terça-feira, 20 de setembro de 2016

A demolição


Ruy Medeiros

Há alguns anos, na cidade de Camaçari, foi dada a ordem: demolir! Agentes da ordem e do dinheiro (seriam a mesma coisa) mandaram não poupar nenhuma veleidade de sonho ou resistência.
O tratorista baixou a lâmina e movimentou sua máquina. De repente olhou mais atentamente: havia pessoas e seus casebres, último reduto a que se recolheu a necessidade de abrigo. Olhou novamente. E olhou. Viu gente, angustia e necessidade.
Dentro do motorista cresceu humanidade. Ele chorou. Desceu do trator e chorou. Entre a ordem, mulheres e homens com sonho pobre de abrigar-se em quase casebres, ele abandonou a ordem, mesmo sabendo que comprometeria seu emprego-subsistência. Havia uma verdade maior a respeitar, ele o entendeu.
Hoje, vejo repetir-se a primeira parte da história de Camaçari, mas não vejo a máquina parar. Vejo ordem repugnante e demolição. Ouço mesmo a ordem. Mas percebo sobretudo sofrimento, não apenas pela perda de algo, que era abrigo relevante, uma última trincheira, mas sofrimento intenso de vítima. E decepção quanto à autoria, sua ordem e seu poder.
Aí a civilização parou. Mas o que é civilização?    

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Uma Peça



Uma Peça

Ruy Medeiros

Ontem assisti a um espetáculo.

Os atores eram, no entanto, agentes do Estado. Espetáculo que reunia tom professoral, na forma de titularidade do saber único, muita luz artificial, gráficos, datashow. Mas não havia música ao fundo, esse componente que tempera cenas. Não era lousa eletrônica o receptáculo da imagem. Não se chegou a esse requinte.

O ato único da peça seguia realisticamente o andamento de histórias semelhantes a “Os Demônios de Loudun”, “As Bruxas de Salém”, caça às feiticeiras. Mas, o objetivo de apontar o inimigo público número um, aproximava-o do Macartismo.

Havia de estonteante na peça, apesar do tom professoral, o fato de autores/atores, que deveriam dirigir-se (no texto e na leitura) a julgador, transformavam a todos da plateia em julgadores. Não será um juiz pois, como a personagem é inimiga do povo, deve ser julgada por esse, no momento de escolhas, de preferência com o uso do ódio. Um tipo de Tribunal de exceção cuja doutrina é algo como direito penal do inimigo. Os autores/atores assim fizeram de sua peça/peça uma clivagem partidária.

Não se tratava de uma peça/peça técnica do Estado dirigida ao Estado. Dirigida àqueles cujo julgamento pode variar do perdão ao pedido de fuzilamento (na plateia julgadora estão presentes tantos humores), buscava o pronunciamento de preferência, do ódio. Nada republicano. Para os inimigos de outra coloração, não se sabe se outros atos da peça/peça serão destinados.

No entanto, na quietude de muitos gabinetes, seguindo os trâmites predeterminados em códigos, outros trabalham dirigindo suas peças, de caráter técnico, àqueles que deverão, na forma ordenada previamente e aprovada por representantes, julgar pessoas acusadas do cometimento de delitos. Há aqueles que não arrumam os fatos de acordo com um objetivo, mas de acordo com a necessidade da busca da verdade que surge do material encontrado. Há República e república.

Não tenho condições de julgar o inimigo público número um, representado num circulo com cores partidárias, circundado por outros círculos, nem de seus adversários, mas sei que a história/estória da peça/peça a que assisti não é um bom caminho para realizar julgamento.

Mas será que a peça/peça é um exercício didático republicano para expressar de forma expressionista como se inicia um processo sob os domínios do führer, que deve ser evitado? Em literatura, tudo é possível, inclusive a paranoia de Bentinho para condenar Capitu.

Estou com vontade de reler, como fiz tantas vezes, “o julgamento de prometeu”, que se encontra em “Histórias Extraordinárias” de Karel Capek (coloquem um ^ invertido sobre o C, pois não encontro esse acento tcheco em teclado, para obter o som de tch). Não é só.



15 de setembro de 2016.


A Conquistense do Araguaia

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