segunda-feira, 22 de abril de 2019

A caça e a regra






Para Mário, que sabe que a caça possui regras.

Ruy Medeiros




Eles apareceram e apareceram muito, como queriam aparecer. De integrantes de uma instituição do Estado, eles queriam muito mais: normatizar condutas sob pretexto de melhor aplicar as normas de caçar e punir.
Eles – não todos os membros da instituição – foram à caça. Imaginaram-se salvadores. De garantidores do direito estimavam-se ungidos do poder de vingar atribuído aos heróis. Assim ontem e hoje.
E, então, confundiram e confundem moral e direito e por isso igualmente confundiram e confundem sanção jurídica com sanção moral. A punição moral, que é difusa (a sociedade vale-se do opróbio, chacota, reprovação e recriminações difundidas em seus seguimentos), precedia sistemática e amplamente a sanção jurídica, que é organizada e concentrada no Estado julgador e segue regras não espontâneas: não é chacota, nem riso, nem xingamentos, pois é pena decorrente de um devido processo legal.
E a sanção moral era (é) buscada amplamente como o capitalista busca a reprodução do capital (a comparação não é gratuita). À noite, aqueles membros da instituição alimentavam imprensa, rádios, blogs, o diabo-a-quatro. Pela manhã esses regurgitavam o alimento noticioso e aqueloutros se deliciavam com o regurgitamento. Ficavam cientes que, com o estardalhaço dos meios de comunicação, ninguém poderia opor-lhes.
A pressão moral realizava-se amplamente sobre investigados. Quem iria desobedecer a onda moralista e com isso a ira social? Com a pressão que se estendia aos outros poderes do Estado, eles conseguiam despojar o direito de qualquer conteúdo ético, por que não se pode, nessa frente de batalha, falar-se em devido processo legal, com seu valor ético. A defesa segue já despojada de algumas armas, enfraquecida.
A falta de um júri espetaculoso (no qual regras de procedimento teriam de ser obedecidas) buscavam o espetáculo vulgar. Imprensa convocada, instrumentos na mão, lugar de evento contratado e pago, realizava-se a função e atores do Estado a várias vozes liam o texto: não era denúncia ou libelo acusatório. Estes são dirigidos ao Estado julgador. A peça lida era dirigida à plateia presente e alcançava toda sociedade por intermédio de rádios, televisões, jornais. É como dissessem: “nós os acusamos à sociedade que os julgará”. E isso se repetia: é que o comportamento seguia a lógica da sanção (punição) moral: ser difusa. Não seguia concentração e processo legalmente controlado, regido pelo contraditório e defesa plenária. Só uma parte fala. Antes de dirigir-se ao juiz a denúncia, esta era dirigida à sociedade.
Não se tratava de exagerado apreço pela informação. O objetivo buscado era outro. Não se tratava de cultivar o direito de informar e obter informação nem de liberdade de imprensa. Diferentemente disso estabelecia-se o contínuo procedimento de inversão e prévia condenação de investigados pela midia e pela sociedade (alguns dos caçados foram absolvidos pelo Estado julgador e isso demonstra que o julgamento difuso, moral, sequer segue a alegada moralidade).
Logo a inversão acentuou e alimentou práticas de acordo com o “clamor popular” (opinião publicada substitui opinião pública na manipulação social). Não só ocorreram “vazamentos” ilegais, pois também aconteceram francas interceptações telefônicas e sua divulgação fora da lei, pedido e apoio a conduções coercitivas ilegítimas, prisões preventivas abusivas.
Um grupo, dentro da instituição, conhecedora do uso político da moralidade, não teve dúvida e fez o “link”: moral-política. Com isso responderam ao sofrimento de frustrações e desencantos potencializados pela crise, insatisfação e a situação político-econômica, com o ideário salvacionista de bons costumes, pátria e família. Muitos engajaram-se na campanha de um capitão reformado.
Contrariando o cânone da Constituição que a moldou, dentro da Instituição o grupo que se atribuiu o papel de vingador social, vem patrocinando o direito penal do inimigo (no Brasil, isso aproxima o investigado da situação de inimigo interno da doutrina da segurança nacional). Era e é previsível a que ponto isso pode chegar.
Agora, sobre a instituição (o leitor já sabe que se trata do Ministério Público), abate-se o impasse: quando os ministros do STF resolveram buscar justiça pelas próprias mãos (a um só tempo investigadores, julgadores, censores, aplicadores), ficou visível que a Instituição dentro da qual um grupo obstaculizou o exercício regular do direito sem sofrer firme oposição, não encontra o caminho de volta, nem se abre para ouvir vozes não morosas.
Vale lembrar:
Há séculos, a própria caça passou a possuir classificação e regras: caça de montaria (caça utilizando-se cavalo e arma de fogo), volatória (com utilização de aves de rapina ensinadas), altanária (caça de volatória). Há tratados antigos sobre isso, dentre os quais – Livro da Montaria, de Dom João I, Rei de Portugal; Livro de Ensinança de bem calvagar toda sella, de Dom Duarte. O direito passou a regulá-la: o alvará de 31 de Outubro de 1468 apenava todos aqueles que utilizassem rede, candeia (tocha) e boi (caçador cobrir com o couro do boi para enganar as aves, que o seguiam), na caça de perdizes. Provisão de 7 de novembro de 1499 previa pena para aqueles que utilizassem bestas e armadilhas para caçar pombas. Lei de 19 de dezembro de 1560, de Dom Sebastião, proibiu que em março, abril e maio houvesse caça a perdizes e destruição de seus ovos,…
A própria caça possuía regras e penas.
Hoje, trata-se de caça?
O certo é que a instituição não está encontrando o caminho de volta e não pode ampliá-lo e o STF, por seu presidente, desconhece que até mesmo a caça tem suas regras, mesmo que se trate de caça altanária.



segunda-feira, 15 de abril de 2019

DIFFICILE EST SATYRAM NON SCRIBERE





Ruy Medeiros
Apresso-me na tradução: é difícil não escrever sátiras.
Horácio, poeta latino clássico, respondeu a um amigo, em versos, que lhe era difícil não escrever sátiras. A realidade circundante exigia versos satíricos.
Vivemos em situação com desafio semelhante àquele com o qual Horácio se defrontou: há coisas que já não desafiam respostas comuns e comportam sátiras.
O governo atual e seus apoiadores são campo fértil, em razão de seus dasatinos intelectuais (?), para sátiras. Poeta satíricos, fiquem a postos.
O ex-Ministro da Educação disse do alto de sua sapiência que não houve ditadura no Brasil (a dita, implantada em 1964). Teria havido singelamente uma “democracia forte”.
Não sei se o conceito servirá para enobrecer a surrada Ciência Política. Mas cassar mandatos eletivos, suspender direitos políticos, aposentar compulsoriamente, prender ilegalmente, torturar e matar adversários políticos, tudo isso receber o nome de “democracia forte” é bruta violação da inteligência.
Já o ministro de relações exteriores (coloquem em letras minúsculas) demonstrou ser um expert em não saber o que foi o nazismo: afirma que se tratou de um governo socialista. Um Diplomata alemão não se conteve e respondeu que essa afirmação ministerial era uma asneira. Isso não impediu que o culto capitão reformado repetisse a aula de seu ministro, em Israel.
Flávio, filho do Capitão, deputado, diante da evidência de que parte da remuneração de seus assessores Parlamentares ia para a conta de seu assessor-chefe, deixou claro que delegou a esse o gerenciamento dos ganhos de seus assessores. Como?
Mesmo no que se refere aos parentes dos milicianos que atuavam em seu gabinete?
Mas, o que dizer do atual ministro da educação para o qual o Nordeste do Brasil só necessita de Cursos de Agronomia no que respeita ao ensino superior? Certamente que os nordestinos e todo o Brasil precisam também de outros cursos, apesar de ficarem muito gratos se vierem estabelecimentos tão importantes como as Escolas de Agronomia, que contribuíram muito para transformar o País em grande produtor e exportador de alimentos. Não deprecie, doutor!
Devem estar lembrados que Maristela Basso, professora do Curso de Direito da USP (pobre USP!), pelo microfone da Jovem Pan lecionou que Bolivar, O Libertador, sofreu influências de Marx e Lenin, cujas obras eram muito lidas em seu tempo. Bem, milagre dos milagres. Não se sabe como isso acorreu.
Em verdade, Simón José Antonio de la Santíssima Trinidad viveu de 1783 a 1830. Karl Marx ainda era menininho quando Bolivar nasceu, pois o filósofo alemão veio ao mundo em 1818 e quando Bolivar morreu mal garatujava com letras góticas. E Lenin? Vladimir Ilitch ULianov, Lenin, nasceu em 1870, quatro décadas após a morte de Bolivar. Esses comunistas fazem milagre: um doutrina o mundo quando ainda era criança, outro já agitava toda a América quando ainda não era nascido. Perigosíssimos!
O deputado Kim Kataguiri, dentre outros ensinamentos, tornou evidente que Karl Marx revisou suas ideias no período da Primeira Grande Guerra (1914-1919), quando o famoso filósofo já contava mais de 30 anos de falecido. Cara perigoso, retornou ao mundo depois de falecido, e revisou suas obras!
Pega leve, gente!
É nisso que dá quando se estuda em escola sem partido.
Dificcile est satyram non scribere. 













































terça-feira, 9 de abril de 2019

O frasista e o ato


Ruy Medeiros


Ontem, 8.04, o programa de entrevistas mais antigo da TV no Brasil, Roda Viva, da Cultura, conversou com o muito conhecido Delfim Neto por sua capacidade de ironizar e de produzir muitas frases de efeito, um frasista como se dizia.
O ex-Ministro, Delfim, criticou as politicas econômicas postas em prática após ditadura militar, mas elogiou o Plano Real ao qual, no entanto, fez reparos à política de câmbio escorada na taxa de juros.
Mas, o que aqui me interessa é aquilo que o ex-ministro (quase Primeiro Ministro) de alguns governos militares opinou sobre o Ato Institucional n° 5, de 1968. Delfim Neto disse não estar arrependido por aceita-lo e destacou o fato de que a proibição de Habeas Corpus aos presos e detidos por atos de natureza politica era uma garantia (!!!). Segundo o economista entrevistado, a supressão da garantia do Habeas Corpus significava que o Estado assumia toda a responsabilidade pelo preso e por sua integridade.
Nunca se ouviu uma falácia tão grande como a apreciação de Delfim em relação à proibição de juízes deferirem Habeas Corpus a aprisionados com motivação politica. Habeas Corpus é garantia democrática, garante a liberdade, inclusive a autonomia de conduta.
Historicamente, aquela apreciação do economista entrevistado é falsificação: a supressão do Habeas Corpus não garantiu o preso, nem sua proteção pelo Estado. Ao contrário disso, muitos presos foram torturados e assassinados nas prisões da ditadura militar, muitos foram tirados das prisões e assassinados. A história é bem conhecida.
O ex-ministro deixou de falar sobre outras atrocidades permitidas pelo Ato Institucional n° 5, depois incorporado à Constituição por sua Emenda n° 01/89, dentre as quais: permissão ao Presidente ditador para cassar mandatos, suspender direitos políticos, expropriar bens, decretar recesso do Congresso Nacional, expropriar bens de particulares, decretar como de segurança nacional municípios e indicar seu prefeito etc.
É sempre bom lembrar, pois estamos vivendo numa fase obscura de nossa história onde se pretende até negar a existência da ditadura militar e suas atrocidades.
P.S. Caiu o Ministro da Educação e já foi substituído. O atual é aquele que, em evento público e concorrido, declarou que as grandes empresas brasileiras e a grande imprensa do Brasil são controladas por empresários comunistas. De uma sátira na qual Horácio, velho poeta latino, respondia a um amigo que, diante da situação existente em sua sociedade, era difícil não agir como ele agia, ficou a conclusão assim sintetizada: é difícil não escrever sátira. É isso, diante da situação politica atual é difícil não fazer sátira. Stanilaw Ponte Preta (Sérgio Porto) faz falta.
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segunda-feira, 1 de abril de 2019

Enterrando ossos






Ruy Medeiros

À memoria de Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho


Estranha ordem do dia, ou mensagem de co(re)momeração foi lida nos quartéis por determinação do Presidente da República. Dela pode ser feito um resumo naquilo que respeita à história: não houve ditadura no Brasil.
Trata-se de negar para esconder algo de que se envergonha?
Em verdade, cabe pedido de desculpas, no mínimo, por aqueles que impuseram a ditadura:
Desculpa por atentar contra a democracia: depondo Presidente eleito cujos poderes, depois de limitados, foram restituídos pelos eleitores em plebiscito; cassando mandatos legislativos e executivos legitimamente conquistados em eleições; suspendendo direitos políticos; estabelecendo eleições indiretas para governadores e senadores (uma cadeira por Estado federado); extinguindo partidos políticos; impondo a um Congresso um Presidente e uma Constituição, para que esse os aprovasse sem recurso à recusa; impondo Decretos-leis aprovados por decurso de prazo;
Desculpa por atentar contra a ciência, a cultura, a inteligência, liberdade de pensar, cantar, ler e liberdade de informar: censurando livros, músicas, teatro, filmes, jornais e revistas; expulsando professores, estudantes e cientistas das escolas e universidades, impondo a necessidade de exilio a intelectuais, isto é, impedindo a vivência democrática.
Desculpa por atentar contra a liberdade: vigiando, coagindo, prendendo e ameaçando pessoas e grupos.
Desculpa por atentar contra a vida: matando e torturando.
Desculpa por fazer isso tudo e deixar como herança: pesada dívida pública, impedindo investimentos necessários para a implementação de direitos sociais; não esclarecimento de crimes perpetrados pelo poder, luto incerto, sofrimento, nódoa marcante e indelével na história do País;
Agora, como se não bastassem luto mal realizado e corpos ocultados, ao invés da voz da verdade – a negativa dessa.
Ossos, como em Perús, que eram enterrados clandestinamente com finalidade de apagar crimes de governantes, agora têm como sequência o vergonhoso enterro da verdade. Em nota, os ossos da verdade são sepultados à luz do dia, negando ossos escondidos.
Enterro da verdade feito ao modelo de qualquer república banana.
Antígona, filha de Édipo, foi proibida por Creonte de dar sepultura a seu irmão. Ergueu-se no entanto contra a proibição de seu tio e lançou terra sobre o cadáver insepulto que se destinava a ser pasto de abutres. Antígona foi punida: viva foi enterrada no túmulo dos labdácidas (ancestrais de Édipo).
Lá, na Grécia, o fato é lendário. E aqui?
O poder muitas vezes não devolveu corpos no Brasil e as Antígonas brasileiras não receberam sequer desculpas, no entanto, tanto tempo é passado.
Recebemos elas e nós a abominável mentira.
A ditadura também é isso, senhores. Ela existiu, deixou herança e herdeiros:
Esses que negam sua existência.

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Instituto Vladimir Herzog
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A Conquistense do Araguaia

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