar da “Bandeira” organizada por Pedro Leolino Maris e do plano de conquista formulado por Pedro Barbosa Leal, somente a partir de 1750 é que as incursões de João da Silva Guimarães e João Gonçalves da Costa iniciaram o povoamento português daquele território,  o que significa o início do despovoamento indígena – a lenta agonia  dos Kamakãs, Pataxós e Aimorés. Estes foram varridos do Sertão de Ressaca.
É precisamente no Sertão de Ressaca que vai surgir a Imperial Vila de Vitória, origem de vários outros municípios.








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