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TESE DE DOUTOURADO
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA
PROGRAMA
DE MESTRADO E DOUTORADO EM MEMÓRIA, LINGUAGEM E SOCIEDADE
RUY HERMANN ARAÚJO MEDEIROS
MEMÓRIA
COMPARTILHADA E HISTÓRIA: ENTRE ALIENAÇÃO E IDEOLOGIA.
Vitória da Conquista/BA
2015
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MEMÓRIA
COMPARTILHADA E HISTÓRIA:
ENTRE
ALIENAÇÃO E IDEOLOGIA
Tese apresentada ao Programa de Mestrado e Doutorado em Memória,
Linguagem e Sociedade, como requisito obrigatório para Conclusão do Curso.
Orientador: Prof. Dr. Sérgio Eduardo Montes Castanho
Co-Orientadora: Profa. Dra. Ana Palmira B. S. Casimiro
2015
© by Ruy Hermann Araújo Medeiros,
2015.
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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca....................
Bibliotecária – CRB-
M h
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Medeiros, Ruy Hermann Araújo
História Compartilhada e Memória: entre
Alienação e Ideologia/ Ruy Hermann Araújo Medeiros. – Vitória da Conquista,
Bahia – UESB – Doutorado em Memória, Linguagem e Sociedade, 2015.
145p.
Orientador: Sérgio Eduardo Montes Castanho
Co-Orientadora: Ana Palmira Bittencourt
Santos Casimiro
dTese (Doutorado) – Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia, Programa de Pós-Graduação em Memória, Linguagem e
Sociedade.
1.V. da Conquista – Memória – História. 2.
Teoria da História. 3. Alienação. 4. Ideologia. 5. Crônica. I. Castanho,
Sérgio Eduardo de Montes. II. Cassimiro, Ana Palmira Bitencourt Santos.
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Programa de Pós Graduação e
Memória, Linguagem e Sociedade – UESB. III. T
CDD
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Título em inglês: Shared Memory and History: between
alienation and ideology
Keywords: History, Memory, Shared Memory, Immobilized
Memory, Mode Of Production, Alienation, Reification, Ideology,
Institutionalization Historical Materialism.
Área de
concentração: História, Sociedade e Memória.
Titulação:
Doutor em Educação
Orientador: Sérgio
Eduardo Montes Castanho
Co-Orientadora:
Ana Palmira Bittencourt Santos Casimiro
Data da
qualificação:26/02/2015
Programa de
Pós-Graduação: Memória, Linguagem e Sociedade
e-mail: ruy-medeiros@uol.com.br
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MEMÓRIA
COMPARTILHADA E HISTÓRIA:
ENTRE
ALIENAÇÃO E IDEOLOGIA
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Prof. Dr. Sérgio Eduardo Montes Castanho
(UNICAMP)
Orientador
____________________________________________
Profa. Dra. Ana Palmira B. S. Casimiro
(UESB)
Co-orientadora
____________________________________________
Profa. Dra. Ana Elisabeth Santos Alves
(UESB)
_____________________________________________
Profa. Dra. Mara Regina Martins Jacomelli
(UNICAMP)
____________________________________________
Prof. Dr. José Alves Dias
(UESB)
______________________________________________
Prof. Dr. José Claudinei Lombardi
(UNICAMP)
SUPLENTES
_____________________________________________
Prof. Dr. José Luís Sanfelice
(UNICAMP)
______________________________________________
Profa. Dra. Lívia Diana Rocha Magalhães
(UESB)
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A
Alberto Medeiros Pereira
e
Antonieta Araújo Pereira
(Medeiros),
meus pais.
In
memoriam
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Mais que
agradecimento, registro minha gratidão ao Professor Doutor Sérgio Eduardo
Montes Castanho pela orientação prestada de forma profícua, ética e amigável.
Com ele aprendi muito.
A Nelci, Kátia, Mário, Ruy
(neto), e Rebeca declaro a mesma gratidão por haverem compreendido a vontade
sexagenária de continuar estudando.
Com muita
vontade de fazê-lo, consigno gratidão aos Professores Doutores Ana Elizabeth Santos
Alves, Rita de Cássia Mendes Pereira e José Alves Dias.
Muitíssimo
grato sou a você, Daniela Miranda, colega.
Não deixo
de agradecer, nem posso deixar de
fazê-lo, a Daniela (Dany) Moura e ao grupo de pesquisa coordenado por Ana
Palmira, que possibilitou a discussão da
parte mais substancial do presente trabalho, e pelo estimulante convívio
intelectual. Igualmente sou devedor de agradecimentos, que externo, às
coordenadoras do Programa de Pós- graduação em Memória, Linguagem e Sociedade
da UESB, Lívia Diana e Conceição Fonseca. Aos professores José Claudinei
Lombardi (Zezo) e Mara Jacomelli sou grato pela disponibilidade demonstrada
quanto à participação na banca examinadora de doutorado referente à presente
tese, fato que me envaidece.
Gratidão
especial, gravada para durar, revelo à Professora Doutora Ana Palmira B. S. Casimiro,
co-orientadora desta tese. Além de sua grande colaboração no decorrer do curso
de pós-graduação, incentivou incansavelmente a elaboração deste trabalho.
Muito
obrigado a todos.
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cada uma
tem mil faces secretas sob a face
e te pergunta, sem interesse pela resposta
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
(Carlos Drumond de Andrade,
Procura da Poesia)
Choveu memória onde em pedras devera
estar a mente presa e sepultada,
dormindo escura, qual ouvido à cera
entregue para a surdez fria do nada.
(...)
Choveu memória no que em mim me pesa
Afivelando o tempo do meu instante,
Onde eu devera, livre do momento,
Haver entregue eternamente ao vento
Minha memória já de mim distante
(Nauro Machado, Nau de Urano, soneto 122).
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Memória compartilhada e História:
entre alienação e ideologia, tese de doutoramento, trata basicamente da
delimitação de campos do saber – História e memória – e da relação entre
memória compartilhada e o ser social, diante das intermediações na forma de
alienação, reificação e ideologia, e do fenômeno de sua institucionalização. O
autor defende o ponto de vista segundo o qual a objetivação da memória em
determinado suporte material tem consequências cruciais para a relação
História/memória e por isso os estudos devem levar em consideração a memória
objetivada. Segundo o autor, é possível não apenas uma delimitação
epistemológica entre aqueles campos do saber, porque ontologicamente pode-se
obtê-la. Isso é possível porque uma coisa é o processo objetivo dos homens no
tempo e coisa diferente é a memória que se faz disso, mas esse processo é
apreendido pela consciência da qual a memória é atributo essencial. Nessa
apreensão consciente e metódica, o historiador utiliza-se da memória
imobilizada, isto é, objetivada, e o fim que a objetivação da memória buscou
pode não ser o mesmo que o historiador atribui. O historiador não evoca, estuda
à luz da ciência. Ele mantém independência diante da memória, indo além do
desejo do memorizador, e denuncia a institucionalização da memória
compartilhada. A História confundiu-se com a memória (embora seja diferente
desta), em diversos momentos do percurso de seu estabelecimento como saber, e
realizou-se inclusive como história-memória, mas as possibilidades criadas pelo
acúmulo de conhecimentos já permitem que seja estabelecida a demarcação entre aqueles
campos de conhecimento. Com isso o autor concorda e aponta resposta possível
para a questão.
Palavras
chave: História.
Memória. Memória compartilhada. Memória imobilizada. Modo de Produção. Alienação.
Reificação. Ideologia. Institucionalização. Materialismo histórico.
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“Shared
Memory and History: between alienation and ideology”, it´s a PhD thesis that,
basically, deals with the delimitation of fields of knowledge - History and
memory - and the relationship between shared memory and social being, in the
face of intermediation in the alienation form, reification and ideology and the
phenomenon of its institutionalization. The author defends the point of view
that the objectification of memory in certain material basis has crucial
consequences for the relationship between history/memory and, because of that,
the studies must taken into account the objectified memory. According to the
author, it is possible not only an epistemological distinction between those
fields of knowledge, because ontologically we can get it. This is possible
because one thing is the objective process of the humanity in time, and another
thing is the memory that forms about it, but this process is seized by the consciousness
that the memory is an essential attribute. In this conscious and methodical
apprehension, the historian uses the immobilized memory, that is, objectified
memory, in the order that the objectification of memory sought cannot be the
same as the historian attributes. The historian does not evoke, he studies by
the light of science. He maintains independence from memory, going beyond of
the desire of memorizer, and denounces the institutionalization of shared
memory. History confused with the memory itself (although it is different), at
many moments of the route of its appropriation as knowledge, including as
history-memory, but the possibilities created by the accumulation of knowledge
already permit for the setting of demarcation between those fields of
knowledge. Therewith the author agrees and points possible answer to this
question.
Keywords: History. Memory. Shared memory. Immobilized
memory. Mode of Production. Alienation.
Reification. Ideology. Institutionalization. Historical Materialism.
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1.INTRODUÇÃO................................................................................................................... 12
2.PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS............................................... 17
2.1.Antecedentes.................................................................................................................. 17
2.2.
Considerações da teoria e do método....................................................................... 25
2.2.1.Consciência:
o marco inicial..................................................................................... 25
2.2.2.Considerações
do Método......................................................................................... 27
3.MEMÓRIA E HISTÓRIA.................................................................................................... 32
3.1.
Campo da Memória. Visão preliminar........................................................................ 32
3.2.
Plurivocidade e qualificação....................................................................................... 35
3.3. A memória
imobilizada, a memória animada e a história....................................... 37
3.3.1.Exteriorização
da memória........................................................................................ 37
3.3.2.Positivismo
e história – memória.............................................................................. 41
3.3.3.A
primeira e segunda geração dos Anais e História............................................. 45
3.3.4. A terceira geração dos Anais e memória................................................................ 50
3.3.5. A História oral e a memória....................................................................................... 58
3.3.6. Materialismo histórico e memória............................................................................ 61
4.AS
BASES MATERIAIS DA MEMÓRIA SOCIAL OU COMPARTILHADA.............. 68
4.1.Memória,
trabalho e modo de produção..................................................................... 68
4.2.Memória
e transformação social.................................................................................. 73
4.3.Memória
e conservação atual do passado................................................................. 78
5.MEMÓRIA
COMPARTILHADA, ALIENAÇÃO, REIFICAÇÃO E IDEOLOGIA......... 82
5.1.Memória
e alienação...................................................................................................... 82
5.2.Memória
e reificação................................................................................................... ..88
5.3.Memória
e ideologia.............................................................................................93
6.COMPARTILHAMENTO
DA MEMÓRIA E USO IDEOLÓGICO DA MEMÓRIA COMPARTILHADA 103
6.1.Compartilhamento
da memória................................................................................. 103
6.2.Institucionalização
da memória compartilhada...................................................... 107
6.3.Uso
ideológico da memória compartilhada............................................................. 109
7.REGISTRO DA MEMÓRIA....................................................................................116
7.1.Fontes e memória – o escrito.............................................................................116
7.1.1. O escrito e a História......................................................................................118
7.1.2.
O escrito documental – forma de tratamento.................................................122
7.2.O texto ficcional:
romance e história, literatura de viagem, memórias...............125
7.2.1. Romance
e História........................................................................................125
7.2.2.
Literatura de viagem.......................................................................................128
7.2.3.O
Romance Histórico......................................................................................129
7.2.4.
Memórias. Romance de não ficção................................................................131
8.
CONCLUSÕES.............................................................................................................. 134
9.
BIBLIOGRAFIA UTILIZADA.......................................................................................... 143
1.
INTRODUÇÃO
Esta tese trata da memória em seu
aspecto social e de sua relação com a História. Seu texto busca explicitar
divergências e convergências entre esses campos e, após, discorre sobre o uso
da memória social, ou compartilhada, entre mediações da alienação e da
ideologia.
Seu núcleo encontra-se na afirmativa de que a memória compartilhada é
condicionada por bases materiais. Em outras palavras importa dizer que ela
vincula-se a determinada formação econômico-social. É que a atividade material
dos homens, a forma como se encontra organizada a produção o tipo de relação de
produção, técnicas, processos produtivos e conflitos disso tudo decorrentes
moldam a memória que se compartilha na sociedade. E mesmo não há como pensar em
ideias e representações sem memória fundada nas mesmas bases: a atividade
material.
Grupos sociais, família instituições, etc., têm a marca da formação
social. E também a possui a memória. No entanto isso, não ocorre linearmente,
pois há lutas de classes e de grupos, interesses divergentes, disputas pela
prevalência de determinada versão sobre fatos e processos e mediações fortes:
alienação/reificação e a ideologia. Além disto, é possível a sobre vida da
memória compartilhada, em certas situações quando determinado modo de produção
esvai-se.
O núcleo referido pressupõe igualmente que a História, embora imbricada
com a memória (e exista mesmo uma história-memória), com essa não se confunde.
Impregnada de memória vige a História, porem com esta demarcando fronteiras: a
memória que encontra no documento e no artefato é tratada de forma especifica
pelo historiador. Este não apenas evoca, pois busca compreender o processo
histórico com o instrumental produzido pela ciência, indo além da memória e
mesmo transgredindo esta na forma como fora imediatamente desejada por aquele
que memorizou, para alcançar descobertas novas. O historiador pretende
encontrar a estrutura elementar do passado e embora se utilize de sua própria
memória e da memória com que os homens impregnaram tabuinhas de argila,
papiros, pergaminhos, papéis, artefatos, etc., a sua imaginação não é mera
lembrança, o seu estudo não é evocação nem mera retenção (memória evocativa e
memória retentiva), e desnuda a memória compartilhada quando demonstra seus
condicionamentos e denuncia-lhe a institucionalização. O historiador sobre tudo
trabalha cientificamente com a memória objetivada.
O texto encontra-se dividido em
capítulos articulados entre si. Foram, no entanto, concebidos de forma
temática, ou seja, são temas articulados que possuem certa autonomia de
leitura, mas que são tangenciados por conclusões gerais, ao final.
O item dois desta tese é direcionador, pois
cuida de pressupostos, no caso – de pressupostos teóricos e metodológicos cujo
referencial encontra-se na concepção da formação social da consciência e no
materialismo histórico. Entende o autor que sem o trabalho e a vida em
sociedade não haveria consciência, que a memória é atributo inafastável dessa
e, no decorrer do desenvolvimento da espécie humana, ela precisou ir além de
sua função retentiva interna para exteriorizar-se e esse fato possui larga
consequência para os estudos da relação da memória com a História (campo do
saber) e da história processo que envolve homem e suas relações no tempo. No
entanto, não se pode deixar de entender que são múltiplas as dimensões de uma
realidade reconstruída na consciência: realidade complexa exige que sua
construção espiritual considere suas múltiplas determinações, em movimento,
contradições, interações, etc.
Uma antecipação maior não cabe no
espaço da introdução, mas deve-se informar que o materialismo histórico aqui
não encontra nenhum fundamento em mecanicismo de aplicação de conceitos,
respostas já encontradas desde o início, presentismo,
etc, como algumas leituras e alguns textos sugerem.
O terceiro item trata da memória, incluindo
informações bibliográficas e formas de como a memória foi concebida, inclusive
a chamada memória coletiva. Ai já se encontra parte do tema propriamente dito,
pois são examinadas as principais correntes teóricas da História e o possível
tratamento, ou concepção, que delas pode decorrer do fenômeno da memória
social, ou compartilhada. Ficou assentado o caráter contraditório do
positivismo histórico que, querendo fundar a História (ciência) construiu
memória, a história-memória; a insuficiência da Escola dos Anais quanto ao
tratamento do tema, embora já houvesse estudo contemporâneo sobre o assunto; a
não convergência dos autores da História Nova (que tem origem na escola
anterior, embora seja dessa considerada uma geração); as possibilidades que o
marxismo aponta para a compreensão da memória coletiva, social ou
compartilhada, especialmente a virada que ele patrocinou na compreensão da
sociedade, e nos estudos relativos à ideologia, reificação e alienação, mas especialmente
quanto ao método de análise. (O capitulo mencionado corresponde ao item três do
presente texto)
No item de número quatro encontra-se o
estudo das bases materiais da memória social ou compartilhada. Ai se demonstra
que o condicionamento forte da memória social não é um grupo em si, mas a
formação econômico-social com suas mediações, e versa igualmente quanto à
relação com o meio social da sobrevivência da memória correspondente a um modo
de produção quando outro já o sucedeu. A vinculação da memória compartilhada ao
trabalho e à mudança encontra-se ai examinada, assim como a projeção para o
futuro de memórias correspondentes ao modo de produção.
O quinto item trata
especificamente de determinações presentes na História (saber) e na memória
social: alienação, reificação e ideologia. Esses conceitos, tornados
operacionais, foram explicados com extensão julgada apropriada para a
fundamentação de sua utilização, pois embora o afinamento conceitual seja
desnecessário a uma banca examinadora, nem sempre os leitores de História estão
acostumados com eles: em um momento, foram perseguidos pelo poder por incidirem
em zona de pensamento perigoso; houve sua larga utilização em textos das
décadas de 1950, 1960 e 1970, mas depois o conservadorismo reinante nas
academias resolveu evitá-los. Às vezes foram substituídos por discurso, leitura
a partir de um lugar, topo, etc. São aqui retomados. A alienação basicamente
considerada fenômeno da oposição entre aquilo que o homem cria voltar-se contra
si, objetivação, como ocorre quanto à mercadoria (trabalho objetivado) ou, na
cultura, a religião: criação humana que termina por dobrar o homem a ritos,
deveres, sacrifícios, etc, a um deus. A reificação, salvo aspecto que foi
explicitado, no texto deve ser lida como forma mais acentuada de alienação. Já
no que se refere ao conceito utilizado de ideologia, esclarece-se que esse foi
adotado na forma lucaksiana (de Lukács), isto é, forma de elaboração ideal da
realidade que se destina a dotar a práxis social humana de consciência para
agir. Isso significa que tanto a leitura ao avesso da realidade, quanto outro
tipo de leitura desde que, conscientemente adotada, sirva à pratica social, é ideologia.
Isso exclui caráter individual do conceito de ideologia: mesmo que uma grande
ideia seja projetada por um indivíduo, ela só se torna ideologia se for
socialmente adotada. As condições de alienação, reificação e ideologia são
utilizadas para a investigação da memória e da História.
Examina-se, no item seis o compartilhamento da
memória, sua forma e institucionalização e o seu uso ideológico. Entende-se que
toda memória compartilhada de um tempo busca, ou futuramente, os ideólogos
constroem, a sua institucionalização, olhando retrospectivamente, para
finalidades do presente relacionada ao obscurecimento da realidade ou
justificação do poder.
O sétimo item cuida da relação entre o escrito, a memória e a história.
Nesse foi necessária a introdução de um conceito que permeia o texto: a memória
imobilizada (objetivada), para tratar de maneira mais adequada os diversos
escritos e fontes da história. Não se trata de entender teórica e praticamente
o documento como algo pensado estaticamente pelo autor ou pelo leitor, que dele
fazem uso. Por entender que o texto ficcional é importante para a História (há
muitas referências a contos, romances, poesia, etc, em obras de historiadores)
e para a memória social, ou compartilhada, houve digressão quanto àquele,
especialmente sobre a sua importância para a fixação da memória sobre eventos,
processos, ou eventos encadeados.
A conclusão retoma, em síntese,
as questões tratadas e aponta para o fato de que, apesar de dificuldades, a
distinção do campo da História em relação àquele da memória não pode residir
apenas na epistemologia, como tem sido dito quanto a esse problema. É verdade
que a epistemologia tem sido convocada sempre que um novo campo do saber é
conformado para fixar-lhe fronteiras que, muitas vezes, são tênues e
oscilantes. No entanto, pode-se ponderar que são momentos logicamente
diferentes a consideração ontológica daquela prestada pela epistemologia. O
processo objetivo da vida dos homens no tempo e a apreensão deste pela consciência
da qual a memória é atributo inafastável é uma coisa; lembrar os dados do
processo e tratá-lo à luz da ciência e do avanço do saber não é apenas
evocá-lo, é compreendê-lo, penetrar-lhe a essência, descobrir leis (mesmo que
tendenciais) e atingir a síntese.
Algumas citações estão longas,
mas foi o caminho escolhido para não prejudicar o pensamento dos autores de
onde foram recolhidas, e apesar da profusão daquelas há demarcação visível
quanto a possível postura eclética: o método de análise espanca o ecletismo.
A atribuição de caráter pessoal
quanto ao tratamento do tema pode ser aferida em relação ao documento como
exteriorização da memória, em que esta antecede logicamente a informação, e a
consequência da autonomia da objetivação da memória para os diversos saberes
(embora o que o autor de um escrito, por exemplo, tenha desejado expressar seja
importante), pois a intenção científica no uso da memória exteriorizada
afasta-se grandemente do memorialista, e sobre essa base, a interpretação toma
outros aspectos e se liberta da hermenêutica positivista centrada no autor, ou
possível autor, e daquela que vê nos enunciados ocos que devem ser preenchidos
pela interpretação de acordo com as intenções do uso. Outra atribuição de
autoria pessoal, intimamente ligada à anterior, é o fato de ocorrer o exame da
memória compartilhada a partir da estrutura social: o ser social determina a
formação da memória, porém com mediações. A forma ampla de tratar a memória a
partir do materialismo histórico e de envolver dialeticamente sua objetivação
para discernir campos de saber (História e memória) certamente deve ser
entendida como resultado da presente construção textual.
Optou-se pelo uso do vocábulo homem para definir o ser humano. Onde ele
for encontrado, deve-se ler homem e mulher, obrigatoriamente.
2.
PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS.
2.1. Antecedentes
De tantos
escritos sobre memória pode afigurar, de início, temeridade buscar algo de
original sobre ela, que não signifique apenas uma forma de dizer as coisas
diferentemente das maneiras outrora ditas.
A
preocupação acima entrevista tem seu sentido. Dentre os antigos filósofos, na
Grécia Antiga, já Platão e Aristóteles escreveram sobre memória. O primeiro, em
passagens dos diálogos Teeteto e Filebo (PLATÃO, 1990), o segundo fê-lo mais
extensamente em De Memoria
(ARISTÓTELES, 1980).
No entremeio de datas que
são convencionadas como o fim da Antiguidade e o início do Medievo, Agostinho,
em Confissões (1992), trata desse
“ventre da alma”. Thomas de Aquino, na Idade Média, dedica-lhe espaço
especialmente na parte I, questão 79, artigos 6 e 7 da Summa Teológica (2005).
No século XVII
encontram-se, sobre memória, contribuições de Hobbes, no seu De Corpore, Spinosa, na Ética, além de
escritos de Leibniz e Locke. No século seguinte, Wolff e Kant trataram do tema,
enquanto que no primeiro terço do século XIX, Hegel também considerou o tema.
Esse mesmo século presenciou o surgimento, em 1885, da primeira obra decorrente
de pesquisa de Psicologia experimental sobre memória, devida a Hermann
Ebbinghaus.
Então é
cediço o tratamento do tema, que encontra, nas idades e nos séculos, quem dele
trate. No entanto, obra mais densa iria demorar a aparecer. No final do século
XIX, Bergson produz obra marcante,
assim considerada: Matéria e Memória. Outros
títulos e autores se sucedem.
Atualmente,
filósofos, historiadores, neurocientistas e antropólogos se debruçam sobre
memória, modificando o perfil de estudos que até o século XIX quase que
exclusivamente foi delineado pelos filósofos.
Enfim,
tanto se escreveu e se escreve sobre memória, em seus diversos aspectos, que a
impressão de “mais um texto” é inafastável e chega geralmente na forma de
pergunta: algo de novo pode ser dito sobre memória?
O autor do presente texto
entende que sim. O pensamento não é estático. Uma visão crítica e
intelectualmente denunciadora conseguirá encontrar, nos usos da memória, em
intersecção com História, alienação e ideologia, um sentido que lhe indique novos
caminhos e que, nesse esforço, demonstre a relação da memória com a História.
Não só.
Quanto ao
objeto, cumpre distinguir o que realmente é memória, em relação a seus suportes,
suas múltiplas relações: imaginação, grupo social, história, trabalho, lugar,
ideologia, alienação, reificação e seus diversos usos. Os “objetivos” desse
esforço intelectual ─ a que se remete o leitor ─ afinam a temática do presente
trabalho.
Inclui-se
na temática não a memória dita pura (como se houvesse), mas memória envolta na
realidade circundante, na ficção, na ideologia, na reificação e na alienação.
Memória situada, portanto.
Como
foi dito, cediça é a preocupação com a memória.
Inevitável
é a citação de obras da Antiguidade Clássica Grega. Platão marca a literatura
sobre a memória nos textos (diálogos) Teeteto e Filebo (PLATÃO, 1990). Aí já se encontram definidas as formas de
manifestação da memória que serão utilizadas posteriormente por muitos autores:
a conservação de sensações (memória retentiva) e a reminiscência (memória
evocativa). A discussão sobre memória aí aparece em razão da necessidade de
responder o que é a ciência, apartando-a do simples aporte de sensações: “A
ciência não repousa em impressões, mas no raciocínio exercido sobre elas”
(PLATÃO, 1990, p. 923). Nesse diálogo (Filebo), já aparece a figura da
“cera" na consciência apta a receber impressões; em algumas pessoas, cera
mais abundante, em outras em quantidade menor, em umas, mais pura; noutras,
mais impura, mais dura ou mais suave (PLATÃO, 1990, p. 933). Na “cera”
modelam-se sensações e pensamentos, e aquilo que aí está impresso pode ser
recordado. Essa figura – cera – não poucas vezes será retomada, por diversos
autores.
Aristóteles
(1980) trata da memória (Do sentido e do
sensível e da memória e da lembrança) e tem o cuidado de distinguir entre a
marca deixada pela coisa e a coisa em si. Indaga o filósofo como pode,
evocando-se a marca, presente na alma, lembrar daquilo que não está presente. A
sua resposta é que a marca deixada na alma pelas sensações é como uma pintura
que pode ser considerada enquanto tal e pela coisa representada: coisa e sua
representação. Tal como ocorre em Platão (Teeteto), Aristóteles entende a
memória em dois momentos: conservação de sensação (a representação e a coisa representada)
e a recordação são condições da memória (memória retentiva e memória
evocativa). Também essa contribuição estará presente em autores que muito
depois trataram da matéria, inclusive a relevância que o Estagirita confere ao
caráter ativo da reminiscência: sua deliberação e escolha.
No
medievo europeu, Agostinho (Confissões),
escrevendo na fase que os historiadores costumam entender como período que se
encontra no cruzamento da Antiguidade e Idade Média, retoma os momentos da
memória (retenção e evocação) e discorre sobre “os campos e vastos palácios da
memória”: a memória intelectual, a memória e os sentidos, a memória e as idéias
inatas, a memória e as matemáticas, o fato de a “memória lembrar-se de
lembrar”, a lembrança e os afetos da alma” (“memória é como o ventre da alma”),
a memória das coisas ausentes, o fato de a memória lembrar-se do esquecimento,
a lembrança do objeto perdido, a reminiscência (AGOSTINHO, 1987). Vê-se no
texto agostiniano a presença de Platão, o desenvolvimento de ideias que esse já
divulgara na Grécia, e como que a diretriz dada pelo mestre.
A
lição agostiniana igualmente reverberará, posteriormente, forte no campo da
doutrina cristã.
Thomás de Aquino (2001,I),
em diversos momentos da Suma Teológica,
trata da memória, especialmente em, I, Questão 78, artigo 4 , e a questão 79,
artigos 6 e 7 (THOMÁS DE AQUINO, 2001, I, p.447). Em combate às ideias de
Avicena, Thomás de Aquino opõe o ensino de Aristóteles, quanto à relação da
memória com o intelecto: “As imagens são conservadas não somente na parte
sensitiva, mas antes no composto, pois a memória é ato de um órgão. Mas o
intelecto, enquanto tal, conserva as imagens, sem a ajuda do órgão corporal”
(THOMÁS DE AQUINO, 2005, I, p. 448- 449).
Hobbes,
Spinosa, Leibniz e Locke, no século XVII escrevem sobre o tema, considerando a
memória como conservação de pequenas percepções que não possuem mais formas de
pensamento (Leibniz), sensação de já ter sido sentido (Hobbes), concatenação
entre ideias e coisas externas ao corpo (Spinosa).
No século XVIII, Wolff e
Kant versaram sobre memória, tendo o primeiro a definido como faculdade, tanto
de reconhecer as ideias reproduzidas pela mente quanto as coisas que elas
representam; enquanto o segundo insiste no caráter ativo da memória e a
distingue da imaginação sob argumento de que a primeira pode reproduzir
voluntariamente a representação que lhe é anterior. Ainda na primeira metade do
século imediato (XIX) Hegel trata da memória como momento unilateral da
existência do pensamento. É também o século XIX que presencia o surgimento de
obra fora da tradição filosófica: trata-se do estudo Sobre a memória: pesquisas de psicologia experimental, de autoria de Hermann Ebbinghaus,
datado de 1855.
Em 1896,
surge a obra Matéria e Memória, de autoria de H. Bergson (1999, p. 156-195) que
estuda o papel do corpo para a seleção e representação das imagens e conclui
que deve-se distinguir a lembrança pura, a lembrança imagem e a percepção, que
não se produzem isoladamente: a percepção não é jamais um simples contato do
espírito com o objeto presente, está inteiramente impregnada das
lembranças-imagens que a completam, interpretando-a. A lembrança-imagem, por
sua vez, participa da lembrança a materializar, e da percepção na qual tende a
se encarnar.
O autor de
Matéria e Memória entende que o corpo é apenas “instrumento de ação”, que não
serve para preparar e explicar uma sensação. Somente pela conservação de
hábitos motores pode e corpo “desempenhar de novo o passado” e isso se explica
em razão de que o corpo pode retomar atitudes em que o passado irá se inserir,
ou então pelo fato de repetição de fenômenos no cérebro prolongarem percepções
anteriormente experimentadas e que com isso fornecerá à lembrança sua ligação
com o que é atual. O cérebro, diferentemente daquilo que os antigos diziam, não
guarda memórias impressas e não contribui para a representação.
Bergson
(1999, p. 264) combate a visão de materialistas e idealistas, assegurando que
ambos consideram, as mesmas coisas e da mesma forma, aquilo que diz respeito à
percepção e à memória, como duplicatas uma da outra. A visão materialista, que
tem a memória como epifenômeno, não conseguiria explicar porque “certos
fenômenos cerebrais são acompanhados de consciência, ou seja, para que servem, ou
como se produz a repetição consciente do universo material que se pôs de
início”. O idealismo por sua vez não é capaz de entender que se “me forem dadas
percepções, o meu corpo será uma delas”, com o que se repete o dualismo.
Materialismo e idealismo, ao desenvolverem a dualidade, terão que perceber o
físico e o moral, opondo-os, e com isso sacrificam a liberdade, segundo o
autor.
A
consciência é capaz de reter memórias antigas e é capaz de organizar o passado
com o presente, e, à medida que isso ocorre, a consciência é capaz de criar
atos, utilizando a liberdade: “O espírito retira da matéria as percepções que
serão seu alimento, e as devolve a ela na forma de movimento em que imprimiu a
sua liberdade” (p. 291).
Para
Bergson o passado é perpetuado nos mecanismos motores e nas recordações
independentes e isso o leva a afirmar que se pode discernir duas memórias
teoricamente independentes. A afirmação fez com que Lalande (1993, 662-663) o
criticasse por aplicar ao gênero o nome da espécie (memória função psíquica –
“reprodução de estado da consciência do passado”, e “conservação do passado de
um ser vivo no estado atual deste”), assinalando que o “procedimento tem grande
defeito de não por claramente em evidência o verdadeiro movimento do
pensamento, e, por conseguinte, é fértil em mal entendidos”.
M.
Halbwachs trata da memória coletiva e é o criador desse conceito, depois – e
hoje – posto em grande evidência. Trata em seu livro de edição póstuma (Memória Coletiva) da distinção e da
relação entre memória individual e memória coletiva. Discípulo de E. Durkheim,
de quem segue os passos, em questões de método sobretudo, M. Halbwachs (2006,
p. 72) “descobre” a memória coletiva e indica que as pessoas pensam em razão de
pertencerem a um grupo. Para ele:
A memória individual
não está inteiramente isolada e fechada. Para evocar o seu próprio passado, em
geral a pessoa precisa recorrer às lembranças de outras, e se transportar a
pontos de referência que existem fora de si, determinados pela sociedade. (p.
72)
Mas
ao lado de memória individual há a memória coletiva, que tem limites, como os
tem a memória individual, porém não são os mesmos:
Durante o curso de
minha vida, o grupo nacional de que faço parte foi teatro de certo número de
acontecimentos a respeito dos quais digo que me lembro, mas que só conheci
através de jornais ou pelo testemunho dos que nele estiveram envolvidos
diretamente. Esses fatos ocupam um lugar na memória da nação – mas eu mesmo não
os assisti. Quando os evoco, sou obrigado a me remeter inteiramente à memória
dos outros, e esta não entra aqui para completar ou reforçar a minha, mas é a
única fonte que posso repetir sobre a questão (Halbwachs, 2006, p.72).
O autor
enfatiza o fato de lembrarmos porque participamos de um grupo: lembramos juntos.
É evidente a perspectiva sociológica de E. Durkheim a influenciá-lo, quando
toma a memória como fato social, pelos caracteres de generalidade,
exterioridade e, certamente, coercibilidade.
A
concepção do autor quanto à história (necessária para sua discussão sobre a
diferença dessa para com a memória coletiva), encontra-se ainda nos marcos de
uma história tradicional, embora em sua pátria (França) já estivessem em curso
transformações na concepção da história – a demolição da história positivista
pelas novas perspectivas da Escola dos Anais.
Para
distinguir memória de história, Halbwachs (2006, p. 102-103) evidencia que a
“memória é uma corrente de pensamento contínuo”, que não retém do passado
“senão o que ainda está vivo ou é capaz de viver na consciência do grupo que a
mantém” (p. 102). Ele esclarece que não é o mesmo grupo que se esquece do seu
passado, o que ocorre é que dois grupos se sucedem, e o grupo sucessor pode
deixar de se interessar pelo período anterior. A História, no entanto, por
situar-se acima e fora dos grupos que se sucedem, introduz divisões “na
corrente dos fatos, cujo lugar está fixado uma vez por todas” (p.103). Por
outro lado, há mais uma diferença: existem várias memórias coletivas, enquanto
que a
[...] história é una
e se pode dizer que só existe uma história (p. 105), mas isso não pode
significar desconhecimento da distinção entre história de um país, de região,
etc., por que para o historiador a pesquisa de detalhes (nacionais, locais, de
períodos, etc.) é vista como parte de um todo; “é que detalhe somado a detalhe
dará um conjunto, que se acrescentará a outros conjuntos e no quadro total
resultante de todas essas somas sucessivas, nada está subordinado a nada,
qualquer fato é tão interessante quanto qualquer outro, e tanto quanto qualquer
outro merece ser posto em destaque e transcrito (HALBWACHS, 2006, p. 105-106).
Os
trabalhos de Halbwachs sobre memória até hoje influenciam pesquisadores. Em
vida, ele publicou Quadros sociais da
memória (1925), enquanto que Memória
coletiva veio a lume após sua morte.
Outra contribuição importante, quanto
ao estudo da memória e sua correlação com a história é o trabalho Memória e História (2003), de Jacques Le
Goff. Inicialmente publicado como artigos nos 1º, 2º, 4º, 5º, 8º, 10º, 11º, 13º
e 15º tomos da Enciclopédia Einaudi e, posteriormente, como obra separada
daquela coleção, Memória e História
ainda exerce influência sobre estudiosos.
Jacques Le
Goff trata da história, seu conceito, seus limites, revisita concepções de
história, trata das oposições antigo/moderno, passado/presente,
progresso/reação; idades míticas, escatologia, decadência, memória, calendário,
documento/monumento.
Naquilo
que concerne à memória, Le Goff (2003, p. 419) entende que seu conceito é
crucial. Apresenta inicialmente digressões sobre memória no “campo científico
global”, embora seu texto Memória
seja dedicado mais à memória social.
Referido
autor ensina que “o estudo da memória social é um dos meios fundamentais de
abordar os problemas do tempo e da história aos quais a memória está ora em
retraimento, ora em transbordamento” (p. 422).
Le
Goff (2003, p. 423), para o “estudo histórico da memória histórica”, enfatiza
as diferenças entre “sociedade de memória essencialmente oral e as sociedades
de memória essencialmente escrita, como também as fases de transição da
oralidade à escrita. O autor, tomando essa diretriz geral, fixa os seguintes
períodos para o estudo “histórico de memória histórica”: a) memória étnica (sociedades sem escrita). b) desenvolvimento da memória da oralidade à escrita; c) memória
medieval (em equilíbrio entre o oral e o escrito); d) progressos da memória escrita (século XVI a nossos dias); e) desenvolvimento atual da memória”.
Trata de cada um desses “tempos” e, após, fala do surgimento e expansão da história
oral, em poucas, porém densas linhas.
Para Le
Goff (2003, p.469), é evidente o valor da memória para os estudos históricos. Ele
afirma que
A evolução das
sociedades, na segunda metade do século XX, elucida a importância do papel que
a memória coletiva desempenha. Exorbitando a história como ciência e como culto
público, ao mesmo tempo a montante, enquanto reservatório (móvel) da história,
rico em arquivos e em documentos/monumentos, e aval, eco sonoro (e vivo) do
trabalho histórico, a memória coletiva faz parte das grandes questões das
sociedades desenvolvidas e das sociedades em vias de desenvolvimento, das
classes dominantes e das classes dominadas, lutando, todas pelo poder ou pela
vida, pela sobrevivência e pela promoção. (LE GOFF, 2003:).
O autor
(LE GOFF, p. 469) endossa a assertiva de Leroi–Gourhan “segundo o qual a partir
do Homo sapiens, a constituição de um
aparato da memória social domina todos os problemas da evolução humana”, (p.469)
e entende que “a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar
identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades
fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia”.
(p. 469)
O
historiador francês chama a atenção para o fato de a memória coletiva ser uma
conquista e um instrumento e objeto de poder, e defende que “os profissionais
científicos da memória” têm a tarefa de lutar pela “democratização da memória
social”. (p. 469)
A conclusão do ensaio Memória, último do livro (Memória e História) volta a evidenciar o
quanto seu autor encontra-se imbuído da convicção da importância da memória,
alimentante e alimentada da história: “A memória, na qual cresce a história,
que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e
ao futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação
e não para a servidão dos homens” (Le
Goff, 2003, p. 471).
Além de contribuir com a
sistematização, periodizando sem visão estanque de fases, para o “histórico da
memória histórica”, caracterizando criticamente cada período, Le Goff denuncia
o caráter não neutro da memória coletiva e a sua serventia a objetivos do poder
e das classes sociais.
Paul
Ricoeur é autor de a memória, a história,
o esquecimento (2007), um de seus últimos escritos. Examina a memória,
recenseando diversos autores, para depois verificar as questões da continuidade
e descontinuidade, buscando encontrar a dependência ou a ultrapassagem dos
historiadores quanto à memória. A perspectiva dos historiadores, segundo o
autor, é crítica, quanto ao passado, e por essa razão deve ir além da memória.
Os historiadores têm condições de produzir estudos sobre a memória, como as
pessoas a utilizaram, em suas comemorações de fatos que julgaram importantes,
às vezes abusivamente.
A memória
é diferente da imaginação, embora ambas apelem para a noção de imagem e a
utilizem. A História e a memória chamam pela imaginação efetivamente, mas isso
não importa em dizer que a história se reduza a uma escrita ficcional. Memória
se diferencia da imaginação tanto pela intencionalidade (sentido fenomenológico
do termo) quanto em relação ao objeto. Ambas buscam aquilo que não se encontra
presente – o objeto da memória “é do passado” (aqui Ricoeur retoma sua
digressão sobre memória em Aristóteles, que se encontra na parte inicial do
livro). No trato da memória coletiva preocupa-se sobre “quem lembra”. Pode-se
responder que “quem lembra” são “eles”, o que pode ser reduzido ao anônimo, ou
seja, a ninguém. Memória coletiva e memória individual devem ser dispostas de
forma a não se oporem, porém colocadas em âmbitos diversos do discurso. Somente
em parte a memória coletiva é responsável pela continuidade da memória
individual.
Segundo o
autor,
[...] A questão de
saber se a memória, de matriz da história, não se tornou simples objeto da
história, pode legitimamente se colocar. Chegados a esse ponto extremo de
redução historiográfica da memória, demos voz ao protesto no qual se refugia o
poder de atestação da memória a respeito do passado. A história pode ampliar,
completar, corrigir, e até mesmo refutar o testemunho da memória sobre o
passado, mas não pode aboli-lo. Por quê? Porque, segundo nos pareceu, a memória
continua a ser o guardião da última dialética constitutiva da preteridade do
passado, a saber, a relação entre o “não mais” que marca seu caráter acabado,
abolido, ultrapassado, e o “tendo-sido” que designa seu caráter originário e,
nesse sentido, indestrutível. Que algo tenha efetivamente ocorrido, é a crença
antepredicativa – e até mesmo pré-narrativa – na qual repousa o reconhecimento
das imagens do passado e o testemunho oral (Ricoeur,
2003, p. 505).
Obra densa
e extensa, A Memória, a História, o
Esquecimento, compreende a discussão de diversas questões, tais como
memória e imaginação, memória exercitada; usos e abuso; memória pessoal, memória
coletiva, História/Epistemologia, condição histórica, perdão.
O autor apresenta visão
crítica sobre Halbwachs, Le Goff, K. Pomian, Richard Terdiman, Yerushalmi e
Pierre Nora, quanto à produção destes em torno da memória. Suas observações
ajudam a leitura dos textos desses autores, mesmo que não se aceite o
julgamento de que seriam inconsistentes atribuído a aspectos daquela produção
historiográfica no tocante à memória e sua relação com a história.
Nos últimos trinta anos, a memória
social tem sido objeto de estudos sob diversos aspectos. Nora (1993), Passerini
(1993), Pollack (1992), dentre tantos outros, examinaram a questão e este texto
incidentalmente faz eco a suas contribuições. Só incidentalmente.
2.2.
Considerações da teoria e do método
2.2.1.
Consciência: o marco inicial.
Pressuposto
de análise e de método é a própria concepção que se tem do caráter da
consciência. Adotar uma concepção mágica ou metafisica quanto a seu significado
e surgimento conduz inevitavelmente a conclusões diferenciadas em relação aos
achados da psicologia evolutiva, por exemplo.
O
método, intrinsicamente vinculado à teoria, deve atender a pressupostos bem
definidos. Em primeiro lugar, impõe-se priorizar a realidade material. Com
isso, não se trata de tomar idéias, escolhas, atos humanos isolados de seu
contexto físico e social. O homem está situado. A sua consciência é produto de
seu trabalho, que ocorre na história. Embora o problema da consciência ainda
esteja grandemente em aberto, inclusive a consciência de si, não se pode
ignorar que à medida dos desafios impostos pelo necessário trabalho de luta
pela sobrevivência, desenvolve-se a consciência. Que o homem tenha alcançado
nível de capacidade do manejo da inteligência cada vez mais abstrato, isso não
desmente a historicidade daquela,ao invés disso a confirma. A cada desafio o
homem responde com criações que, por sua vez, dilatam sua possibilidade de
compreensão da natureza (inclusive de sua própria) e da sociedade.
Como
ocorreu a formação da consciência no homem é algo ainda não decifrado pela
ciência. Há certo consenso, no entanto, quanto ao papel desempenhado pela
postura ereta, que liberou as mãos, e a existência do polegar oponível, com
capacidade de apreensão de objetos em conjunto com os demais dedos. Para essas
assertivas não contribui apenas o materialismo histórico. Decorridos tantos
anos da elaboração de referida corrente de pensamento, a Neurociência atual e a
Psicologia evolutiva não as desmentem. A questão reside em saber como as
propriedades especiais da mente humana se formaram.
Recentemente
Marc Hauser (2013, p. 74-75) escreveu:
Se nós, cientistas,
conseguirmos desvendar um dia, como a mente humana se desenvolveu, precisamos
inicialmente localizar com exatidão o que a separa da mente de outros animais.
Embora os seres humanos compartilhem a vasta maioria dos genes com os
chimpanzés, estudos sugerem que pequenas trocas genéticas, ocorridas na
linhagem humana desde que ela se separou das dos chimpanzés, produziram enormes
diferenças no poder computacional. Essa reorganização, supressão e cópia de
elementos genéticos universais criaram um cérebro com quatro propriedades especiais.
Após
assim afirmar, Marc Hauser (2013, p. 74) assinala as propriedades especiais da
mente humana, evolutivamente construídas: a) a computação evolucionária, ou
seja, a capacidade de criar “variações de expressões virtualmente ilimitadas,
sejam elas na organização de palavras, seqüência de notas, combinação de ações
ou série de símbolos matemáticos”; b) capacidade para a combinação
indiscriminada de idéias; c) o uso de símbolos mentais (capacidade de converter
as experiências sensoriais – reais ou imaginárias – em símbolos que retemos
para nós mesmos ou para comunicar aos outros); d) o pensamento abstrato.
O autor
entende que para a evolução da mente o grande salto foi a liberação da
recursividade para domínios do pensamento. Embora os animais possuam um
maquinário motor recursivo como parte de seu equipamento operacional padrão
(são capazes de colocar um pé atrás do outro para andar; pegar e levar um
objeto à boca, etc.), esse sistema está localizado nas partes motoras do
cérebro, fechado a outras áreas desse. No homem, no entanto, houve a liberação
da recursividade, da prisão numa região específica do cérebro, para outros
domínios do pensamento. Isso fez a diferença para a mente humana: a partir
desse momento ela pode desenvolver-se de maneira a fazer o homem diferente de
outros seres de seu reino.
A
consideração da prioridade da matéria não significa estimar o homem como ser
passivo. Ao contrário disso, afirma-se aí sua capacidade de criar-se e de
criar. A imaginação criadora, a inventividade, a capacidade de idealizar um
objeto, projetando-o para construí-lo, é dado da consciência historicamente
confirmado. Na apreensão da realidade o homem não adota uma atitude passiva,
como se aquela fosse formada por mero reflexo dos dados do mundo exterior com o
qual ele pensa. A apreensão da realidade é ativa e os dados obtidos com aquela
são conscientemente objeto de hipóteses, cogitações, combinações, estudo,
enfim.
Cumpre
igualmente dizer que o homem analisa dados apreendidos de acordo com
procedimentos mais, ou menos, complexos, a depender do desenvolvimento de seu
domínio sobre a natureza e de sua compreensão da rede complexa de interações
que ocorrem na sociedade. Nisso, faz escolhas. Trata-se de adotar método.
2.2.2.
Considerações do Método
O
desenvolvimento da consciência permitiu ao homem (até para atender suas
necessidades vitais) dar nome às coisas e fazer abstrações. E ele analisa a
realidade que o circunda, partindo de uma abstração, qualquer uma que entenda dever
ser o seu ponto de partida (embora possa substituí-la, julgá-la inadequada,
depois). No entanto, logo ele verificará que deve dirigir sua inteligência para
a realidade. Se ele toma a abstração “sociedade”,
verificará o lugar onde esta se encontra assentada, distribuição por faixa
etária, diversidade de ocupação, diferenças de classe, técnicas utilizadas,
etc. Isso significa que deve ocorrer um movimento que segue o curso da
abstração ao concreto. Mas não basta o esgotamento do pensar nesse caráter
aparentemente descritivo da realidade (embora aí já haja compreensão, níveis
iniciais de análise capazes de discernirem diferenças, oposições, classes de
objetos, etc.).
A ida da
mera abstração ao concreto busca pensá-lo. Mas trata-se de pensá-lo em “suas
múltiplas determinações” (Marx, 2013). Impõe, assim, distinguir abstração, ou
abstrações, tomadas como ponto de partida, o concreto, tal como concreto
(objetivamente considerado, portanto) e o concreto pensado. Mas não o pensado
simplesmente, mas o pensado até alcançar a síntese e o encontro de leis que
regem aquela realidade estudada.
É, no
entanto, evidente que a capacidade de ir da abstração ao concreto e desse ao
concreto pensado e à síntese, não exclui limitações em razão dos instrumentos
até então disponíveis. Uma coisa é a descoberta do carbono 14 e a utilização de
seu marcador, e outra é não tê-lo ainda disponível.
Ainda há
que considerar as idéias dominantes em cada época histórica e em cada
sociedade, as quais obstaculizam o conhecimento com a força dos saberes
estabelecidos. Mas não só isso: essas idéias dominantes vinculam-se a
interesses da classe dominante, que as reproduz inclusive com a instituição
escolar e com os meios disponíveis para a sua divulgação.
Há, ainda, se afastada a
pressão das idéias existentes sobre a consciência, fenômenos como a alienação e
a reificação (esta, uma exacerbação da primeira, como alguns entendem). É fato
que relações entre pessoas podem ser vistas como relações entre coisas
(reificação), e processo de imposição de bens, capital, cultura como algo
independente, que se opõe ao sujeito. É o caso de deuses que, criação humana,
passam a ser objeto de cultos, obrigações: uma alienação.
É certo
que alguns tratam a reificação como forma exacerbada de alienação, mas há
alguma diferença entre o tratar relações entre pessoas como relações entre
coisas (considerar o juro como remuneração do dinheiro ao invés de exploração
do agiota, ou dizer que o metal precioso tem valor intrínseco), e a relação de
dependência (afetiva ou intelectual) entre criador e criatura. De qualquer
forma, o pesquisador, ao analisar a realidade, verá se não é vítima de
comportamento intelectual alienado ou reificado.
É evidente
que muitos aspectos podem não apresentar possibilidade de compreensão em razão
de limites técnicos ou de conhecimentos. É que nem sempre a sociedade tem à sua
disposição os instrumentos necessários para solucionar questões que lhe são
postas e necessariamente haverá a análise limitada ou resposta declaradamente
provisória, ou hipóteses.
Há, também, o peso da
ideologia dominante, capaz de obscurecer a consciência. A exemplo disso,
pode-se perguntar até que ponto falar de miscibilidade do português para
explicar que a miscigenação na colônia significa reduzir a um a relação que
envolve mais de um? Qual o papel de outros grupos étnicos para a configuração
da miscigenação? Atribuir apenas ao europeu a miscigenação não seria fruto
(admite-se que até “inconscientemente”) de uma ideologia dominante branca? A
extensão do mando à passiva aceitação do enlace sexual? Seria, ao invés de uma
explicação científica, uma tomada de posição branca? O homem está sujeito a
muitas influências e convive com padrões de pensamento ideológicos, que
direcionam sua maneira de perceber a realidade, em cada tempo. É o caso
referido, que se inclui na ideologia da democracia racial.
Dizer que
tem-se que perceber as múltiplas determinações, ou dizer que a realidade
pensada é fruto de múltiplas determinações, tem sentido profundo, mas para
percebê-la de modo científico não se deve deixar de prevenir-se diante do cerco
da ideologia, reificação e alienação do sujeito.
E a memória – objeto do
presente texto – também possui suas múltiplas determinações e está sujeita a
contingências históricas, políticas, sociais, da alienação e da reificação.
Para o
desempenho de seu mister, o estudioso não se deterá apenas em uma forma de
raciocínio. Considerará, dependendo da circunstância, formas de dedução e
indução. Mas o mover de seu pensamento não se contenta com essas formas, pois,
utilizar-se-á de categorias próprias da dialética (relação todo e parte,
contradição, necessidade/possibilidade, mediação, movimento, etc.).
Considerando
que será necessária a interpretação de documentos/textos o esforço hermenêutico
estará presente, mas submetido às razões sociais de contextualização e
condicionamento. Se é verdade que um documento permite múltiplas
interpretações, não é menos verdade que ele será, em sua análise, objeto de uma
intenção determinada.
É evidente
que a investigação sobre o tema, além de seu caráter direto, submete-se a
observação indireta, pois importa conhecer o passado e isso é feito com a
utilização de fontes porém atendendo pressupostos antes mencionados para
reconstrução, na consciência (reconstrução
espiritual), daquele.
Mesmo para
análise dita direta cada vez mais há mediação de instrumentos de levantamento
de dados (a exemplo de elaborações estatísticas), utilização de dados já
coletados ou pesquisados por terceiros e de estudos antes realizados.
No estudo
da memória compartilhada os pressupostos gerais do método do materialismo
histórico incidem na analise critica das fontes, mas direcionam igualmente a
compreensão da realidade atual. Esforços intelectuais de contextualização,
seriação, hermenêutica, etc., são envidados pelo observador tanto para a elucidação das fontes do
(sobre), o passado quanto para a compreensão da realidade presente.
Memória e
História, mediações alienantes ou reificantes e o uso ideológico da memória
compartilhada: este estudo visa a expor a inter-relação de memória, ideologia e
história e o uso ideológico da memória. Para isso busca-se delimitar os campos
da memória e da história e saber se é possível realmente diferenciá-los.
Entende o autor que estudos no âmbito das humanidades têm contribuído para a
fixação de uma teoria histórica da memória, embora a maioria dos trabalhos
sobre o tema tenham sido tópicos e, portanto, não abrangentes de determinações
da realidade que devam estar presentes.
Necessário
é evidenciar polissemia ou a plurivocidade do termo memória, e a necessidade de
adotarem-se critérios que possam determinar, quando se escreve, de que memória
se está tratando a fim de evitar-se a confusão, que se observa em alguns textos,
entre memória-função e as diversas formas de exteriorização da memória. Dessa
forma, buscar-se-á o sentido da memória, enquanto função de cérebro e a exteriorização
dessa, que tem sido chamada de memória, a exemplo das reminiscências e dos
acervos documentais e de imagens. Mas o presente trabalho discorre sobre a
finalidade dessas formas de exteriorização (como servir de prova, por exemplo),
e como esses meios, uma vez imobilizando a memória, passam a ser objeto de
interpretação com intenções diferentes (cientificas, literárias, etc.).
Mas, para
além dessas questões, os usos institucionais, políticos, sociais e
historiográficos da memória devem ser objeto de análise a partir do contexto que
os cria. A relação entre as bases materiais da sociedade, especialmente as
relações de produção e processos produtivos devem ser estudados, até porque a
memória e sua conservação sofrem fortes condicionamentos infraestruturais, que
vão além dos simples hábitos do movimento do corpo e do adestramento das mãos.
Nesse
sentido, memórias dominantes e institucionalizadas guardam seu aspecto de
classe, mesmo a memória da repetição para o desempenho do oficio, para além do
controle ideológico. A busca da compreensão do caráter de classe da memória
dita coletiva pode ser objeto desconsiderações à luz do materialismo. Não se
trata apenas da destruição da memória dos ofícios e de todo
tratamento/adestramento que impregnou trabalhadores, pelo impacto de novos
processos produtivos, ou mesmo do saber memorizado pelo trabalhador, por força
da propriedade privada dos meios de produção. Para além desse destruir contínuo
com toda sua força de desenraizamento e de desamparo ou exclusão, há o próprio
apagamento da memória dos que trabalham e sua substituição por outras memórias:
memória da dominação.
Alienação
e reificação são fenômenos que incidem fortemente na conformação da memória e
por isso devem ser considerados em análise do objeto. Há memórias alienadas.
Cumpre verificar a forma como isso ocorre e qual o seu sentido social, sob pena
de incompreender a memória compartilhada.
Para saber se é possível
delimitar epistemologicamente em campos distintos a memória e a história é
necessário partir de bases materiais dadas na sociedade. Se é possível memória
coletiva não mediada ideologicamente e se alienação e reificação a conformam e
até onde; o que caracteriza o uso abusivo da memória e por que os regimes
ditatoriais têm historicamente apelado para a memória; qual o diálogo possível
entre os que cuidam dos estudos da memória e os historiadores, são, dentre
outras questões, problemas que só podem ser compreendidos com referência
infraestrutural, mas sem desprezo ao avanço do saber.
3. MEMÓRIA E hISTÓRIA
3.1. Campo da memória. Visão preliminar
O estudioso depara-se, ao estudar
memória, com a possibilidade de uma primeira e imediatamente verificável
afirmação: há muitos sentidos para a palavra. A acepção antiga, clássica, que
os gregos nos legaram, por si mesma já indica duas realidades: a representação,
na consciência, de uma coisa, e a evocação dessa coisa ausente. Em outras
palavras, seus momentos: memória retentiva e possibilidade de evocar
(recordação). Esse discernimento da realidade da memória já se encontra em
Platão, que distingue a conservação de sensações e a reminiscência, e o estar
desprovido de memória e por isso incapaz de recordar, inclusive, o que se experimentou
em momento determinado, como se lê em Teeteto,
O Sofista e Filebo (PLATÃO, 1990).
Nos diálogos Teeteto e O Sofista pode
ser encontrada a distinção entre conservação de sensações (retenção) e
reminiscência (evocação) como momentos da memória, memória conservação e
memória evocação (Platão, 1990).
Aristóteles igualmente fala na memória que conserva
sensações (retentiva) e aquela que as evoca (recordação), em seu De Memória (1980). Em sua referida obra,
esse autor supõe que em nós permanece uma impressão, lembrança, e que uma busca
ativa (recordação) a traz até o presente. Dito de forma mais elucidativa, a
imagem aparece como uma pintura (quadro) que pode ser tomada como representação
daquilo que representa e tomada por si mesma, objeto representado e
representação, portanto. Assim também ocorreria com a imagem impressa em nossa
memória, pois essa pode ser entendida como objeto representado ou como
representação de outra coisa. Ao lado disso, Aristóteles põe a recordação. Esta
é ativa, decorre de uma busca feita pelo indivíduo: e memória retentiva é
diferente da memória evocativa (recordação), que é ativa.
O Estagirita, como o fizera Platão,
distingue entre memória retentiva e recordação, mas assinala o caráter ativo,
ou voluntário dessa última, enquanto que a primeira (retentiva) é passiva. A
recordação funda-se na idéia de conservação de movimento.
Essas duas memórias (retenção e
evocação) continuaram na história do pensamento ocidental, ora como momentos,
ora como sentidos do vocábulo. Fixado está o registro dos sentidos, ou
condições, de memória em recuados tempos.
Correta é a afirmação feita de que
memória recebeu tratamento que a considera em duplo sentido, pois tanto a
retentiva quanto a evocativa são memórias. Não se pode afastar a plurivocidade
da palavra.
Com efeito, denomina-se memória tanto a evocação de
fatos, imagens, sentimentos, etc., que seus lembradores querem verdadeiras,
quanto obras de ficção que se estruturam com narrativa cujo fluxo se desenvolve
como se de memória efetiva se tratasse. E há mesmo o meio-termo em que
“memórias verdadeiras” se entremeiam com “memórias inventadas”. Invencionice
convive, nesse caso, com fatos que realmente ocorreram, na forma como os
percebeu o autor da obra semificcional. E, ainda mais, há ficção que se
encontra envolvida com a realidade de forma tão intensiva que se pode perceber
aí um tipo de veracidade. Vargas Llosa (2004) confere a esse fenômeno um
título: “A verdade das mentiras”, com que batiza seu livro de crítica
literária. Nesse último caso há, sobretudo, romances históricos e a tradição
realista de inúmeras obras literárias. Não é descartável, nesse contexto, o
projeto consciente de ver a realidade à luz da recriação inventiva.
Memórias ficcionais que alcançam o
patamar de obras de arte, como as Memórias
Póstumas de Brás Cubas (Machado de Assis), em cuja apresentação o autor
teima ironicamente que não se trata de reminiscências de um “autor defunto, mas
de um defunto autor”. Mas mesmo aí, na “mentira” do livro há verdade: um pano
de fundo, a maneira de pensar do tempo, etc.
Mas, ao lado de memórias fictícias, há
aquelas que pretendem ser lembranças de fatos “verdadeiros”. No entanto, esses
relatos “verdadeiros” não estão a
salvo de serem meras versões do visto e do sentido.
Há, ainda, a tradição de certas realizações historiográficas
a que se atribuem o título de memórias, ou certos relatos históricos deixados
para memória. Algumas dessas expressões trazem fantasias como se de memórias
verdadeiras se tratassem, mas são memórias na dicção de seus autores. Os
títulos sobram.
Documentos são tidos como “memória” ou
expressão dessa. Fala-se em “lugares da memória”, em memória de um individuo,
ou de um povo, ou mesmo de memória coletiva, do computador, memória afetiva,
olfativa, bruta, etc.
São muitas as memórias e todas elas
com o conteúdo daquilo que é passado. E a presentificação desse (evocação) traz
um mundo inteiro de informações, não apenas informações que o memorizador quis
transmitir, mas passado envolto numa tensão entre o registro e o esquecimento.
A memória social deve ser analisada sob
múltiplas determinações. O tema memória, secularmente discutido, retomou
importância, cresceu para constituir um campo do saber, e a luta pela
preservação da memória foi entranhada no cotidiano. Importa falar dessa
pluralidade de sentidos, pois um desses é a História. Campo do saber que, na
busca de delimitar seu espaço no conjunto do conhecimento, foi confundida com a
própria memória (o fato de ser passado alimentou essa confusão), mas isso deve
ser evitado. Castanho (2009), sobre isso, afirma:
A memória é principal nutriente da história,
mas não se identifica com ela, assim como a semente não é o passarinho que, não
obstante, nutre. A memória é algo de mais substantivo, tanto do ponto de vista
do objeto quanto do sujeito. Objetivamente, a memória é aquilo de que se
lembra: acontecimentos, fatos, sentimentos, sensações e significados, tudo
aquilo que passou pelo campo de percepção do indivíduo e pelas antenas da
sociedade, sendo retido por um e por outra e devolvido diante de qualquer
necessidade. Subjetivamente, a memória é o ato de lembrar, individual e
coletivamente, compreendendo, na sua complexidade tanto o momento de fixação
quanto o de devolução. (CASTANHO, 2009: 15)
Fixado, ainda que provisoriamente
(pois tem havido expansão do objeto), o campo da memória, o exame de questões
como a memória imobilizada (registrada em diversos suportes, especialmente o
documento), a memória evocada (individual, social, registrada, etc.), a relação
entre memória e imaginação, história, propriedade, ditadura, classe social, tem
sido intentado em diversas oportunidades.
As múltiplas relações da memória com o
meio social dão-se de forma tensa e cambiante: tensa quando se considera a luta
entre a memória e o esquecimento, cambiante quando se verificam as mutações que
ocorrem na história quanto à memória – ora confundida com aquela, ora
demarcada, ora em diálogo, ou em reinterpretações dos dados da memória
retentiva e as condições de sua evocação no tempo face ao poder e às classes
sociais. Isso implica pesquisar usos da memória pelas classes sociais, pelo
poder, pelos historiadores, em bases afastadas da metafisica.
A própria existência da plurivocidade
pode esconder um conflito: o que é simples memória de alguns pode ser imposto
como História.
3.2. Plurivocidade e qualificação
Diante da plurivocidade do termo, é
necessário qualificá-lo a fim, sobretudo, de alcançar distinção entre memória
(retentiva e evocativa) e suas formas de manifestação. Se não é conveniente
equiparar História a memória, também causa embaraço tratar documentos,
fotografias, filmes, etc., como memória, ou seu conjunto como memória coletiva,
ou, para diluir seu significado, falar-se de lugares da memória, como o faz
Nora (1984), diante do fato de ocorrer crise daquela, e a História, no seu
estágio atual, não poder confundir-se com a memória.
O uso do termo com tantos
significados, ou necessita ser substituído por outro, ou ser acompanhado de um
vocábulo que precise seu significado em cada contexto. A substituição vocabular
é possível, porém encontra a resistência do uso largo e continuado. A opção por
um qualificativo atende melhor objetivos de precisão teórica. Nesse sentido, o
presente estudo distingue a memória (com suas propriedades de evocação e retenção)
de suas formas de manifestação.
Realmente,
há um dado, que embora não primário, isto é, não se refira imediatamente ao
cérebro, tem relevância para a discussão da matéria: memória mantém diferença
de suas formas de exteriorização. Veja-se que, dentre funções cerebrais, ocorre
a memória, mas uma memória que pode (ou não) exteriorizar-se. A pessoa pode
lembrar, relembrar, sem expressar a reminiscência a terceiro, silenciosamente,
ou fazê-lo em diálogo, comício, ou por escrito, por exemplo. A reminiscência pode
exteriorizar-se, manifestando-se de formas diversas.
Pode-se,
assim, falar de memória e suas formas de manifestação, ou de exteriorização:
memória exteriorizada. O presente texto referir-se-á à exteriorização da
memória quando pura e simplesmente não referir-se às funções de reter no
cérebro ou de evocar (memória retentiva, memória evocativa).
A memória
exterioriza-se de diversas maneiras, dentre as quais, de forma oral (ou
gestual) ou de forma escrita. Este texto fala de memória animada quando da sua manifestação
oral ou gestual, e de memória imobilizada (imobilização da memória quando se
tratar de manifestação em escritos, filmes, documentários, etc.) No entanto, imobilizada não significa estática. O
vocábulo guarda inspiração no tratamento que à escrita deram as linguistas:
fala imobilizada. Uma objetivação da memória é o que se pretende com o conceito
de memória imobilizada.
No
entanto, outros qualificativos de memória seguirão este vocábulo: memória
individual (reminiscência pessoal) e memória coletiva (memória compartilhada, ‘o lembrar junto a outros’), conceito
cunhado por M. Halbwachs (2006).
Não fazer
a assimilação entre memória e documento escrito (como às vezes ocorre em Le
Goff - 2003), surge como necessidade expositiva da matéria e como apuro
conceitual, evitando-se equívocos da leitura. Nora (1993) intentou lugares da
memória, título mais defensável, porém que suscita a mistura entre fontes e seu
depósito.
Não posso
falar de u’a memória escrita, como algo predominante a partir de certo período
histórico do ocidente, uma vez que a reminiscência, oralizada ou não, está
sempre presente em todas as épocas. No entanto, corrige-se a expressão memória
escrita ou impressa por memória imobilizada, e textos como os de Leroi Gourhan e Le Goff assumem maior valor, pois
sua leitura importará em atender que, convivendo com a exteriorização da
memória, pela escrita, há memórias oralmente exteriorizadas ou não, objetivadas
em suportes (papel, disco rígido, etc) ou não. Pois é isso que efetivamente
ocorre em toda e qualquer sociedade que domina a escrita: as pessoas lembram,
relembram, individualmente ou de forma compartilhada, manifestando-se de forma
oral ou por registros (documentos, fotos, etc.), ou as têm incorporadas em
hábitos.
No
entanto, ainda é necessário dizer que o motivo inicial da existência de u’a
memória imobilizada (documento, por exemplo) nem sempre tem como motivação
imediata a preservação daquela, mas servir como prova (indissociável da
memória, no entanto), como é o caso do contrato para as partes que o celebram e
para aqueles que laboram no campo jurídico. Com o contrato, registra-se a
manifestação de vontade (de comprar, vender, doar, locar, etc.) e preserva-se a
prova. No entanto, essa motivação principal de sua existência (prova) é
indissociável da memória, pois aquele texto contratual sempre lembrará às
partes o que efetivamente avençaram, podendo haver divergência de interpretação
das cláusulas e, surpreendentemente, será um juiz ou um parecerista que irá
fixar o verdadeiro sentido da memória preservada no contrato, à medida que fixa
o sentido da cláusula à luz da normatividade, mesmo que o faça segundo a regra
de que na interpretação dos contratos vale mais a intenção das partes que a
literalidade, e isso conduz ao tema com que os historiadores têm-se defrontado:
a crítica da fonte documental, porém muitas vezes sem atentar para o fato da
existência da autonomia da memória, que permite que haja controle por terceiros
do sentido do registro (manifestação da memória), os quais o interpretam ou
dele fazem uso. Ao usar um contrato como fonte, por exemplo, o historiador o
fará para outra finalidade que não aquela pretendida pelos contratantes (mesmo
até desprezando-a), autonomizando a memória, com consequências que poderão ser
acerto histórico ou erro histórico crasso. No entanto, o historiador, assim
procedendo, irá além daquilo desejado por aqueles que contrataram, por isso que
deve, no seu trabalho crítico, declarar que ele vai além da vontade das partes
e que a autonomia que faz dele o raptor daquela vontade é motivada por intenção
que difere daquilo que foi almejado pelos signatários do acordo de vontades.
Dirá de que se trata, mas mencionará a intenção de seu uso histórico.
Coisas
semelhantes à exposta indicam que não pode haver assimilação entre memória e
suas formas de exteriorização. A memória imobiliza-se contraditoriamente para
sobreviver e circular, as mais das vezes, e ganha autonomia. Num conjunto de
outras imobilizações poderá ser posta em dúvida ou sofrer limitações no
resultado de sua interpretação.
3.3.
A memória imobilizada, a memória animada e a História
3.3.1. Exteriorização
da memória
Memória
tem sido entendida como capacidade de reter e evocar imagens, sons, odores,
sentimentos, informações, movimentos, etc., que o cérebro possui. Assim é
considerada por séculos.
A capacidade de manobrar o complexo mundo à
nossa volta depende dessa capacidade de aprender e evocar – reconhecemos
pessoas e lugares porque fazemos registros de sua aparência e trazemos parte
desses registros de volta no momento certo. (DAMÁSIO, 2011: 168).
A
questão que, no entanto, é ainda em nossos dias pesquisada é como ocorre o
registro (memória retentiva) e a lembrança (memória evocativa), especialmente
esse segundo momento: “Para que possamos entender como tudo isso ocorre,
precisamos descobrir no cérebro os segredos do algum modo e localizar o algum
lugar. Esse é um dos intricados problemas da neurociência atual” (DAMÁSIO,
2011: 168).
A tendência atual é entender que
o cérebro reduz a imagem, som, cor, etc., em um código, e essa visão é
justificada com o argumento de que “seria impossível armazenar no formato
original os mapas que fundamentam todas as imagens que um individuo já
percebeu” (DAMÁSIO, 2011: 178). Assim, todas as memórias disponíveis
encontram-se no cérebro sob forma dispositiva, no aguardo para explicitar-se em
imagens ou ações. Quando se fala em forma dispositiva com que tudo o que herdamos,
vivenciamos, etc., se encontra disponível no cérebro, quer-se dizer “registros
abstratos de potencialidades”.
Embora toda e qualquer memória
dependa desses registros, isto é, de sua forma de existir, e de maneiras de
evocação mais ou menos complexas a depender de circunstâncias, quando se trata
de memória individual, ou seja a base biológica inicial para que se possa
pensar numa memória social (coletiva, compartilhada), esta possui
condicionamento que decorre do próprio ser social. Socialmente registra-se e
evoca-se de forma diferente, basta pensar na resultante de debates gerados na
sociedade, que são reduzidos a uma posição sobre determinado assunto discutido
e lembrado, por exemplo, ou então imaginar o registro consistente em um suporte
físico, portanto exterior ao cérebro.
Compartilhar memória muitas vezes
não é apenas lembrar junto, pois
circunstâncias ocorrem que têm o efeito de modificar o curso da memória social,
como acontece diante de mudanças, revisões, ação do poder, esquecimento e
retomada com alterações dos registros memoráveis.
A memória exterioriza-se de diversas maneiras. A palavra
aplicada para designar uma função cerebral é a mesma utilizada para nomear
formas de sua exteriorização.
Metonímia histórica e devoradora fez
com que a exteriorização escrita da lembrança tomasse o nome de memória: assim
são tidos os documentos em geral. E, também, assim é a exteriorização oral:
depoimentos falados. Mas não é de surpreender o fato de que novos suportes em
que a memória se exterioriza passem a chamar de memória, como o filme, a foto,
a gravação, o disco rígido, etc. Mesmo os hábitos e práticas? Sim, aí estão
gestos, repetições de expressões do corpo e maneira de utilizar a mão no
desempenho do ofício, que importam à História, especialmente a do cotidiano, do
trabalho e da vida privada.
Para além, memória também tem outros significados, como é
o caso do texto ficcional denominado memória(s).
Aqui, no presente capítulo, o
interesse cinge-se às exteriorizações escrita e oral.
O rigor dos historiadores ainda não encontrou
palavra-conceito capaz de evitar os equívocos que acompanham o uso da palavra
memória. Confunde-se com seus produtos e com a própria História e mesmo há tipo
de História que pretende ser memória e assim é indicado por autores ou
tradições do escrever.
O apelo à memória e a busca crescente
pela autonomia do campo da História têm determinado esforço para a fixação de
parâmetros que estabeleçam distinções, desde Halbwachs, com Les Cadres Sociaux de la mémoire, de
1925, e Mémoire Collective, de 1950
(publicação póstuma).
Certamente que sem memória (função) não há História,
sequer conhecimento. Mas é necessário dizer como e o porquê disso, nas diversas
orientações historiográficas.
Um passo
fundamental da civilização foi o de imobilizar a memória. O dito, o acontecido,
o sentido e o pensado puderam ser imobilizados como a própria escrita houvera
fixado a linguagem articulada. A memória foi imobilizada, tal como a palavra,
como condição de ser utilizada e manter-se viva.
Com a
imobilização da memória, um outro patamar abriu-se para os humanos. Não se
tornou necessário retomar apenas dados da lembrança (evocação): o que se
conhecera ou praticara. A partir daquela imobilização, o caráter fugidio da
memória foi substituído pela sua permanência em um substrato qualquer.
Essa
imobilização não é a memória completa, e seu caráter é problemático. Se tenho
diante de mim um texto, preciso completá-lo num esforço que vai além de minhas
lembranças. Preciso lembrar-me do significado das palavras, ficar atento diante
das armadilhas da grafia, embutir o escrito no escaninho de seu tempo,
verificar seu sentido, ou suas contradições. A memória imobilizada precisa da
memória viva atuante. É como se esta a aviventasse.
E a
complementariedade entre ambas – a memória imobilizada e a viva memória – pode
ir além: necessitar de outras memórias, da memorização do saber (ele mesmo
memorizado), do saber fazer e de sua preservação. Mas necessita de
interpretação – um saber sempre incompleto. Muitas vezes o pensamento não está
voltado imediata e exatamente para a necessidade de estancar a memória em um
suporte, como um papel, mas produzir uma prova, como ocorre no contrato entre
duas ou mais pessoas. Relendo-o, os agentes que o elaboraram, ou mandaram
elaborá-lo, percebem que se trata a toda evidência de um acerto de vontades e
de sua prova, no entanto o texto é encarado como memória daquilo que foi
acertado, diante do esquecimento e da negativa.
A
complementariedade que se exige para conhecer a memória imobilizada, como foi
dito, pode demandar o trabalho coletivo e mesmo esperar até que isso seja
possível, no futuro: esperar uma técnica, novas pesquisas, ou um Champollion,
(linguista que decifrou os hieróglifos), este mesmo já preparado com
conhecimentos acumulados pela sociedade, para decifrar a escrita.
A memória,
algo difícil de ser compreendido, quando imobilizada, ainda continua difícil de
ser entendida, por isso que exige interpretação.
A memória, uma vez
imobilizada, deixa amplo espaço para uma atividade grande e complexa: a busca
do sentido, não da memória em si, mas do texto que dela ou da necessidade de
mantê-la resultou. É o âmbito de interpretação que se abre. Enunciados
escritos, reveladores da memória imobilizada, carecem de significados, pois
enquanto não são interpretados não servirão para o intuito do cientista e a
intenção desse será reveladora do tipo de interpretação. Grandemente vazios são
os enunciados e por serem relativamente ocos comportam vários sentidos. O texto
de lei é exemplo, talvez o mais eloquente, disso. Confirmando-o o fato de, em
sede de controle de constitucionalidade de lei, por exemplo, tribunal buscar
entre várias interpretações possíveis, a interpretação conforme a Constituição.
Difícil, politizada e
ideologizada é a tarefa da interpretação do enunciado dito, ou escrito, ou dito
e escrito. Quando a memória é dito imobilizado em documento, sucessivamente, no
decorrer da história, uma nova proposta de interpretar o texto surge atrelada a
uma doutrina dominante. Mas mesmo o enunciado atual de autoria de qualquer
pessoa busca uma “interpretação autorizada”. Há um caso exemplar: Georgina
Dufoix, ministra francesa dos Assuntos Sociais e da Solidariedade Internacional,
diante dos duros questionamentos sobre sua responsabilidade no caso da
utilização, pela rede hospitalar, de sangue contaminado que, em 1991 vitimou
muitas pessoas, afirmou que era “responsável, mas não culpada”. A expressão
gravada pelos diversos meios de comunicação foi utilizada como forte argumento
por aqueles que buscavam sua condenação por homicídio culposo e atentado
culposo contra a integridade física das vitimas. Georgina Dufoix utilizou uma
lógica não apreciada pelos juristas: desvincular a responsabilidade (assumida)
da culpa (o justo). Ela se dizia responsável, mas não ter culpa.
Que
sentido atribuir a “responsável mas não ter culpa”? Inovadoramente, como
perito, a então ex-ministra indicou um filósofo, Paul Ricoeur (2008), e este
buscou estabelecer o sentido, distinguindo a responsabilidade política da
culpabilização para fins penais.
Foi dito que há vínculo
entre a doutrina dominante e a interpretação da memória imobilizada – o texto.
Mas é preciso ainda completar: há um contexto cultural que deve ser levado em
conta e objetivos que o cientista pretende alcançar.
Em nível
historiográfico, importa dizer que a concepção dominante da História está indissoluvelmente ligada a determinado método de
interpretar e esse e aquela têm vigência em determinado contexto. Não há
hermenêutica ad aeternum. Mas há uma
eterna busca de sentido.
3.3.2. Positivismo e História– memória
O
positivismo histórico pretendeu fazer do documento (e de sua controlada
interpretação) a única fonte da história. Charles Langlois e Charles Seignobos
(1944, p. 15), iniciam o capítulo I de sua introdução aos Estudos Históricos,
com afirmativas precisas sobre o tema:
A história se faz com
documentos. Documentos são os traços que deixam os pensamentos e os atos dos
homens do passado. Entre os pensamentos e os atos dos homens, poucos há que
deixam traços visíveis e estes, quando se produzem, raramente perduram: basta
um acidente para os apagar. Ora, qualquer pensamento ou ato que não deixou
traços, diretos ou indiretos, ou cujos traços visíveis desaparecem, está
perdido para a história: é como se nunca houvesse existido. Por falta de
documentos, a história de enormes períodos do passado da humanidade ficará para
sempre desconhecida. Porque nada supre os documentos: onde não há documentos
não há história. (LANGLOIS e SEIGNOBOS, 1944: 15).
Adverte-se,
no entanto, que os autores acima mencionados admitem como documento um traço
material como um monumento, um objeto fabricado (página 43), mas firmou-se a
posição de que a história estabelece o modo indireto de investigação. O
historiador não observa os fatos no “momento em que se produzem”, mas
indiretamente, utilizando os traços que aqueles fatos deixaram.
Langlois
e Seignobos privilegiam os documentos, sobretudo os escritos (mas não todos), estabelecem
procedimentos para sua análise e pretendem com essa alcançar o sentido e
encontrar a verdade. Firmam dois grupos de procedimentos necessários ao
historiador: a crítica externa e a crítica interna do documento. Em suas
próprias palavras:
Primeiramente
observamos os documentos. Está ele tal qual como no momento em que foi
produzido? Não foi danificado? Indagamos como ele foi fabricado, a fim de o
reintegrarmos, se for preciso, em seu texto original e de lhe determinarmos a
procedência.
Este primeiro grupo
de trabalhos preliminares, que se executa em função da escrita, da língua, das
formas, das fontes, etc., constitui o domínio particular da CRÍTICA EXTERNA ou
crítica de erudição. A seguir, intervém a CRÍTICA INTERNA: ela tem por fim,
atuando por meio de raciocínios por analogia – de que a maior parte é tomada à
psicologia geral – reelaborar os estados psicológicos por que passou o autor do
documento.
Sabendo o que o autor
do documento disse, perguntamos:
1)
Que
quis dizer?
2)
Acreditou
ele no que disse?
3)
Tinha
razão para acreditar no que acreditou?
Sob este último
aspecto o documento atingiu a um ponto em que pode ser reduzido a uma das
operações científicas, das quais se constitui toda ciência objetiva: tornou-se
um caso de observação; basta tratá-lo pelos métodos das ciências objetivas.
Todo documento vale exatamente na medida em que depois de ter sido estudado em
sua gênese, pode ser reduzido a uma observação bem feita (p. 45 e 47).
E, quanto a cuidados suplementares, advertem os historiadores:
Muito importante são
as precauções que devemos tomar para nos servimos destes documentos, que
constituem o único material da ciência histórica [...] é preciso eliminar os
que nenhum valor apresentam e distinguir nos outros o que já foi observado com
fidelidade. (p. 47-48).
Além disso, declaram os autores que:
A crítica tem por
objetivo discernir nos documentos o que pode ser aceito como verdadeiro. Ora,
um documento é o resultado de uma longa série de operações, das quais o autor
nenhuma informação nos dá. Observar ou arrolar os fatos, conhecer frases,
grafar as palavras, são operações distintas e necessárias, que podem não ter
sido feitas com igual correção.
É preciso, pois,
analisar o produto deste trabalho do autor para distinguir quais as operações
incorretas, a fim de recusar-lhes os resultados. Deste modo a análise é parte
indispensável da crítica; toda crítica começa por uma análise. (p.
100-101).
Uma
concepção histórica desse tipo não pode ter a memória manifestada de forma não
escrita (nem história oral!) como fonte da história e, se fosse problema posto
aos seus partidários, no tempo de sua vigência, certamente fariam oposição
entre história e memória a partir dos documentos (inclusive relatos memoriais).
Não seria sequer o caso de adotar – como é feito neste capítulo – conceito de
memória imobilizada. A perspectiva positivista anularia a memória e só
reconheceria a história: os fatos históricos, o passado. Uma história fatual,
enfim. Diante do relato, essa procuraria impor seus critérios de críticas
interna e externa, visando ao verdadeiro. Mas há quem veja na história crítico
– documental (positivista) u’a memória de modelo história-memória também, que
toma o acervo documental (manifestação da memória) como memória.
A
argumentação feita acima segundo a qual o positivismo histórico, centrando-se
no documento e na sua crítica, exclui a memória justifica-se apenas em razão
dos pressupostos apresentados: a tentativa (para alguns alcançada) do
positivismo histórico de criar o ofício do historiador, profissionalizar a
história. Em outras palavras, indica rompimento com uma tradição em que
visivelmente a idéia de memória esteve presente, e implicava em autonomizar a
história, situando-a num campo bem definido com o seu objeto: o fato histórico,
encadeado em suas causas e consequências. Declaradamente, pode-se até mesmo
dizer, a autonomia buscada e a profissionalização do historiador implicam na
argumentação até aqui feita, de que há uma delimitação de campo, na fixação de
um objeto definido (o fato histórico e seu encadeamento) e um método para a
observação indireta própria da história (a crítica documental).
E
assim seria, mas não ocorreria o avanço entre a mera aparência e o encontro do
essencial. A argumentação ficaria limitada à pré-compreensão. É que falta nas
considerações expendidas, que indicariam um campo próprio para a história e,
com isso, sua distinção do campo da memória, componente essencial: a própria
concepção de história que resulta da leitura crítica da produção
historiográfica dos positivistas. Isso remete para a denúncia da função
ideológica, do objetivo, consciente ou não, daquela história produzida no seio
do positivismo.
Efetivamente,
leitura que não se detém nos aspectos abordados, que podem ser sintetizados em
autonomização do objeto da história (fato histórico e seu encadeamento singular
entre causas e consequências) e elaboração de método próprio (observação indireta
e crítica documental), encontra componente que faz da história positivista
texto profundamente memorial: mesmo que em alguns deles a tessitura do
histórico apareça em movimentos contraditórios.
É fato que
a concepção geral da história positivista, para além do objeto e do método
(para além da autonomização do campo do saber e da profissionalização de seus
cultores), decorrente da análise daquilo que foi historiograficamente
produzido, é a concepção de uma história-memória: memória da nação, ou a preocupação
ideológica de criá-la ou de consolidá-la.
Marx
(2007) já havia apontado a estreita vinculação entre a história e o Estado.
Esse patrocina o aparecimento da história nacional (2007).
Com a
proposição de que a história no modelo de Ranke, Langlois e Seignobos é uma
história-memória concordam Foucault (Arqueologia
do Saber) e Nora (Entre Memória e
História – A problemática dos lugares). Diz Foucault:
É preciso desligar a
história da imagem com que ela se deleitou durante muito tempo e pela qual encontrava
justificativa antropológica: a de uma memória milenar e coletiva que se servia
de documentos materiais para reencontrar o frescor de suas lembranças; ela é o
trabalho e a utilização de uma materialidade documental (livros, textos,
narrações, registros, atas, edifícios, instituições, regulamentos, técnicas,
objetos, costumes, etc.) que apresenta sempre e em toda parte, em qualquer
sociedade, formas de permanências, quer espontâneas, quer organizadas. O
documento não é o feliz instrumento de uma história, que seria em si mesma, e
de pleno direito, memória [...].
Digamos, para
resumir, que a história, em sua forma tradicional se dispunha a “memorizar” os
monumentos do passado, transformá-los em documentos e fazer falarem estes
rastros que, por si mesmo, raramente são verbais, ou que dizem em silêncio
coisa diversa do que dizem. (FOUCAULT, 2007: 7, 8).
Nora
(1993, p. 11), por sua vez, escreve:
Houve um tempo em
que, através da história e em torno da Nação, uma tradição de memória parecia
ter achado sua cristalização na síntese da III República. Desde Lettres sur l’histoire
de France, de Augustin Thierry (1827) até Histoire Sincere de la nation française,
de Charles Seignobos, adotando uma larga cronologia, História, memória, Nação
mantiveram, então, mais do que uma circulação natural: uma circularidade
complementar, uma simbiose em os níveis, científico e pedagógico teórico e
prático. A definição nacional do presente chamava imperiosamente sua
justificativa pela iluminação do passado. (NORA, 1993: 11).
Então,
aquilo que, com ênfase, se disse anteriormente quanto ao positivismo, de uma
história que nega a memória, com a análise direcionada por determinado vetor,
não se sustenta diante do quanto efetivamente produzido pelos historiadores
crítico-documentais. Estes alcançaram uma história concebida como memória, com
função ideológica precisa: memória da nação, comunidade (imaginada) de todos,
que a todos unifica apesar das profundas contradições entre as classes sociais.
Por isso toda declarada intenção de fazer história é direcionada para a
construção da memória: uma história concebida como memória; uma história
concebida com pecado. Não bastasse isso, o culto ao documento é culto à
memória, pois documento é exteriorização desta. É meio, fonte, não objeto de
reverência.
3.3.3. A primeira e
segunda gerações dos Anais e História.
Como
foi visto, o positivismo trata o documento de forma privilegiada, especialmente
o documento oficial, estabelecendo a sua crítica como centro de metodologia da
história. Por outro caminho, a primeira geração da Escola dos Anais rejeita a
memória (de forma sui generis, mas
quer História) e trata os relatos feitos a partir daquela de forma bastante
crítica, negando-lhes geralmente validade quanto àquilo que informam, exceto em
situações limitadas e com outros critérios críticos, ou utilizando-os como
falsificações que informam, buscando-lhe a razão de ser (uma carta falsa pode
ajudar a entender um conflito de interesses).
Para
estabelecer o posicionamento da primeira geração da Escola dos Anais quanto à
memória relatada, pode-se utilizar o texto de Marc Bloch – Apologia da História: o Ofício do Historiador (2001). Nesse texto,
Bloch aponta motivos para a recusa do relato memória, isto é, do relato
testemunho: a) limitação humana de perceber o ambiente; b) cansaço ou a emoção;
c) as lembranças não atingem a estrutura elementar do passado; d) a faculdade
de observação do indivíduo não é uma constante social; e) o erro da testemunha
é favorecido por certas circunstâncias sociais, que potencializam a transmissão
da notícia falsa, como a censura e a propaganda; há relatos conscientemente
mentirosos; f) muitas testemunhas se enganam com toda boa fé.
Bloch
(2001, p. 103), para ilustrar a distração (limitação humana para perceber o
contexto imediato), reproduz informação de Guillaume de Saint-Thierry amigo e
discípulo de São Bernardo, que noticia que este ficara, “um dia muito surpreso
ao saber que a capela onde o jovem monge seguia cotidianamente os seus ofícios
divinos abria-se, ao fundo da nave, em três janelas, sempre imaginara que tinha
apenas uma”. E ao saber dos alunos do professor Claparède, em Genebra, que
“mostraram-se, durante experiências célebres, tão incapazes de descrever o
vestíbulo de sua universidade quanto o doutor da palavra de mel a igreja de seu
mosteiro”.
O
autor (2001, p. 103) chama a atenção para o fato de que “em certos espíritos a
inexatidão assume aspectos verdadeiramente patológicos”, e que há causas para
isso: o cansaço e a emoção, que ocorrem diante da situação em que
momentaneamente se encontra o observador, enquanto que outras limitações
acontecem em nível da atenção do indivíduo, pois “com poucas exceções não se
vê, não se ouve bem a não ser o que se esperava de fato perceber”.
Bloch
explica que
[...] muitos acontecimentos
históricos só puderam ser observados em momentos de violenta perturbação
emotiva ou por testemunhas cuja atenção, ora solicitada tarde demais, quando
havia surpresa, ora retida pelas preocupações com a ação imediata, era incapaz
de incidir com intensidade suficiente sobre as características às quais o
historiador, com razão, atribuiria atualmente um interesse preponderante.
(BLOCH, 2001: 104).
Segundo
o referido autor (2001, p. 105, 106), deve-se considerar, quanto à faculdade de
observação, que esta não é uma constante social. Há épocas em que essa
faculdade escasseia, enquanto em outras há maior acuidade no observar. Mas o
testemunho não é contaminado por erros apenas em razão de fraqueza dos sentidos
ou fragilidade da atenção. A tarefa do historiador não é a do psicólogo, daí
porque aquele deve buscar causas na própria atmosfera social de cada tempo.
Embora, como antes foi dito, Bloch não despreze, na análise do relato, ou
testemunho, a desatenção ou fraqueza dos sentidos, entende que não cabe ao
historiador abdicar do estudo que ultrapasse essas fragilidades, em suas
palavras – “pequenos acidentes cerebrais”, deixando a tarefa ao campo da
psicologia, pois há causas não psicológicas que explicam erros dos sentidos,
desatenção, etc.,
Mas, para além desses
pequenos acidentes cerebrais, de natureza bastante comum, muitos deles remontam
a causas muito significativas de uma atmosfera social particular, eis por que
assumem, frequentemente, por sua vez |como a mentira|, um valor documental.
(2001 :104).
Veja-se
aí que a perspectiva do historiador não é, fixada a falsidade, abandonar o
relato (como faria o positivista), mas buscar entender, na atmosfera em que foi
produzido, causas profundas para que a inverdade ou a inexatidão tenham
ocorrido. E perceber que também serve à explicação histórica o esclarecimento
da falsidade ou da falsificação. Há distanciamento da memória.
Os
testemunhos, por seu turno, igualmente não alcançam a “estrutura elementar do
passado. A psicologia do testemunho alcança, com incerteza, os “antecedentes
completamente imediatos”. Muitos fatores devem ser considerados além da
imediatidade. Diz Bloch:
Numerosos fatores,
muito diversos e muito atuantes, que desde logo um Tocqueville soube vislumbrar,
haviam preparado há muito tempo a revolução de 1848 –esse movimento tão
claramente determinado, o qual, por uma estranha aberração, certos
historiadores acreditaram [poder] transformar em protótipo do acontecimento
fortuito. O fuzilamento do boulevard des Capucines foi outra coisa senão a
última pequena fagulha? (BLOCH, 2001: 105).
Não
é desprezível, no texto de Bloch, a percepção de que o relato falso geralmente
é potencializado pela censura e propaganda. O autor observa que a situação da
sociedade, especialmente em determinados momentos, favorece a divulgação da
noticia falsa, e o erro de uma só testemunha ganha amplitude social, e assinala
essa forte ocorrência nos últimos anos contados da escrita da sua Apologie pour l’historie (1940-1944).
Assim,
pondera Bloch:
No entanto, para que
o erro de uma testemunha torne-se o de muitos homens, para que uma observação
malfeita se metamorfoseie em falso rumor, é preciso também que a situação da
sociedade favoreça essa difusão. Nem todos os tipo sociais lhe são, longe
disso, igualmente próprios. Nesse aspecto, os extraordinários distúrbios da
vida coletiva que nossas gerações viveram constituem outras tantas admiráveis
experiências. (BLOCH, 2001: 107).
O
autor anota, quanto aos anos da Primeira Guerra Mundial:
Todos sabem o quanto
esses quatro últimos anos mostraram-se fecundos em noticias falsas. Sobretudo
entre os combatentes. É na particularíssima sociedade das trincheiras que a
formação dessas notícias parece mais interessante de ser estudada. (p. 107).
E,
sobre a censura e a propaganda como fatores potencializadores da divulgação do
falso relato, do “erro de uma testemunha” que se torna no erro “de muitos
homens”:
[...] o papel da
propaganda e da censura foi, à sua maneira, considerável. Mas exatamente o
contrário do que os criadores dessas instituições esperaram delas como disse um
humanista: “Prevalecia nas trincheiras a opinião de que tudo podia ser verdade
à exceção do que se deixava imprimir. Ninguém acreditava nos jornais; tampouco
nas cartas; pois, além de chegarem irregularmente, eram consideradas muito
vigiadas. Daí uma renovação oral, mãe antiga das lendas e mitos. (BLOCH, 2001,
p. 107).
Bloch
também compreende que o engano da testemunha pode acontecer sem má-fé: “não é
menos verdade que muitas testemunhas se enganam com toda boa-fé” (p. 102)
O
autor (2001, p. 106) entende que “o erro quase sempre é previamente orientado.
Sobretudo, só ganha vida sob a condição de se combinar com o partis pris
da opinião comum, torna-se então (como) o espelho em que a consciência coletiva
contempla seus próprios traços”.
Disso
tudo não se conclui que o testemunho seja relegado ao abandono. Afirmou-se que
não se descarta o relato falso. Este tem sentido para o historiador: algo
determinou a sua existência e ele ajuda a compor o quadro em que se move a
inteligência do historiador. Mas, afora a consideração do não uso do documento
falso (positivismo) e o seu uso para a compreensão dos processos históricos,
Bloch estabelece alguns critérios para análise crítica dos testemunhos ou
relatos sobre o mesmo fato, recomendando que fiquem evidentes as discrepâncias
que os marcam; a escolha daquele que deve subsistir após a operação
lógico-critica (uso do princípio da contradição; contextualização; utilização
de fontes vizinhas; etc.); exame do material empregado (exemplo, uso
[contrafação] do papel em momento em que esse inexistia); verificação da técnica
utilizada ao tempo; observação de semelhanças e verificação se um relato
dependeu de outro, ou individuo o copiou alterando termos, voz de verbo, etc.;
entender que a estrita semelhança de relato pode indicar que um é cópia de
outro; perceber, no entanto, que a similitude do relato pode confirmar o
acontecimento ou acreditá-lo; observar se não ocorreu imitação por outrem de
relato anterior; “desmarcar uma imitação é, ali onde inicialmente acreditamos
lhe dar com duas ou várias testemunhas, deixar subsistir apenas uma”; utilizar
a operação estatística, etc. (BLOCH, 2001: 113).
O
relato não é abandonado, mas é submetido à lógica do método crítico, que
ultrapassa o modelo da crítica interna-externa da escola crítico-documental
(positivista), tal como a última aparece na obra citada de Langlois e
Seignobos.
Igualmente
necessário é a contextualização, sob diversos aspectos, inclusive físicos:
Um documento, que se
diz do século XIII, que está escrito sobre papel, ao passo que todos os
originais dessa época até agora encontrados o são sobre pergaminho; a forma das
letras aparece bem diferente do desenho observado em outros documentos da mesma
data; a língua abunda em palavras e figuras de estilo estranhas ao uso unânime.
Ou então as dimensões de uma ferramenta, pretensamente paleolítica, revelam
procedimentos de fabricação empregados apenas em épocas bem próximas de nós.
Concluímos que o documento e a ferramenta são falsificações (BLOCH, p. 110,
111).
E,
com rigor, Bloch (2011, p. 111) diz que “A ideia que, desta vez, orienta a
argumentação reza que, em uma mesma geração de uma mesma sociedade, reina uma
similitude de hábitos e técnicas muito grande para permitir a qualquer
individuo afastar-se sensivelmente da prática comum”.
Embora
possa afirmar-se, segundo o autor, que para que o testemunho seja reconhecido
como autêntico, o método, vimos isso, exige que ele apresente uma certa
similitude com os testemunhos vizinhos. O autor – porque adota muitas
determinações – não se esquece de que pode ocorrer a originalidade, invenção,
ou distanciamento dos modos vigentes na sociedade:
Não apenas a
impressão de uma contradição entre um testemunho novo e seus similares
arrisca-se a ter como origem apenas uma temporária enfermidade de nosso saber,
como acontece de a discrepância residir autenticamente nas coisas. A
uniformidade social não detém tanta força que dela não consigam escapar certos
indivíduos ou pequenos grupos. Sob o pretexto de que Pascal não escrevia como
Arnauld, que Cézame não pintava como Bouguereau, nos negaremos a admitir as
datas reconhecidas das Provinciales ou da Montagne Sainte-Victoire? Acusaremos
de falsificação os mais antigos artefatos de bronze pela razão de que a memória
das jazidas da mesma época não nos fornece senão artefatos de pedras? (BLOCH,
2001: 115).
O
que importa aqui, para os objetivos desse trabalho, quanto à Escola dos Anais,
ora tomando como seu representante Marc Bloch, de sua primeira geração, é
estabelecer como já foi dito, que não há uma recusa da memória escrita (que
aqui é denominada memória imobilizada para distingui-la da memória função),
porém um rigor crítico para a aceitação daquilo que deve ser tido como verídico,
que vai muito além do método e dos objetivos dos positivistas. Mas – frise-se
–não se trata da memória que se expressa a terceiros como oralidade. Não. Se se
quiser traçar possível contribuição de Bloch, quanto à aceitação de memória
(relato), deve-se cingir ao escrito. No entanto, mesmo no âmbito da oralidade,
pode-se adotar, mutatis mutandis, a
argumentação metodológica daquele historiador francês, que esteve na origem da
Escola dos Anais. Sua contribuição é marcante, mas para os que querem buscar
abordagem da memória em seu texto, só a encontrará como memória relatada
(relatos, testemunhos), que o presente trabalho prefere considerar memória
imobilizada, à semelhança da escrita, que é a palavra imobilizada. Bloch filiou
a memória à identidade (Nora, 1993), ao afirmar que a identidade da França é
sua memória, ou não é.
O
positivismo na “escola crítico documental” submete o texto, como se disse a
severa crítica, podendo utilizar os testemunhos escritos à luz de rígidos
critérios e, como importa o testemunho verdadeiro, não há espaço para a
compreensão de significado do documento falso.
Em
contrapartida, a Escola dos Anais, ora representada pela Apologia de História,
para criticar o testemunho vai além do texto, e para conhecer a história indaga
o porquê do falso testemunho, para a compreensão do dado histórico. Em razão
desses aspectos, e outros apontados, termina, por exceder qualitativamente à
crítica documental dos positivistas.
Não
há entre as duas primeiras gerações dos Anais discrepância. O livro que reúne
os textos teóricos de Braudel, não vai além de Bloch, quanto ao método.
No
entanto, não há espaço, em ambas as “escolas” (até a morte de Braudel, à frente
dos Anais) para a memória coletiva como contributo ao ofício do historiador.
Somente após a saída de Braudel da direção da Revista Anais (1971) é que se
pode, no âmbito dessa Escola, falar de Memória, sua valorização para a
história, sob diversos aspectos. No entanto, pode-se indagar se após Braudel
existe mesmo uma Escola dos Anais, ou se a chamada terceira geração dos Anais
não é outra orientação, ou melhor, se não expressa diversas orientações.
Para que a memória apareça imbricada
na história, em Bloch, tem-se que partir da noção de documento como memória
imobilizada. Introduzindo-se o conceito para a leitura de Bloch, a memória
estará contida na História sem com esta confundir-se.
3.3.4. A terceira geração
dos Anais e memória.
É
certo que a leitura dos textos dos autores da chamada terceira geração dos
Anais indica que há um esfacelamento dos avanços alcançados no campo da
História pelas duas gerações anteriores em relação aos pressupostos do
conhecimento histórico. Assim, tem sentido a expressão, que ganhou mundo,
cunhada por François Dosse, que é título de seu livro: História em Migalhas (2003).
Na
apreciação de Aróstegui (2000, p. 149),
Seguramente com a
saída de Braudel da atividade direta no começo dos anos 70, a escola deixa
definitivamente de ser um movimento com coesão básica em todos os sentidos
possíveis do termo, do acadêmico ao social, e afloram as divergências,
fecundas, sem dúvida, que já haviam nascido nos anos 60 e que tinham dado lugar
nos 70 e 80 a uma grande quantidade de derivações que tem sua origem nas
posições clássicas da “escola”.
Com
a “terceira” geração dos Anais, a memória coletiva passa a ser considerada,
reestuda-se Halbwachs, procura-se entendê-la, busca-se distinguir seu alcance e
delimitar seu campo em relação ao campo historiográfico. E em 1988 e 1989,
Bernard Lepetit, à frente da Revista
Anais, dá o tom do momento ao indicar a necessidade de uma virada crítica (tournant critique) em relação às
ciências sociais e de experimentar o contato e contribuições dessas. Com
efeito, no editorial de 1988 o diretor da revista, dentre outras coisas, diz:
[...] Chegou o
momento de misturar do novo as cartas – Não se trata de levantar o inventário
interrompido de uma situação que não cessa de mudar sob os nossos olhos, muito
menos de fazer a constatação global de um fracasso. Trata-se de tentar, a
partir de experiências adquiridas e daquelas que estão em curso, livrar alguns
pontos de referência, de traçar algumas linhas de conduta para práticas
vigorosas e inovadoras em tempo de incerteza.
[...]
Nem balanço, nem
exame de consciência. O momento não nos parece decorrer de uma crise da
história cuja hipótese alguns aceitam comodamente. Nós temos, em compensação, a
convicção de participar de uma nova situação, ainda confusa, e que se trata de
definir, para que se possa exercer amanhã o ofício de historiador. Nós temos
ambição de assumir, com muito vigor, uma virada crítica[1].
E,
em 1989, o editorial dos Anais concita a:
Desenhar o campo de
uma confrontação frutífera das investigações em curso, cristalizar os novos
questionamentos e as novas maneiras de fazer com que os canteiros numerosos,
mas dispersos, vejam-se definir, estabelecer as bases renovadas sobre as quais
fundar o ofício do historiador e o diálogo com as ciências sociais: nossas
ambições serão enormes se elas não encontrarem um eco e um apoio na reflexão e
no trabalho coletivos. É preciso, portanto, desde agora delinear os primeiros
eixos ao longo dos quais avançamos em conjunto. Eles constituem os elementos de
uma política redacional. Eles se apresentam como conclamação a uma obra comum.
[...]
Por outro lado, a
inovação supõe, no âmbito intelectual como em outros, a diferença. Como escapar
do peso das tradições acumuladas, como esquecer as categorias mentais
recebidas, ‘as prisões de longa duração’, para produzir um saber novo? A
interdisciplinaridade, por que ela multiplica os olhares, assegura o
distanciamento crítico em relação a cada uma das maneiras de representação do
real, permite quiçá não ficar prisioneiro de ninguém. Ela deve nos ajudar a
pensar de outro modo.[2]
Ora,
a Escola que se debatera entre a posição de Bloch, que entendia a história como
ciência (ciência dos homens no tempo) e Febvre, que mencionava a história como
“estudo cientificamente elaborado”, respectivamente em Apologia da História (2001) e Faire
de l’Histoire, unira-se em torno de questões fundamentais, como a defesa da
história problema em relação ao relato, a fuga da superficialidade, do
acontecimento, a crítica à noção de fato histórico, dos acontecimentos, a
utilização de múltiplas fontes, etc. Mas, no inicio dos anos 70, especialmente
com a saída de Braudel (se se pretender data aproximada), já se nota a fissura
entre suas orientações e mesmo em torno de conceitos que vinham sendo criados.
No
momento do editorial de março-abril de 1988 dos Anais, sobre a virada crítica,
seus historiadores já vinham efetivamente buscando diversos caminhos, como
comprova a leitura de História: novos
objetos, novos métodos, novas abordagens, de 1974, de Le Goff e Nora.
Não
é mesmo licito, partindo-se do aspecto doutrinário que marcou as fases anteriores
do Anais, falar em terceira geração – terceira geração da “Escola dos Anais”,
com o que se entende por primeira geração (Febvre, Bloch...) e com a segunda
(Braudel, Ferro...). É inafastável considerar uma concepção da história e
unidade do objeto. Aí, centra-se a ideia de história global. E isso é
incompatível com a afirmativa de que não há História, mas sim histórias.
Ora,
com a chamada terceira geração, não há continuidade das formas de abordar o
histórico e da concepção da história que se desenvolvera nos diversos artigos
da Revista Anais.
Daix
(1999) demostra que não houve uma sucessão tranquila na direção da revista e
toma o testemunho de Ferro: “o resultado de uma crise com o grupo que já
dirigia a VI seção, o grupo dos antigos comunistas que se tornaram
anticomunistas, Le Roy Ladurie, Furet, Besançon. Eles queriam minha cabeça,
sobretudo por causa da minha atitude em 1968 (Daix,
1999, p. 515)”.
É ainda Daix
que transcreve trecho da carta de Braudel ao historiador soviético Dalin, na
qual se lê que os novos dirigentes da revista deveriam ser criticados,
[...] por se
preocuparem com a moda. Quando isso acontece, corremos atrás, ao invés de ir na
frente. Por outro lado os novos Annales romperam com algo que fora essencial
desde sua criação, uma espécie de desejo de globalidade na história, tentar
constituir, a propósito desta ou daquela questão, o conjunto das realidades
sociais que constituíram e que são as únicas capazes de explicá-las. (DAIX,
1989: 515).
Fontana
caracteriza a fase dos Anais, geralmente conhecida como terceira geração, como
fuga à reflexão teórica e sua substituição por procedimentos metodológicos,
[...] da mais
reluzente novidade como garantia de cientificismo”, e acentua que “seus traços
mais visíveis são o ecletismo (característica habitual do pensamento
acadêmico), uma vontade globalizadora, que se justifica pela necessidade de
superar a limitação tradicional dos cultuadores da História politica (porém que
é, na realidade, o resultado do uso de um instrumento metodológico heterogêneo
e nem sempre coerente), e um esforço pela modernização formal que cumpre a
função de desviar a atenção para o meramente instrumental, encobrindo a
ausência de um pensamento teórico propriamente dito. (FONTANA: 1998, 203-204).
É
ainda Fontana quem denuncia a falta de rigor daquela revista após a saída de
Braudel:
Não se estranha que a
escola haja caído por uns dois anos depois que Braudel abandonou a direção
efetiva da revista, fato esse, como já se disse, que refletiria numa queda do
mínimo rigor que se tinha mantido até então – sob o feitiço do estruturalismo
levistraussiano, que pelo menos, oferecia pautas para a construção de
explicações globais.(FONTANA, 1998: 211).
A
situação descrita já é indicativa de que não se trata mais exatamente de uma
“escola” (Escola dos Anais), mas de uma “geração” que passou a controlar a
revista, sem necessária identidade geral de concepção, métodos e objetivo
primordial.
O
tratamento da memória, pelos historiadores dos Anais, após a saída de Braudel
da direção da revista, reflete a situação denunciada por esse e, mais, por Ferro e Fontana. Não se pode buscar, na chamada
terceira geração dos Anais, um pensamento único sobre a memória e sua relação
com a história.
Com
efeito, pode-se tomar como fundamentação da assertiva acima dois
posicionamentos, respectivamente de Le Goff (2003) e Nora (1984).
Le
Goff, como já foi dito na introdução do presente trabalho, giza e caracteriza
os tipos predominantes da memória no decorrer do tempo histórico, inspirado em
Leroi–Gourhan. Assim, aponta: a memória étnica (nas sociedades ágrafas),
desenvolvimento da oralidade à escrita (correspondentes ao período da
Pré-História à Antiguidade), os progressos da memória escrita (do século XVI
aos dias atuais), e os desenvolvimentos contemporâneos da memória.
A
par de caracterizar bem cada fase de predominância de um dos tipos de memória,
há objeções que devem ser opostas ao texto Memória,
de Le Goff. Certamente, a primeira daquelas é o caráter bastante eurocêntrico
do ensaio (apesar de algumas referências ao oriente). As considerações sobre a
memória na época feudal, com seu caráter religioso cristão aplica-se, por
evidente, à Europa. A segunda objeção refere-se ao fato de não perceber o
entrecruzamento entre diversas memórias, no momento do choque colonial – isto
é, a memória letrada dos fins da Idade Média e do Renascimento e a memória
étnica dos “colonizados”. Não se pode esquecer, se utilizarmos o quadro da memória
na história, proposto por Le Goff, que a colonização encontra os colonizandos
grandemente ágrafos (na América, sobretudo), e quando não os encontra assim, as
tradições escritas são diferentes (basta pensar nas civilizações Asteca e Maia).
Há para a cultura dos povos consequências sérias, inclusive a escravidão ou a
substituição de modo de produção com correspondente impacto sobre a memória.
Outra objeção, a terceira, que se pode enunciar é certo distanciamento teórico
entre o que deve ser dito como memória coletiva e o próprio registro do dado.
Não há duvida que, como diz o autor,
[...] a memória
coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças sociais do
poder. Tornar-se senhores de memória e do esquecimento é uma das grandes
preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as
sociedades históricas (Le Goff,
2003, p.422).
Mas,
cumpre distinguir aí o que se entende por memória, pois uma coisa é a memória
étnica, que remete à tradição, à oralidade, em que o exercício para lembrar é e
deve ser contínuo. Coisa bem diferente é o registro daquilo de que se lembra ou
que é lembrado num substrato escrito. Essa distinção – o que é mantido na
lembrança e o que é registrado num suporte para ser lembrado – tem sérias consequências,
inclusive quando se pensa em memória função psíquica e se atribui ao registro o
conceito de memória. Não se pode tratar genericamente como memória (sem
especificar distinções, ou adjetivar) a lembrança que se perpetua,
independentemente do registro por escrito, e o registro em pergaminho ou em
outro tipo de suporte. Trata-se do necessário apuro teórico, que – nesse
aspecto – não é visível em Le Goff, apesar de constante em suas produções.
Importa,
no entanto, dizer que Le Goff (2003, p. 470) tem o mérito de não entender a
memória coletiva como algo politicamente neutro. Em mais de um momento de Memória esse historiador deixa evidente
que a memória coletiva serve a interesses de grupos, no sentido de que se trata
de “uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder”.
Le
Goff não faz uma contraposição absoluta entre memória e história, pois:
A memória na qual
cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para
servir ao presente e ao futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória
coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens (Le Goff, 2003, p. 471).
Não
se vê em Le Goff uma delimitação entre memória e história, embora possa ser
percebido que a memória é algo diverso da história. Mas em quê? – Não ajuda
muito a construção “memória na qual cresce a história, que por sua vez a
alimenta”, para distinguir campos do saber, apesar de expressar algo que
corresponde ao real, não há delimitação de campos. Aliás, esforço maior não
diria que a história cresce na memória, pois inverteria os termos, fazendo da
historia algo sempre inclusivo e de memória coisa incluída: memória historiada.
Há quem aceite a construção pela correspondência ao concreto. Mas pode-se
defender um concreto pensado de forma
diferente, delimitando campos. Observe-se que, no geral, Le Goff historia a
memória, tornando-a objeto da História.
Dentro
da denominada Terceira Geração, encontra-se posicionamento diferente, como é o
caso de Pierre Nora, naquilo que se refere à memória. Ao contrário de Le Goff, Nora quer a
demarcação da História face à memória.
Pierre
Nora celebra o fim da Historia-memória. Aponta diversos fatores que
condicionaram o sepultamento desse tipo de história. Veja-se: fim da Memória
como fim de História, se concebida esta como memória. Em seu texto Entre Memória e História – A problemática
dos lugares (1984), o autor entende que há um sentimento de ruptura com o
passado, já definitivamente morto, e que o interesse pelos museus, arquivos,
celebrações, etc., ao invés de significar a prevalência da memória, indica seu
esfacelamento. Refugia-se nesses lugares da memória exatamente porque essa se
esvaiu. Mas, apesar disso, o interesse por aqueles lugares indica que, apesar
do esfacelamento da memória, esta ainda mantém algum vigor que permite o
interesse quanto às formas de sua manifestação (encarnação).
O
esfacelamento da memória (História-memória) está ligado ao processo de
mundialização, democratização, massificação, mediatização e descolonização. As
ideologias memoriais, entendidas como aquelas que conservavam e permitiam a
transmissão de valores desaparecem, como desaparecem comunidades, como as
camponesas de molde tradicional. Aí já não persiste o sentimento de um trânsito
sem maior alteração daquilo que se deve reter para preparar o futuro. As nações que emergiram da luta anticolonial
defrontam-se com a necessária historicidade e é o mesmo movimento de
descolonização que as levou à troca da memória pela História.
A
história-memória estava vinculada ao Estado-nação, mas à medida que o estado
social se estabelece, passa a viger a relação Estado-sociedade e, com isso, a
busca da sociedade pelo saber sobre si. Com a democratização, com a ocupação do
lugar e espaço da nação pela sociedade, já não se trata de buscar a legitimação
do Estado “pelo passado, mas sim pelo futuro”. Diz Nora (1984, p. 12): “O
passado só seria possível conhecê-lo e venerá-lo, e à Nação servi-la, o futuro
é preciso prepará-lo”, os três termos recuperaram sua autonomia. A nação não é
mais um combate, mas um dado; a história tornou-se uma ciência social, e a
memória um fenômeno puramente privado. A nação-memória terá sido a última
encarnação da história-memória.
A
memória transformou-se igualmente. Não há como não perceber a diferença entre a
memória encontradiça nos gestos, nos ofícios, hábitos, as memórias impregnadas,
da História, marcada esta pelo voluntarismo e deliberação e entendida como um
dever. Não se trata de algo espontâneo como a memória. Deixa a memória de ser
gestual, da transmissão de saberes dos ofícios e práticas do trabalho, da
continuidade dos hábitos, para transformar-se em memória arquivística.
Ocorre,
no novo contexto, a assimilação do termo memória pelo acúmulo de documentos,
imagens, etc.: “o que nos chamamos de memória é, de fato, a constituição
gigantesca e vertiginosa do estoque material daquilo que nos é impossível
lembrar, repertório insondável daquilo de que poderíamos ter necessidade de nos
lembrar” (p.15). A memória se expande, desacelera, descentraliza e se
democratiza, à medida de sua materialização em diversos suportes (papel, filme,
etc.).
Mas,
enquanto cresce a memória arquivística e a História substituí a
História-memória, os indivíduos são tomados pela coerção da memória coletiva,
que se revitaliza em cada um, de forma atomizada.
Nas
palavras do autor:
Porque a coerção da
memória pesa definitivamente sobre o individuo e somente sobre o individuo,
como sua revitalização possível repousa sobre sua relação pessoal com seu
próprio passado. A atomização de uma memória geral em memória privada dá à lei
da lembrança um mesmo poder de coerção interior. Ele obriga a cada um a se
relembrar e a reencontrar o pertencimento, princípio e segredo da identidade.
Quando a memória não está mais em todo lugar, ela não estaria em lugar nenhum
se uma consciência individual, numa decisão solitária, não decidisse dela se
encarregar (Nora, 1984, p.18).
Nas
circunstâncias em que o modelo ou a concepção da história-memória são
substituídos pela História, o ofício do historiador se modifica:
Seu papel era simples
antigamente e seu lugar inscrito na sociedade: se fazer a palavra do passado e
barqueiro do futuro. Nesse sentido, sua pessoa contava menos do que seu
serviço: cabia-lhe ser apenas uma transparência erudita, um vínculo de
transmissão, um traço de união o mais leve possível entre a materialidade bruta
da documentação e a inscrição da memória. Em última instância, uma ausência
obsessiva de objetividade. Da explosão da história-memória emerge um novo
personagem, pronto a confessar, diferentemente de seus predecessores, a ligação
estreita, intima e pessoal que ele mantem com seu sujeito. Ou melhor, a
proclamá-lo a aprofundá-lo e a fazer, não o obstáculo, mas a alavanca de sua
compreensão. Porque esse sujeito deve tudo a subjetividade: sua criação, sua
recriação. É ele o instrumento do metabolismo, que dá sentido e vida a quem, em
si e sem ele, não teria nem sentido nem vida (Nora,
1984, p. 20-21).
A
historiografia (história da História), que indica exatamente o distanciamento e
a aniquilação da história-memória pela história, termina por destruir a
identidade entre uma e outra, e em lugar do homem-memória surgem lugares de
memória. Existe a memória, mas a história memória deixa de existir. Assim pensa
Nora.
Nora,
portanto, entende que a anterior história-memória foi destruída por fatores
presentes na sociedade e pelo desenvolvimento da própria disciplina história, à
medida que a própria memória dita verdadeira (gestos, hábitos, prática e
transmissão de ofícios) subsiste, mas a memória coletiva se atomiza nos
indivíduos e apenas nesses se revitaliza. Mas essa memória não pode ser
entendida como história, e se encontra superada a história-memória. Agora, não
é a relação Estado-nação, que cobra fidelidade, combate, etc., e que
pressupunha um tipo de história como sua memória, que prevalece. Trata-se hoje
de a predominância da relação Estado-sociedade a exigir o estudo deliberado com
vistas ao futuro. Não se trata de presentificar o passado, estabelecendo sua
continuidade com o presente. O historiador não é um agente do Estado-nação com
os combates deste, mas um cientista dentro da sociedade, no momento em que a
relação, nas novas configurações do Estado democrático, é aquela expressa no
binômio Estado-Sociedade, substitutiva de Estado-nação.
Autores
da Terceira Geração dos Anais, Le Goff e Nora, como visto, têm posições
diferentes, mesmo um método de abordar o tema que apresenta distanciamento,
Um
deles, Le Goff, faz a história conviver com a memória coletiva e historia a
memória; o outro, Nora, decreta (impiedosamente?) o fim da memória, sepultada
pelo avanço da história e materializada de diversas formas nos lugares de
memória.
Ambos se
distanciam das gerações anteriores dos Anais, mas há tênue semelhança, quanto
ao papel do historiador, com algumas assertivas de Bloch, no escrito de Nora.
Nora
avança com o seu conceito de lugares da memória e quando os classifica por seus
aspectos - material, simbólico e funcional, em sua coexistência, e acentua que
o que os constitui é um jogo de memória e história, uma interação dos dois
fatores que conduz à sobredeterminação recíproca. Entende que a memória é sempre viva, sustentada pelos
grupos que vivem, sujeita à lembrança e ao esquecimento, é sempre atual,
encontra-se enraizada no concreto, no lugar, no gesto, em imagens e objetos, e
é absoluta, mas a história repõe aquilo que não mais existe; representa o
passado, que recupera, com analise e critica; é universalizante, vincula-se a
continuidades temporais, às evoluções, às relações entre as coisas e nega, com
o relativo, o absoluto da memória.
3.3.5. A História oral e a
memória
A memória apresenta momento de vitória com o boom da História Oral, tendência que se
vincula a mais de uma diretriz. A história oral serve ao nacionalismo, ou
pretende alimentar a “história vinda de baixo”. Ora quer preencher lacunas
diante da ausência de outras fontes, ora declara-se preservacionista dos dados
do passado.
Precisamente,
é com a História Oral que a memória é recepcionada, com pretensão de
definitividade, pela História, ingenuamente ou não. O movimento que leva a esse
estágio tem seus condicionamentos econômicos, políticos e culturais evidentes.
A ideologia o permeia amplamente.
É
interessante notar que, quanto à diferença entre memória e história, Pierre
Nora reitera Maurice Halbwachs e, no entanto, o segundo vincula-se à tradição
do realismo sociológico que não é a diretriz do primeiro; o sociólogo
durkheimiano retrata a memória como fato social e a entende transmissível entre
gerações e, por isso, não a dissolveria entre lugares. Estes certamente sempre
existiram, mas como locus de suporte
de exteriorização da memória, ou melhor, da memória imobilizada, enquanto que a
memória coletiva é animada. Estabelecer a separação entre história e memória
coletiva significa reconhecer a existência desta e daquela.
Embora
a rigor não exista propriamente História oral, pois a História é una e única, deve-se
entender por aquela denominação a utilização de depoimentos orais, procedimento que foi facilitado com a
tecnologia da gravação de som. No entanto, a denominação História oral
encontra-se já incorporada no uso dos historiadores.
O
fato de a história, elaborada como memória de um povo ou de um grupo, ser
descredenciada pela comunidade científica não significa a inexistência de um
lembrar junto, isto é, coletivamente, em outras palavras – memórias
compartilhadas. O fim do modelo de história-memória e o reconhecimento dessa em
lugares é algo diferente de memória compartilhada por muitos com a sua
respectiva transmissibilidade.
A História oral é diretriz que concebe
a memória na História, mas essa igualmente naquela.
Não deixa de ser historiograficamente
irônico o fato de Entre Memória e
História – A problemática dos lugares (1984) de Nora, haver sido publicado
no momento de expansão da “História Oral”, com todas as justificativas dessa
quanto à realidade das lembranças pessoais para construção da história social.
Em 1978 é publicada a obra clássica de Paul Thompson, reditada em 1988 e
traduzida para diversos idiomas (entre 1992 e 2000 houve, no Brasil, três
edições da obra). Também J. Vansina, um dos mais proeminentes teóricos da
História Oral já estava em atividade: Oral
Tradition: a study in historical methodology é de 1965, seu artigo Once Upon a time: Oral Traditions as History
é de 1971 e sua Oral Traditions as
History data de 1985 (PRINS, 1992). Independentemente de expressões
teóricas como as de Paul Thompson, Jan Vansina e Gwyn Prins, o movimento de
História Oral já vinha se expandindo. No final dos anos 60 do século passado,
os Estados Unidos presenciaram um grande movimento em torno da História Oral:
em 1978 foi criada a Oral History Association,
que anualmente passou a publicar a Oral
History Review, e universidades adotaram programas de História Oral. Em
várias partes do mundo atividades e instituições passaram a cuidar das lembranças
(memórias) como fontes legitimas da história, inclusive no Brasil (Museu da
Imagem e do Som, Museu do Arquivo Histórico da Universidade Estadual de
Londrina, Universidade Federal de Santa Catarina, e o setor de História Oral do
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea da Fundação Getúlio
Vargas). Boa resenha da expansão da História Oral no mundo pode ser vista no
“Prefácio à Edição Brasileira” que Sônia Maria de Freitas redigiu para o livro
de Thompsom, mas, sobretudo no capítulo 2 de A Voz do Passado – História Oral, do próprio Thompson (2002).
Todo o movimento da História Oral
redundou em obras. Isso significa que a fonte oral, que ocupa posição inferior
na hierarquia de fontes no modelo rankeano, estava em ampla expansão quando
Nora escreveu o mencionado artigo que tanto impacto causou (e ainda causa).
Veja: História oral em suas vertentes – ou por que faltam outras fontes e
deve-se servir da oralidade (memória retentiva e evocação), ou por que se deve
dar voz aos de baixo.
Se se entender que o movimento da
História Oral justifica a memória animada e seu uso para o oficio do
historiador, utilizando e comparando reminiscências (dentre outros
procedimentos), Nora não é amparo tão seguro para os que querem decretar o fim
da História-memória. A velha história já vinha há muito tempo sendo abandonada,
mas isso não significa (como demostra a História Oral) o seccionamento entre a
memória animada e a história, pois vertente da história social reencontra a
memória, tal é a difícil dialética do sepultamento.
Concede-se que a utilização da fonte
não se confunde com a disciplina que a utiliza. Mas, é necessário reafirmar que
a fonte é memória, e longe de poder-se afirmar que todos os esforços de
construção de lugares de memória significa que essa estaria morrendo, embora
tendo força para resistir ainda, historiograficamente o movimento intelectual
estava dando-se, diferentemente daquilo que Nora afirmava, sob seus olhos. Os
historiadores pediam que pessoas e grupos lembrassem e a essas lembranças era
dado tratamento metódico e sistemático, evitando-se a simples narrativa e
verificando-se o impacto das mudanças na consciência dos depoentes.
A História Oral não significa a
acriticidade ou a mera reconstrução de acontecimentos a partir de entrevistas.
A tradição é posta em questão, podendo ser confirmada ou não, e analisados
móveis de sua invenção.
No entanto, a partir de fontes orais,
retoma-se o reencontro entre história e memória. Gwyn Prins (1992, p. 195)
esclarece que:
[...] a reminiscência
pessoal permite ao historiador fazer duas coisas. Primeiro, obviamente, ser um
historiador no sentido amplo: um historiador que pode extrair matérias de
depoentes adequadas para estudar toda a variação de escalas e problemas na
história contemporânea. Nenhum historiador da alta política moderna, tendo base
nos registros públicos pode esperar ser lido com confiança, se as fontes orais
(e, pode-se acrescentar as fontes fotográficas e de filme) não tiveram sido
empregadas, de algum modo mais do que poderia esperar um historiador social dos
ciganos. Como declara Vansina, os dados orais servem para confirmar outras
fontes, assim como as outras fontes servem para confirmá-los. Eles também podem
proporcionar detalhes insignificantes que de outra forma são inacessíveis e,
por isso, estimular o historiador a realizar outros dados da memoria.
Não se trata de confundir a extensiva
utilização da reminiscência com a própria História, mas não se pode desconhecer
que o forte uso das reminiscências introduz uma orientação para os
historiadores (inclusive a chamada História vinda de Baixo) em que, apesar de
reelaboração imposta pelo ofício, a História aparece junto à memória, como a
demonstrar que a imbricação entre ambas exige esforço crítico capaz de elucidar
relações tão complexas.
Castanho
(2009, p. 12), que insiste na distinção entre memória e história (a cujo
pensamento sobre o tema este texto em parte retoma), reconhece a “profunda
imbricação, e diria indissociabilidade, que os dois temas possuem notadamente
quando observados do ponto de vista mais organizativo que é o da história”.
Não
se pode olvidar que as diversas tendências historiográficas tendem a tratar o
tema, como foi visto, de forma diferente. Isso torna mais urgente delimitar
objetos dos campos do saber: memória e História, ou da substância de ambos.
3.3.6. Materialismo
histórico e memória.
É possível uma abordagem da memória a
partir do materialismo histórico? Embora Marx e Engels não tenham tratado
diretamente da memória, é possível, a partir de seus escritos, formular pensamento sobre aquela, ou oferecer contribuição
para seu entendimento.
Eric Hobsbawm tratou de um dos aspectos da
memória sob viés marxista, em introdução e capítulo de obra coletiva (HobsbawM e Ranger, 2008). Trata-se de tradições inventadas. Hobsbawm (2008, p. 9) diz o que se entende por tradição
inventada.
Por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas,
normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas de
natureza ritual ou simbólica visam inculcar certos valores e normas de
comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma
continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se
estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado. Exemplo notável é
a escolha deliberada, de um estilo gótico quando da reconstrução da sede do
Parlamento britânico no século XIX, assim como a decisão igualmente deliberada,
após a II guerra, de reconstituir o prédio da Câmara partindo exatamente do
mesmo plano básico anterior.
O referido autor esclarece
que a “invenção das tradições é
essencialmente um processo de formalização e ritualização, caracterizado por
referir-se ao passado” (p.12). Muitas vezes a tradição, que se refere a um
passado muito antigo, com aparência de algo cuja origem é tão remota que é
difícil de imaginar quando surgiu, possui, em verdade, pouco tempo como é o
caso citado por aquele historiador da “pompa que cerca a realeza britânica em
quaisquer cerimônias públicas de que participe” (p.9), que tem aparência de
algo imemorial, mas que é obra dos séculos XIX e XX.
O autor filia a invenção
das tradições, mais frequentemente, ao surgimento de transformações rápidas na
sociedade. É que essa transformação as exige tendo em vista que faz-se
acompanhar da corrosão de padrões sociais, que condena velhas tradições, e seus
agentes não conseguem adaptar essas antigas tradições à nova realidade. Diante
de transformações “suficientemente amplas e rápidas” inventam-se tradições,
modelando-as de tal maneira que aparecem como vinculadas a um passado distante.
Para isso, são utilizados elementos antigos que estavam presentes no passado da
sociedade, tais como símbolos, rituais, princípios morais, etc. Mas as novas
tradições podem descartar elementos antigos e criarem novos, e embora não
tenham antecedentes, colocam-se na perspectiva de que dão continuidade ao
passado.
A invenção das tradições acontece,
sobretudo, no seio de setores tradicionais da sociedade, porém pode ocorrer fora
desses ou apesar desses, como é o caso do 1º de maio, celebrado anualmente
pelos trabalhadores, em várias partes do mundo.
Hobsbawm classifica as
tradições inventadas surgidas após a Revolução Industrial em categorias, ipsis litteris:
Elas parecem classificar-se em três categorias superpostas: a) aquelas que estabelecem ou
simbolizam a coesão social ou as condições de admissão de um grupo ou de
comunidades reais ou artificiais; b) aquelas
que estabelecem ou legitimam instituições, status ou relações de autoridade, e c) aquelas cujo propósito principal é a
socialização, a inculcação de ideias, sistemas de valores e padrões de
comportamento. Embora as tradições dos tipos b) e c) tenham sido certamente
inventadas (como as que simbolizam a submissão à autoridade na Índia
Britânica), pode-se partir do pressuposto de que o tipo a) é que prevaleceu,
sendo as outras funções tomadas como implícitas ou derivadas de um sentido de
identificação com uma “comunidade” e/ou as instituições que a representam,
expressam ou simbolizam, tais como a “nação” (Hobsbawm,
2008, p.17).
As tradições inventadas
servem a finalidades de manipulação ou são manipuláveis, especialmente quando
“exploram práticas claramente oriundas de uma necessidade sentida – não
necessariamente compreendida de todo – por determinados grupos” (Hobsbawm, 2008, p. 315).
As tradições inventadas vivem da memória que
estabelecem na sua invenção e a partir daí, e pretendem, com vínculo que
afirmam ter com o passado, preservar a memória desse. Hobsbawm insere a
invenção das tradições em contexto de mudança social, luta política, conflitos
sociais e percebe o caráter ideológico das tradições inventadas.
Há
bases para a compreensão da memória sob ótica do marxismo:
Algumas contribuições de Marx e Engels são
adequadas para a compreensão da memória, especialmente da memória compartilhada
(coletiva), apesar de o tema não estar expressamente presente na vasta obra de
ambos.
Com efeito, da síntese com que Marx e Engels
(2007) caracterizam a história pode-se incluir a memória. Os autores concebem a
história como o suceder de gerações. As gerações exploram materiais, capitais e
forças de produção, transmitindo-as para as subsequentes, as quais continuam a
atividade das anteriores em novas condições. Isso significa que uma geração
continua a atividade anterior, porém de forma diferente daquela como ocorria
antes. Nova atividade se estabelece, modificando as antigas condições.
Ora esse suceder de gerações explorando
materiais, capitais e forças de produção, pressupõe memória, pois há sempre
junto com isso, a memorização de práticas, processos, uso e combinação de
materiais e das condições em que isso ocorre ou ocorreu, definindo-se, por
outro lado, que atividades novas (a partir das anteriores) podem ser
estabelecidas e quais as condições para a sua transmissão subsequente.
Considerando-se que a
dialética que opõe desenvolvimento das forças produtivas às relações de
produção é um dos núcleos do pensamento de Marx, não se pode pensar no
desenvolvimento dessas forças sem a memória que transmite o saber
correspondente às mesmas.
Pode-se encontrar aí o
papel da memória, acompanhando o suceder de gerações, e a transmissão sempre do
saber e formas de exploração.
Essa possibilidade de entender a memória a
partir da caracterização que Marx e Engels fazem da história como suceder de
gerações (fato que não impede rompimentos revolucionários), é dado fundamental,
pois importa em dizer que as gerações vinculam-se a uma base produtiva que
necessita de memória.
A noção marxista de ideologia apresenta-se igualmente como contributo
para a compreensão da memória. Não faltam autores que indicam o caráter
ideológico da memória coletiva, fazendo-o com inspiração (declarada, ou não) em
Marx.
A ideologia é componente que só um
saber exigente pode espancar. Marx e Engels a entendem como representação falsa
que os homens têm de si e da realidade, num momento, mas também uma
representação que a consciência faz dessa realidade para desenvolver a práxis
humana. A memória não é infensa a essa problemática da ideologia. Ao contrário
disso, abraça-a fortemente. Ao entender a realidade de forma falsa, a memória
também será marcada pela falsificação. Veja-se igualmente que há interesse em criar memória para manipulação como
ocorre na invenção das tradições.
Outro
aspecto relevante é a vinculação (“entrelaçamento”) feita entre consciência,
falsa consciência, e realidade, e a dependência daquela a essa, na fórmula que
recebeu daqueles autores a síntese: “Não é a consciência que determina a vida,
mas a vida que determina a consciência” (Marx
e Engels, 2007, p.94). Também a memória segue essa asserção. Lembre-se,
como dito anteriormente, que Bloch filiou a maior ou menor memorização às
épocas, afirmando mesmo que há aquelas que apresentam maiores níveis de
possibilidade e de expansão da memória.
Ademais,
para aqueles pensadores, “A produção de ideias e representações, da
consciência, está, em princípio, imediatamente entrelaçada com a atividade
material e com o intercambio material dos homens com a linguagem da vida real”.
(Marx e Engels, 2007, p. 93). Não
há como pensar em idéias e representações sem memória fundada nas mesmas bases
dessas: a atividade material.
Ainda
dentro da obra supracitada, há que considerar a preponderância das idéias da
classe dominante: “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias
dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é,
ao mesmo tempo, sua força ‘espiritual’ dominante (Marx, E ENGELS, 2007, p.47)”.
A
memória não é apenas memória de imagens, sensações, ditos, escritos etc.
Normalmente vem acompanhada de ideias, ângulo de visão sobre as coisas,
opiniões, etc. Um temporal pode vir acompanhado da lembrança do castigo de
Deus, punidor dos homens, que destruiu bens da vida, ou em razão de condições
atmosféricas específicas.
De grande
operacionalidade para a compreensão da memória é o entendimento de Marx quanto
à alienação, tratada de forma diferente daquela dada por Hegel, e quanto à
reificação. Há memória reificada, há memória alienada. O fato de homens estarem
sob condição dominada, tendo de vender sua força de trabalho, sem o controle de
seus próprios meios de subsistência, faz emergir a memória de homens sob
situação alienante. Sua experiência fundamental é a do trabalho que se objetiva
para outrem, que controla seu horário, seu modo de vestir, sua ração, etc., e
essa experiência limita ou aliena a sua memória, até que emerja a consciência
de classe para si.
Também a
reificação opera efeitos sobre a memória: o entender relações entre pessoas
como relações entre coisas impacta a memória. Na burocracia, por exemplo,
pessoas que são tratadas como peças de u’a máquina (“peça indispensável”, “peça
certa”, “peça adequada”, etc.), a memória, em muitos casos, especialmente
aquela autobiográfica, será a de componente de uma estrutura que funciona como
modelo de máquina. A pessoa lembra-se de como era peça
decisiva, no retrospecto autobiográfico, e não como homem, esse “conjunto de
relações sociais” (Marx, 2006).
Nas ditaduras, sobretudo, a reificação tem espaço alargado: homens e
mulheres, tratados sem observância do conjunto de seus atributos, mas sentidos
pelos ditadores como inimigos internos, as pessoas lembram-se do terror do
Estado que ocupa grande parte de suas lembranças. Para os que resistem, a
memória reificada será menor, porque a resistência supõe tomada de posição
contra o status quo. Mas há os passivos e os colaboradores, com sua memória
reificada, instrumentos para ser acionados, insumos para a tortura e a morte.
Essas
antecipações não devem esquecer que a concepção que Marx e Engels têm da
história serve para demarcação de campos entre essa e a memória. É que a
história o é como condição de ser feita por homens concretos em situações
dadas, com suas relações de produção, e forças produtivas que são modificadas
(pelos próprios homens), e seu avanço é o avanço dessas e de seu entrelaçamento
com as relações de produção, as quais serão alteradas aquando não puderem mais
corresponder aos meios de produção. A memória aparecerá neste contexto, como
dependente da materialidade do processo histórico, e ao mesmo tempo será
componente desse processo tal como percebido pelos historiadores, a História –
saber cientificamente elaborado.
O processo
histórico desenvolvido a partir do crescimento de forças produtivas e das
relações que os homens travam entre si e com a natureza, os conflitos e lutas
de classe, as crises, podem ser lembradas, mas podem ser apreendidas pela
consciência e escrita como História.
Sérgio
Castanho (2009, 12) evidencia a possibilidade de apreensão da memória a partir
de um tratamento materialista. Em passagem já citada, tomando o sentido mais
corrente e mais estabelecido de memória, considera-a o principal nutriente da
história, e acentua sua substantividade, “tanto do ponto de vista do objeto
quanto do sujeito” (página 11). Importa notar que esse autor contrapõe o
caráter mais substantivo da memória ao sentido mais adjetivo da história,
esclarecendo que o termo adjetivo, como o emprega, quer significar que o
material utilizado pelo historiador e o conhecimento “organizado e sistemático”
de fatos e processos, “implicam uma seleção, uma atribuição de qualidade, o que
é próprio do adjetivo”. Mas, essa seleção não é apenas aquela feita pelo
historiador, porque se reveste igualmente de escolha da própria sociedade: “A
seleção começa pelos fatos que a sociedade considera “dignos de memória” [...]
e se completa pela nova organização que lhe faz o historiador” (p.12).
Ora, isso
importa em dizer que há uma seleção difusa, feita pela sociedade, e um
tratamento organizado e centrado no historiador. Mas com isso, Castanho não
deixa de acentuar que a distinção entre história e memória (que ele faz) não
conduz à conclusão de que ambas não estejam imbricadas, possuídas pela
indissociabilidade que as solda.
É de ser
ressaltada a compreensão do autor quanto a u’a memória situada historicamente e
aí desenvolvida, e uma história que se aperfeiçoa:
A memória,
desenvolvida durante a longa história da sociedade humana, mediante o
aperfeiçoamento dos processos e procedimentos mnemônicos e mnemotécnicos, é bem
mais confiável e objetiva de que se poderia supor. E a história, tendo
progredido teórica e metodologicamente, de forma epistemológica, e não
ontológica, apresenta-se hoje como uma ciência da qual é justo esperar
resultados bem mais significativos para o indivíduo e sociedade que o
historicismo relativista faria crer. Mas isso não significa que não haja os
lapsos da memória – individual ou coletiva – nem que a memória deixe de se
ajustar aos contingenciamentos de existência individual e grupal, que levam às
amnésias parciais ou totais, em que os mecanismos do poder não são nem um pouco
negligenciáveis (CASTANHO, 2009: 13).
A
existência social, onde vige a luta de interesses contraditórios, molda fatos
históricos, assim recepcionados pela memória social. O positivismo, no entanto,
não leva em conta essa realidade diversa e conflitual.
Castanho anota ainda,
citando Viñao Frago, o caráter seletivo da memória, do esquecimento e da
aprendizagem, e o papel fundamental, porque organizador da memória, para
estruturar o tempo, entendido este socialmente como rede de relações.
Em
perspectiva materialista e desnudante, aquele autor entende (e constata) que a
sociedade se lembra, mas também esquece, e que geralmente a voz que nos chega
do passado, como memória social, é aquela da classe dominante. Em mais de um
passo de seu texto, Sérgio Castanho detecta a memória coletiva em sua função de
instrumento do poder e não se esquece de relacioná-la, a partir de critério de
identidade, com a memória individual.
A leitura
do texto, dentro de seu propósito, que alcança ainda considerações sobre o
presente e o futuro, é indicativa de que o
approach marxista serve à elucidação desse campo complexo que é a memória.
No
entanto, e não era seguramente objetivo do autor ir além dos marcos que ele
delineou com segurança, em seu artigo, outras considerações podem (e devem) ser
feitas a partir do materialismo.
Certas questões tratadas
por Marx e pelo materialismo histórico podem ser chamadas à colação quanto ao
tema, como a alienação, por exemplo.
É de ressaltar que, apesar
das diferentes tradições da escrita da História, todos os historiadores
utilizam-se da memória, que se encontra objetivada, ou que, como na oralidade,
após gravada recebe um suporte.
4. AS BASES MATERIAIS DA MEMÓRIA SOCIAL OU
COMPARTILHADA.
4.1. Memória, trabalho e modo de produção.
Os
Homens tiveram de memorizar a melhor (ou a possível) maneira de caçar, pescar, modificar
e conservar alimentos, abrigar-se, plantar, colher, ver o tempo propício ao
plantio e escolher a terra adequada, etc.
A
memória ao mesmo tempo em que era (é) memória aprendizagem, era (é)
aprendizagem memória: aprender e lembrar, lembrar o aprendido ou o que foi
experimentado, inclusive o erro. Mas sobretudo lembrar-aprender, aprender-lembrar
no processo necessário à sobrevivência. E isso significa dizer igualmente
trabalhar.
Não
se pode conceber a memória sem o trabalho. E sem as mãos, por consequência. E
essa memória é, assim, memória daquilo de que as mãos são capazes de fazer (ou
de virem fazer), especialmente quando a postura ereta do hominídeo se impôs.
Mas
se trata igualmente da memória dos pés.
O
aprendizado é deambulatório: é necessário ir atrás da casa, do lugar, do abrigo
provisório, etc. É necessário lembrar-se do lugar, do ir e do vir. E, quando a
consciência vai-se formando e desenvolvendo-se, cuidam os homens de ampliar as
mãos e de aprender lembrar de como ampliá-la com seus artefatos e, no correr
dos séculos, com instrumentos cada vez mais sofisticados: trata-se de
potencializar as virtudes das mãos para sobreviver.
Foi
dito em capítulo anterior que o trabalho foi indispensável à criação da
consciência. Inicialmente, trabalho-labor, advirta-se. Não se pode conceber, na
evolução do homem, a memória sem o trabalho. E sem as mãos, por consequência.
Aprender e lembrar, lembrar e aprender: o fazer antecedente ao lembrar, ou o
lembrar para fazer- são binômios que se encontram no cerne da formação da
consciência.
É
complexo o processo que vincula o trabalho à memória (ou vice-versa) e aos
instrumentos com que se trabalha.
A
memória de uma técnica ou de artefatos, antes tão disseminada, pode deixar de
existir para muitos e ficar adstrita a um grupo de pessoas – artesãos ou
lavradores, por exemplo. Para quem deseja utilizar-se da técnica ou dos
artefatos há o caminho do treino, da transmissão de conhecimento, ensino ou aprendizagem.
Envolvido
no trabalho pela sobrevivência, o gênero humano ambienta-se, agrupa-se de
várias maneiras, aprende, memoriza e evoca suas experiências. Esse dado
fundamental expresso no binômio aprender-lembrar (ou lembrar-aprender, depende
do momento) encontra-se no cerne da consciência, fundamental para sua lenta
formação.
Apesar
da complexidade do dado fundamental de aprender-lembrar, articulado á
imaginação, pode-se obter a síntese nas palavras de neurocientista
contemporâneo:
A capacidade de manobrar o complexo mundo à nossa volta depende
dessa faculdade de aprender e evocar- reconhecemos pessoas e lugares só porque fazemos registros de sua aparência.
e trazemos parte desses registros de volta no momento certo. Nossa faculdade de
imaginar possíveis eventos também depende de aprendizagem e evocação e é o alicerce que nos permite raciocinar e
planejar para o futuro e, de modo mais geral, criar soluções inovadoras para um
problema. (DAMÁSIO, 2011: 168).
Dizer
que mãos, pés, artefatos, movimento, luta pela sobrevivência, etc, criaram
consciência e que o fato de aprender, guardar (registrar) e evocar são ínsitas
nessa importa igualmente em afirmar que, formada a consciência, a faculdade da
memória ganha grande espaço de autonomia, permitindo aos que não laboram
(crianças, por exemplo) lembrem, tenham memória retentiva e memória evocativa.
Mas
a autonomia conquistada não excluiu o fato de o trabalho, o lugar, artefatos,
técnicas, etc, serem alguns dos condicionantes da memória em seu duplo aspecto
de registrar e evocar, especialmente quando se trata de memória compartilhada
por toda a sociedade ou por parte dessa.
A
memória tem sua vigência adstrita a condições sócio–materiais, ou a
instituições que a reproduzem. A vinculação da memória ao processo de produzir
especialmente, e ao modo de produção como um todo, quanto ao seu
compartilhamento entre os membros da sociedade, sua permanência (vigência) e
seu esvaimento não se dão como na fórmula – dado que é A será B. Muitos fatores
encontram-se em jogo dentro da moldura do vasto quadro que é a formação
econômico-social: a persistência de processos antigos em novo modo de produção,
a existência de classes sociais e seus interesses (inclusive interesses
ideológicos ou simbólicos), conflitos, formas de compartilhamento dos frutos da
produção, luta pelo poder, etc. Assim, dado
que é A, será B a depender de múltiplas circunstâncias.
O modo de produção cria a memória
compartilhada e a destrói. Não se precisa lembrar de algo que já não mais serve
na luta pela sobrevivência. Essa afirmativa se apenas referir-se ao modo de
produção pelos seus aspectos mais dominantes pode não ser precisa: ao lado de
novas técnicas de construção civil, com seus novos materiais, na zona rural e
na periferia de cidades, ainda se preserva e se compartilha: a memória de como
fazer a armação rustica de madeira, entrecruzar varas e, entre essas e esteios,
colar a argila bem amassada. É a casa de barro batido, ou de sopapo, por
exemplo. Pode ser a casa pouco mais evoluída com esteios e vigas de madeira
rusticamente preparados e paredes de adobes de argila crus. Mas que
mestre-de-obras novo terá necessidade dessa memória de edificações e de pessoas
que a compartilhem? Seu saber seguirá a lógica da produção atual. Não precisa
da memória dos velhos pedreiros, ou artífices, que viveram em alguns espaços
rurais ou na periferia das cidades. A indústria da nova construção civil impõe
nova memória compartilhada de conhecimentos e de hábitos (repetição de
procedimentos, de movimentos, de manejo de instrumentos, às vezes mecânica, ou
quase mecânica).
Não
há um condicionamento estrito: dentro do contexto mais amplo, há
condicionamentos variados pelo fato de que o crescimento não se faz por igual na
formação econômico-social. Os ritmos da mudança são diferenciados. Percebem-se
as mudanças, e mesmo se sabe que essas não seguem padrões de mudanças
anteriores, mas há ainda memórias cuja conservação é necessária e, por isso,
convivem com a desnecessidade de outras. Dito de outro modo, a memória
compartilhada de uma técnica ou de artefatos antes tão disseminada pode deixar
de existir para muitos e ficar restrita a grupos de artesãos, lavradores ou
criadores. Para quem estiver fora do grupo e desejar tardiamente utilizá-la há
o caminho do treino, da transmissão de conhecimento e aprendizagem. Nesse caso,
na sociedade dividida, a memória, transformada em saber, ou em saber fazer, não
é memória de todos. A sociedade de classes tem memória divida e conflitiva e
mesmo na sociedade estamental ha vivências diversas do mesmo, expressando
memórias diferenciadas.
A
par da memória já imediatamente desnecessária por força de inovações e que
tende por isso a desvanecer e mesmo ser substituída pelo esquecimento (porque
já não é operacional dentro do modo de produção e por isso deixa de ser viva)
surge outra. Mas contraditoriamente a memória anterior já imediatamente
desnecessária sobreviveu de outra forma: como saber do passado, em diversas
formas de conservação e de expressão. Interessa agora à História, não ao modo
de produção (exceto em aspectos restritos), e à memória institucionalizada de
um estado nação, por exemplo.
Assim,
apesar do caráter destrutivo que as mudanças sociais exercem sobre a memória
compartilhada, essas mesmas mudanças cuidam de preservá-la para outras
necessidades. A história-memória é uma dessas.
Não se trata, no entanto, apenas de questões
técnicas, pois quando se fala de modo de produção, processos de produção, etc,
não se pode olvidar que isso pressupõe um conjunto de concretizações. Para
isso, os homens travam relações, se organizam ou são compulsoriamente
organizados.
Tome-se
o exemplo de uma sociedade camponesa tradicional. Nessa, a família é grupo de
produção. A inserção de seus membros na prática de produzir se faz cedo. Sob o
aspecto do custo, isso significa dizer que se trata de mão-de-obra sem grande
dispêndio e mais solidária, porque os filhos que desde cedo laboram, inseridos
na família, são igualmente responsáveis por sua subsistência e dos outros, o
mesmo ocorrendo com pais e parentes próximos.
Ao
mesmo tempo, porque o custo de ter filhos não é grande (ainda criança o filho
trabalha), pode o casal que nucleia a família ter mais filhos, que serão
responsáveis pelo amparo dos pais na velhice, como ocorre nas sociedades
tradicionais com suas famílias camponesas. A casa da família tradicional (grupo
de produção) é efetivamente local de morada, não é lugar de mero encontro (como
ocorre nas sociedades em que a família é formada apenas por consumidores). É
família extensa, que trabalha com o conjunto de seus membros, mais estável que
a família moderna, com experiências mais fortemente compartilhadas.
Naquele tipo de sociedade tradicional a
memória individual é muito aproximada da memória do grupo: é que, no caso, a
experiência é comum a todos, restando o resíduo daquilo que é eminentemente
pessoal – individual.
Várias
famílias, nas comunidades camponesas tradicionais, trocam experiências, fazem
empréstimo de ferramentas ou de utensílios, casam os filhos entre si,
compartilham saber fazer, ajudam-se (fazem mutirões, adjutórios), etc. Nessa situação há condições
propícias à maior memorização: grupo maior tem condições de guardar a memória e
transmiti-la. Embora bem integrada, é memória restrita.
Nora assinala que a comunidade rural “é
coletividade-memória por excelência.” (NORA, 1993: 7).
Numa
contraposição entre a família tradicional referida e a família conjugal
moderna, em que esse grupo é primordialmente de consumo, observa-se que a
segunda é pequena, o filho custa caro, a casa é local de encontro, cada um
busca fora do grupo a sua subsistência, etc. Nesse caso, as condições de
preservação da memória compartilhada são diferenciadas. Seus membros
compartilham, é verdade, de experiências comuns, porém a memória que vagueia
por toda a sociedade lhes atinge mais: memória das ocorrências e dos eventos
que direta ou indiretamente chega ao grupo, ou que esse experimenta.
A
memória é atributo ativo da consciência, por isso ela própria pressupõe o
desenvolvimento de capacidades. Aristóteles (1980) sentiu a necessidade de
distinguir entre memória e intelecto; é que, tendo estabelecido que havia
memória retentiva (o registro) e memória evocativa, além de deixar esclarecida
a diferença entre a coisa representada e o caráter da representação, o Estagirita
disse que a intelecção não pode ser subsumida em memórias. Entender,
raciocinar, exigiria mais que memória. Sim, mas sem memória não se pode falar
em intelecto.
Em
razão do caráter ativo da memória, e mesmo de seus enganos, a relação entre ela
e a formação social onde ocorre não é linear. Há condicionantes diversos e
diversas formas de reter informações e de evocá-las, trata-se da
preconceituação da memória:
Nossas memórias são preconceituadas, no sentido estrito do
termo, pela nossa história e crenças prévias. A memória perfeitamente fiel é um
mito, aplicável tão somente a objetos triviais. A idéia de que o cérebro retém
alguma coisa parecida com uma “memoria do objeto” isolada parece insustentável.
O cérebro retém uma memória do que ocorreu durante uma interação, e essa
interação inclui fundamentalmente, nosso passado, e até muitas vezes, o passado
de nossa espécie biológica e de nossa cultura. (DAMÁSIO, 2011: 169, 170).
Pode-se
concluir que existe u’a materialidade responsável pela formação e preservação
da memória compartilhada até quando essa for necessária para o funcionamento/
reprodução do modo de produção, em extensão e duração variáveis. Mas igualmente
pode-se concluir que a memória ali formada e compartilhada “é o alicerce que
nos permite raciocinar e, de modo mais geral, criar soluções inovadoras para um
problema”, como diz Damásio (2011: 168). Não se sabe mais manejar a Jenny (maquina de fiar algodão cuja
concepção é de James Hargreaves), nem
esta precisa mais de quem a maneje. Sequer ela existe mais, exceto em museus.
Mas uma história da sociedade a repõe na memória por meio de seus livros, suas escolas,
museus, etc.
A memória, tal como o saber técnico
transmissível, sobrevive enquanto for necessária à reprodução do modo de
produção. Ai estão as técnicas, expertise,
modelos de organização da força de trabalho e formas específicas de reprimi-la,
adestramento das mãos, etc. Como fabricar u’a
máquina a partir do conhecimento de que se pode dar efeito duplo ao
vapor era problema posto nos séculos XVIII e XIX, mas esse problema já não se
põe no momento em que a energia elétrica já é a força motriz. A memória
envolvida na construção de máquina a vapor, seu acionamento, uso e reparos,
esvaiu-se enquanto memória viva, agora é memória imobilizada em escritos,
desenhos, etc., cujo conhecimento é exigido dos estudantes e professores.
Necessária para cada pessoa na sua inserção na
realidade social, quanto ao aspecto de sua sobrevivência, a memória é
compartilhada para que o próprio grupo social sobreviva.
4.2. Memória e transformação social
Insistiu-se em objetos, técnicas, máquinas,
ferramentas, mas o dado que a elas se refere quanto à memoria pressupõe
igualmente produção (para isso elas existem), mas os homens quando produzem
mantém relações entre si, subordinadas ou não. Essas relações e seu contexto –
inclusive modos e estilos de vida – moldam a memória. Não é, por exemplo apenas
memória da máquina e de como acioná-la que o operário lembra, lembra sim da sua
sobrevivência, do cotidiano quase uniforme, dos controles sobre sua pessoa e
sua classe, das dificuldades das greves, do desemprego junto a outros tantos
desempregados, dentre outras coisas, e da mudança. Lista incompleta certamente,
porque ele se reproduz e vive diante e/ou participando de múltiplas
experiências. Não se trata apenas da memória áspera da máquina que engole
Carlitos, mas da vida levada (até mesmo às situações limites, ao extremo e ao
salto no escuro).
Memória
da mudança, dentre outras acima ditas: a consciência do passado e do movimento.
Ai se localiza o cerne da relação história-memória. Os oleiros que sucumbem com
suas memórias; arreieiros e seleiros que desaparecem; ferreiros que são
substituídos por empresas; marmoristas autônomos que envultam diante das
máquinas, etc. Grupos enfim que deixam de existir e cujas memórias espatifam-se.
Vivem de início em pequenas ilhas na sociedade. As migalhas de memórias dos
respectivos grupos de ofícios, ou grupos especializados, das respectivas
famílias de seus integrantes, em razão de conviverem entre si, necessitam de
u’a memória comum e criam-na. A dependência recíproca precisa da costura da
memória de todos, a qual vai além da memória de cada pessoa, de seus ofícios
respectivos, de seu grupo específico: u’a memória comum a todos e de seus
trajetos.
Numa
sociedade de classe, a separação da memória do oficio em relação a seus
oficiais, possibilita moldar a memória do grupo a partir daqueles que exploram
e, portanto criar a memória – história. Agora, com a cisão entre trabalhadores
e seus instrumentos de trabalho, a memória comum a todos não são meras
lembranças de grupos com seus ofícios e de suas relações na sociedade,
inclusive as necessárias relações com a natureza. Espatifam-se grupos e suas
memórias. Novos meios surgem na forma de produzir e os dominadores destroem os
meios anteriores de produção, para levar a cabo a exploração, inclusive
destruir ofícios e seu produtos, opor indústria a artesanato, e, perpassando
essa materialidade, aqueles dominadores requerem de si a tarefa de justificar,
explicar e esclarecer o conteúdo da vida em comum. Para isso servem a história,
a religião, muitas lendas, relatos de redivivos griôs desfocados, de certa
crítica à realidade, literatura, tradições inventadas, etc. E memória.
Quanto
mais a sociedade simplifica conflitos e, contraditoriamente se encontra mais
cindida e complexa (a simplificação não vem acompanhada da moderação da divisão
social), a memória esmigalhada entre múltiplos grupos necessita de outra que a
unifique e que tente conformar memórias individuais (objetivo não completamente
alcançável).
A
sociedade de exploração carece desesperadamente de u’a memória que objetive a
um só tempo celebrar a unidade, distinguir a identidade e evidenciar a igualdade da espécie humana (a custo de
embotar a cisão entre mulheres/mulheres, homens/homens, homens/mulheres,
dominantes e dominados). Tendo servido à sobrevivência do homem, a memória
serve à persistência da exploração de classe, mas continua necessária à
liberdade, no âmbito da contradição em que está enredada, tal como os homens para
sobreviver, desgastam a sua vida mais rapidamente no trabalho sempre penoso.
Afirmou-se
pouco antes que a sociedade necessita de criar (e de recriar, para ser mais
preciso - criar e recriar) memória para celebrar a unidade e distinguir a
identidade de um povo, mas nem a
nação é unidade (salvo que se entenda que o estado a unifique, coisa discutível),
nem o povo tem qualquer identidade diante da irrevogável divisão social, até
que a revolução destrua a barreira que opõe o homem à (sua) sociedade.
É
que, mesmo com o risco da simplificação (adiante desfeita), pode-se afirmar da
memória que se compartilha: dela os explorados necessitam para sobreviver; dela
os exploradores precisam para viver, para continuar explorando aqueles.
Unindo-os, acrescente-se, mas os dividindo igualmente.
Assim, não é escandaloso que Jaques Le Goff (2010)
em sua súmula de história da memória tenha firmado a memória–religião como
memória do medievo europeu: diante da dispersão enorme dos núcleos de poder, a
religião cumpriu o papel de ser a memória que unificou (ideologicamente) as
tantas memórias dos feudos e suas gentes dispersas e dispersadas. A falta do
chamado estado-nação não permitia ainda o surgimento da memória–história (ou
história–memória). Mas quando a memória pode ser história essa deixa de
perceber como no palco se desenvolvem conflitos que a desacreditam. Mas ela
persiste – essa memória que pretende ser memória de um povo.
É
preciso um retorno na leitura: mantém-se a assertiva que relaciona a memória
(individual ou compartilhada) às condições materiais vigentes na sociedade e
seu descarte. Mas a memória pode sobreviver descolada daquelas, no domínio do
acontecimento, e deixando de ser memória viva, ou lembranças, evocação na vida
cotidiana, a todo momento, ser
memória institucionalizada e, assim, compartilhada.
A
memória compartilhada ou social tem sua vigência enquanto memória compartilhada
viva, como se disse, relacionada ao modo de produção e por esse condicionada e,
à medida que se desenvolvem as forças produtivas com as suas exigências
complementares, os meios de imobilização (objetivação da memória) sofrem
mudanças, mesmo que sejam acréscimos. Nesse sentido, falar em memória oral
(étnica), memória escrita, tipográfica, etc, tem sentido. Mas isso não
significa desconhecer mediações e formas de coletivização da memória. Às vezes,
como no mito, uma pessoa o cria e, havendo condições propícias à sua
permanência, ele se desenvolve, é acrescido, muda de sentido, etc, e permanece,
o que ao mesmo tempo significa seu compartilhamento profundo, enraizado. A
igreja, a escola a família, a classe social, dentre outros entes ou
instituições, fazem mediações entre a utensilagem do modo de produção e aquilo
que deve ser preservado (vigente) como memória, atualizando-a, reproduzindo-a.
Imersas
em conflitos oriundos da forma diferente como se situam diante do controle dos
meios de produção, classes sociais, grupos e instituições, em decorrência de
como interpretam eventos e processos, pugnam por coletivizar sua própria
memória e mesmo até por torná-la memória dominante e justificadora e, a
depender do desenvolvimento da sociedade, memória nacional, na forma mesmo da
história-memória com seus heróis, ou grupo fundador, seus movimentos nativistas
(se for o caso), suas glórias.
É
que não se pode compreender a existência de u’a memória coletiva, social, ou
compartilhada sem a sua contextualização, a imaginação e a necessidade de
preservá-la como lição ou justificação (aspectos da realidade que andam tão
juntos). Mesmo se a memória, por meio de relato de um personagem foi
coletivizada, deve-se acentuar que personagem e relato são viáveis em
determinado meio social.
Pode-se
objetar quanto à natureza e, dentro dessa, a paisagem, mas u’a memória
coletivizada a partir daí, dependerá da relação possível e do momento – relação
contemplativa ou relação de alteração do meio, de seus estudos, etc. Relatos
sobre o meio natural e relatos da conquista ou alteração desse meio terão
mediações e formas de compartilhamento (ou não) diferenciados, até mesmo para
justificação, como no prêmio pela descoberta ou conquista da terra.
Considerando
que a memória não é isolada de compreensão (mesmo que em nível imediato,
empírico) e de imaginação, essas dificultam o entendimento da relação com o
meio de produção, fato que ocorre com outros aspectos da auto-atividade do
cérebro. Assim é que, como Le Goff, (2010), pode-se falar numa memória
religiosa, mas, como em toda alienação, é sempre problemático distinguir os
elementos mediadores entre aquela e o meio de produção, quando se define
(corretamente) que religião é inventada a partir de relações que os homens
travam entre si e / ou diante da natureza.
O
domínio do acontecimento pode sê-lo em relação a um invento (a máquina a vapor,
por exemplo), que é memória e imaginação, com seu impacto. Já não temos uma
memória vivenciada por nós de u’a máquina da qual precisamos saber como por em
movimento e por isso lembrar como acioná-la. Mas sabemos que ela foi inventada
e a história da indústria, a história econômica, etc., preservam sua lembrança.
Mas o acontecimento pode consistir numa revolta, numa greve, numa conspiração,
etc. Tais eventos decorrem da forma como os homens estão organizados, da
formação econômica.
As mais das vezes não é o acontecimento que é
lembrado, mas a sua versão ou o modo de considerá-lo é que é objeto de
memoralização. Numa sociedade de classes, cada uma dessas oferece a sua versão.
A contradição entre elas faz com que o evento não seja considerado
uniformemente em suas linhas gerais. Superar a mera versão, que molda a
lembrança, será questão da História.
Mas
e o invento, não será acontecimento? Ele é produto da memória e da imaginação.
Os fatos vinculados àquele serão lembrados - memória viva, corrente, no
processo de existência humana, porém, quando é possível registrá-lo de maneira
descritiva (ou de outra maneira, como a fotografia) será ao mesmo tempo memória
viva e memória imobilizada, ou objetivada. Enquanto for necessária à reprodução
do modo de produção ela existirá e será estimulada, até mesmo como matéria de
ensino. Quando for desnecessária, será objeto da história recente e, com o
correr do tempo, da história não recente.
A
sociedade pode não necessitar mais do procedimento técnico que viabiliza o
efeito duplo do vapor, mas a História incluirá esse invento tão relevante para
o capitalismo e mesmo em razão de suas consequências abrirá extenso capítulo
sobre a revolução industrial ou sobre
a questão social. Não é aquele invento/descoberta do efeito duplo do vapor algo
que importe mais à memória, porém importará à História –a todo tipo de
História, inclusive àquele não concebido como história–memória. Pode-se objetar
que alguns inventos não teriam maior impacto na vida social e por isso não
interessam à memória nem à História registrá-los. Depende de que história:
risíveis inventos podem ser objeto da história desses próprios inventos ou de
uma história do humor. Sempre haverá quem disponha de tempo para se dedicar a
essa forma de diversão ou de diversionismo, às vezes necessária à dominação,
pois parafraseando Brecht (Aos que virão)
isso é um despropósito, pois implica
em calar sobre muitas coisas.
4.3. Memória e conservação atual do
passado
Memória implica passado – é memória do passado
(retenção e evocação). Isso dito há tanto tempo, não questionado por muitos na
forma como é enunciado, deve ser posto em termos: é passado, porém com a
condição de firmar-se que se projeta para o futuro e mesmo pretende moldá-lo. Evoca-se
no presente, mas esse é futuro em relação ao passado. A memória assim deseja
dominar o futuro – estar presente nesse revela seu totalitarismo. A forma
figurativa de narrar a projeção da memória para frente, como se faz aqui, a
coloca como mestra da vida, o confiar
no mais experiente, o temer a mudança, tentar fazer o passado não passar, a
custo elevado de construir pirâmides colossais ou monumentos para a eternidade,
se preciso for à custa de manipulações.
O
fazer o futuro lembrar de nós nem sempre é desejo poético: é o reforço agora de
mecanismos de dominação indutor de que essa é para sempre. Não se passa
exatamente como arte:
De narradora no passado, e do presente que me tomava a mão
nos trechos conturbados, aqui está, ó futuro, saltei na sela de seu cavalo.
Quais estandartes novos você me traz dos mastros das torres de cidades ainda
não fundadas? Quais fumaças de devastações dos castelos e dos jardins que
amava? Quais imprevistas idades de ouro prepara, você, malgovernado, você,
precursor de tesouros que custam muito caro, você, meu reino a ser conquistado,
futuro... (CALVINO, 2014:115).
Poder
e domínio gerados no modo de produção provocam desejo social de permanência. A
memória projeta-se como memória objetivada: em textos, em fatos, em monumentos,
etc. O que está feito, não apenas o está; conservado para o futuro será
evocado, dissipando memórias vivas que não puderam ser imobilizadas
(objetivadas), ou que foram destruídas por não interessar àqueles que detêm o
poder.
A
projeção da memória imobilizada para o futuro, mesmo da memória compartilhada,
pode em linhas gerais assemelhar-se à preservação de dados que o cérebro faz
(retenção) individualmente: “O cérebro faz registros de entidades, da aparência
que elas têm, de com agem e soam, e as preserva para evocações futuras.”
(DAMÁSIO, 2011:168).
Apenas
assemelham: são registros. A forma de evocação é diferente. Num caso o registro
encontra-se no cérebro, noutro caso o registro lhe é exterior. Com essa matéria
registrada pode-se fazer ficção ou ciência. Mas isso se faz num contexto dado;
socialmente a realização ocorre no modo de produção e nas formas como os
homens lutam pela subsistência, pela
liberdade, pela arte ou por tudo que as contraria, dominados e dominadores que
memorizam–aprendem, aprendem–memorizam.
Permanecer é projetar para o futuro, no
caso da memória.
O
historiador só trabalha com a memória objetivada, mesmo que seja ele a
imobilizá-la, e com a sua própria memória viva, como ocorre, a exemplo, com a
chamada História oral. Mas mesmo nessa, memória objetivada, não a toma como
verdade, confronta com outras, contextualiza, vê sua possibilidade.
Para explorados e exploradores o
compartilhamento da memória, ou memória coletiva, memória compartilhada, se
impõe: é atributo da consciência apreendê-la, na forma como é operacionalizada
pelas pessoas. Mas não se trata apenas de reflexos, meras apreensões de dados,
etc. É preciso perpetuá-la quando se torna impossível vivenciá-la concretamente
numa sociedade dada porque ela já não é operacional: os trabalhadores não
precisam lembrar como operar telex ou teletipo, porque agora esses já não existem. Assim também ocorre com o
acontecimento que se esvai, não repetitivo que é, dado em determinado momento.
Mesmo que as condições materiais que correspondem à memória não estejam mais
presentes, essa sobrevive, ou pode sobreviver, em registros, tradições, etc.
A situação material que guardou a memória de
Tiradentes e da conspiração de que ele participara já não está presente, mas
teimosamente nos lembramos dele (a falsa imagem pessoal, inclusive, como foi
fixada por Agostini), por meio de memória imobilizada, objetivada, em documentos
e relatos. Compartilhamos como (membros da) nação de sua história. A cada dia
21 de abril, a folhinha, a agenda, os meios de comunicação, etc, falam do mártir. A Polícia Militar rememora seu
patrono: o Alferes que deu a vida pela
liberdade da nação, como ensina a história.
Essa imposição de uma memória para todos os
membros da sociedade, na forma de um tipo de história (de fatos isolados,
encadeados ou como eventos de um processo), decorre igualmente de condições
materiais (contradição gerada materialmente entre colônia e metrópole, no caso
acima do protomártir de nossa
independência) e se perpetua colonizadamente para manter a unidade sob
outras formas de coerção do poder, diluir ou postergar conflitos, especialmente
quando a pátria está em perigo.
A essa unidade, para a qual a memória
compartilhada é fundamental, costuma-se dar nome de identidade: sentimento de
pertencimento. Ser e sentir-se brasileiro, por exemplo.
Como
são deixados de lado os fatores de coerção, ou esses não são apropriados ao
momento, cria-se a ideia de identidade, que se sobrepõe às diferenças. A
unidade contraditória aparece como identidade. A identidade pode, sim,
referir-se à nossa espécie humana, a essa pertencemos. O estar juntos
coercitivamente e contraditoriamente só pode ser uma identidade por força de
artifícios ou de aspectos passageiros. Um desses artifícios é o culto à memória
comum tão a gosto de patriotas.
As
sociedades primitivas buscaram soldar sua unidade (identidade para um
pensamento que se detém na aparência das coisas) em um ancestral epônimo. Mas a
evolução cuidou de substituí-lo por um passado comum, povoado de símbolos, ditos,
heróis e inimigos comuns: ao invés do jabuti e seu clã – clã do jabuti – filia
ao presente uma história comum de uma sociedade, ou de um povo: os clãs
identificavam-se por um ancestral que lhes dava o nome. A nação cuidou de
encontrar um passado comum.
Para
a exploração social e para a dominação, descola-se a memória das condições
imediatas que a criaram e se a utiliza para preservar
a união, transformada em aparente identidade:
fica-se sabendo que se pertence a um povo, tem-se um só passado e sobretudo
inimigos efetivos e potenciais comuns. É como dizer: são todos iguais pois são
brasileiros. Ou franceses, na França ou em suas colônias. Ou portugueses, em
Portugal e em suas colônias. Mas esses tais iguais quando o conflito se faz
aberto podem tomar o lado oposto e se porem contra a terra mãe na colônia
ensanguentada.
Essa busca da unificação na contradição, pela
memória compartilhada, ou que se quer compartilhada, desde muito tempo
operacionaliza-se com a ideia de pátria, ou de nação: comunidade imaginada como
quer Anderson Benedict.
Da
pátria – esse ente imaginado e imaginoso – quer-se a memória, ou ela mesma é a
memória, como se encontra em texto que gerações escolarizadas nas décadas de
40, 50 ou 60 do século passado certamente leram (apareceu em inúmeros textos
para o ensino da língua portuguesa), da pena de Ruy Barbosa:
A pátria não é um sistema, nem uma seita, nem um monopólio,
nem uma forma de governo: é o céu, o solo, o povo, a tradição, a consciência, o
lar, o berço dos filhos e túmulo dos antepassados, a comunhão da lei, da língua
e da liberdade. (BARBOSA, 1961: 15).
A
memória coletiva permanece até que a geração viva, e logo que essa vai saindo
do palco sente necessidade de registrá-la diz, em outras palavras, Halbwachs
(2006). O processo geral do fenômeno deve ser esse quanto a acontecimentos,
modos e estilos de vida. No entanto uma experiência comum pode ir além de uma
geração e mais de uma delas pode carregar a memória coletiva como na
experiência de sofrer a exploração social, em seus traços repetidos,
constantes. O dado do registro é realmente essencial, pois diante da mudança o que
era memória viva deverá ser memória imobilizada, ou objetivada.
Há
memória que perpassa gerações independente de sua imobilização, como ocorre com
o mito. Criado, aceito, complementado, o mito segue seu curso. Poderá ser
registrado (e o será provavelmente em algum dia), mas pode continuar vivo na
memória do grupo, transmitido geração após geração.
Reveste-se
de diversas formas a memória para compartilhar (além da história pensada e
escrita como memória), como comemorações e tradições inventadas. Essas últimas
– tradições inventadas – partindo geralmente (não necessariamente) de um evento
que realmente existiu, sobrevive mesmo se contrariar, em muitos aspectos, a
História: é o caso do 2 de Julho na
Bahia. O desfile dessa data pretendeu ser uma réplica da entrada do exército libertador em Salvador, capital da província.
Vencido o exército de Madeira de Melo, firmada a rendição desse, um exército
penetrou em Salvador para marcar a libertação
da Bahia. Nos anos seguintes a data foi comemorada e o é até hoje. Logo a Igreja
Católica a considerou feriado.
Apareceram
depois no desfile imagens de caboclo e cabocla, expressando a nacionalidade;
homens vestidos com roupas de couro, como vaqueiros, que lembram os Encourados do Pedrão, pelotão organizado
para lutar pela independência pelo
padre Brayner, quando dos conflitos no recôncavo da Bahia, alegorias, etc. A
comunidade lembra do 2 de Julho. Inventou-se a tradição, fundada no fato real
da luta pela independência do Brasil na Bahia.
5. MEMÓRIA COMPARTILHADA, ALIENAÇÃO,
REIFICAÇÃO E IDEOLOGIA
5.1. Memória e alienação
As
relações travadas pelos homens entre si, com a natureza e com o produto de seu
trabalho não se revestem pura e simplesmente como expressão de sua humanidade,
mas de uma redução dessa ou do não exercício de possiblidades, isto é, de
realizações: o homem cria e não domina a sua criatura, como ocorre na
fantasmagoria religiosa – logo após criar seu deus, a este submete-se
temeroso. Isso corresponde a uma realidade, não como reflexo dessa, mas como
situação em que o homem se encontra.
Com
a memória compartilhada também: corresponde a uma realidade desumanizada pelos
próprios humanos.
Desprovidos
de humanidade, os conteúdos da memória são assim transmitidos: a desumanização
é ínsita nesses conteúdos.
A desumanização da memória compartilhada ou a
adoção da memória do dominador pelo dominado, que implica dissociação – lembrar
a lembrança dos outros e não a sua própria –, é possível em razão da alienação
e da reificação. Esses dois fenômenos, que possuem sua origem na realidade
social, moldam memórias compartilhadas. São memórias alienadas ou reificadas
que necessitam ser memórias desnudadas.
A
memória, algo profundamente humano, desumaniza-se, por que se aliena ou se
reifica. Ou por que é utilizada contra o homem. Ou por que é retirada do homem
a possibilidade e o direito de
externá-la. Ou mesmo na situação de não lembrar para que a lembrança não se
volte contra quem lembra. São exemplos de despojamento de uma faculdade do
homem: a memória evocação, ou o seccionamento dessa faculdade: imposição de uma
evocação que não corresponde à retenção. Não lembrar de acordo com suas
próprias lembranças, por imposição alheia ou por força de inautenticidade.
O impacto da situação até aqui entrevista
exige a verificação da alienação e da reificação e de sua relação com a memória
compartilhada; mas também com a História e seus cultores.
Ponto
de partida generalizante (com as dificuldades e críticas que são opostas à
generalização inicial) pode indicar em que consiste a relação entre a alienação
e a reificação (entendida essa como forma especial da anterior) face à memória:
a memória compartilhada para o detentor dos meios de produção é a memória da
acumulação e de sua redução a acumulador, situando-o aquém de sua possibilidade
humana. A memória compartilhada do trabalhador é a memória da exploração e de
sua redução a objeto, da redução de sua atividade a mercadoria.
A
realidade desnuda que referida generalização expressa, na sua forma total como
existe é enfumaçada pela alienação/reificação, ou vista por multiplicados
óculos de Pangloss.
Assim
é que concretamente, na sociedade, histórias de vida compartilhadas celebram o
enriquecimento do self made man, sua
astúcia, seu discernimento e sua coragem. Ora o golpe de sorte, ora a herança bem empregada, ora o esforço do
trabalho (que não aparece como capacidade para explorar e propriedade de meios
de produção), evitando-se, em muitos casos, os pecados da sua acumulação
primitiva. Disso não se ausentam histórias memórias da indústria com seus
industriais, do comércio com seus comerciantes, dos banqueiros com seus bancos;
todos com seus feitos e seus trabalhos em
prol do desenvolvimento da sociedade, criando empregos, fundações, obras
pias, etc., e marcando paisagens urbana e rural com suas construções e
invenções.
De permeio a tudo aquilo vem a
glorificação.
E
precisamente, nas escolas, comemorações, estudos
em memória de, as glorias dos feitos, dos heróis (ou equiparados), etc.,
são lembradas e mandadas lembrar. Aqui, um André Rebouças, ali um 2 de Julho, acolá um general, mais além
um monumento para a vaidade, a glorificação que impõe respeito, símbolo do
poder: as memórias gloriosas, de que
fala Camões:
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando;
E aqueles que por obras valorosas
Se vão da lei da Morte libertando
– Cantando espalharei por toda a parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte. (LUSÍADAS, 1, II).
Esses
arcabouços da justificação do poder do Estado e da classe ao qual este serve,
não deixam perceber o fruto de tudo isso: a exploração do capital sobre não
apenas os que vivem de seu trabalho, mas de toda a sociedade. Há nisso tudo a
aparência de coisas feitas por verdadeiros
homens, a idéia de que esses buscavam bem estar de todos, o sentimento de
que eram gênios da humanidade, ou de
seu país. A memória se compartilha nessa admiração e fica objetivada em livros,
revistas, monumentos, hinos, etc. Rende-se o culto aos poderosos e disso não
está ausente a alienação, pois se trata de objetivação.
No
entanto, as possibilidades não relacionadas à exploração, aquelas que
revelariam a viabilidade do fim da contradição do indivíduo face à sociedade
não estão presentes em referida glorificação dos homens e das coisas
glorificadas e, por isso mesmo, lembradas.
Esse
descolar das possibilidades humanas (esse viver para acumular riquezas e ser
dessas um servo) marca pesadamente os representantes da classe dominante com a
cicatriz de sua alienação e de suas memórias compartilhadas, que introjetam nas
consciências como memória compartilhada por toda a sociedade. De outra
perspectiva são memórias igualmente partilhadas da exploração que realizam e,
por isso, sobre o trabalho alienado.
Enquanto
a sociedade já dispõe de tudo o que é necessário para reorganizar-se diferentemente
da forma em como se encontra estruturada, a memória compartilhada é a memória
da conservação: evoca o passado, dele retém significados (ou mesmo o relê),
perpetua-lhe as características que ainda sejam funcionais. É paralisante
diante das múltiplas possibilidades do presente. Nesse sentido também conduz a
marca da alienação: a desatualização histórica.
Não
se dissocia a memória compartilhada da lógica
do capital: a lógica de acumular e reproduzir. Memória surgida da
exploração, a sua arqueologia revela, quando escavadas as camadas inferiores do
terreno, a alienação, a redução do trabalho humano a mercadoria, a obra de
todos considerada como obra de alguns: trata-se, num lugar, do monumento feito
por um poderoso (não decorrente da
exploração deste); noutro, de uma batalha vencida pelo general x (nunca vencida por homens reduzidos à condição de
máquina de matar com consciências introjetadas de memórias gloriosas e de
promessas).
Quando
a história é escrita no modelo de história – memória, a nação é chamada a
conhecê-la como História, a mera memória dos dominadores ensinada para ser
compartilhada por toda a sociedade.
A
não evocação de oprimidos sequer como força de trabalho (trabalho alienado), ou
máquina mortífera (é verdade, concede-se às vezes um monumento ao soldado desconhecido) é memória alienada em relação
àqueles porque não é sua memória.
Pode-se
falar numa memória situada do outro lado. Le Goff generosamente fala da
necessidade de a memória servir à liberdade:
Cabe, com efeito, aos profissionais científicos da memória,
antropólogos, historiadores, jornalistas, sociólogos, fazer da luta pela
democratização da memória social um dos imperativos prioritários de sua
objetividade científica.
(...)
Devemos trabalhar de forma que a memória sirva para a
libertação e não para a servidão dos homens. (LE GOFF, 2010:471).
Há,
no entanto, que considerar-se, em primeiro lugar, que essa memória encontra-se
inicialmente contida na memória compartilhada, vigente ou objetivada: não há
guerra sem soldados e sem trabalhadores em indústria de guerra; não há monumento
sem trabalhadores que o construam ou que tenham produzido argamassa ou
recortado o granito. Está oculta, estando presente. Mais oculta de que a
personagem Wally na profusão de desenhos e cenas. É preciso rebuscar as paredes
para dizer com Brecht:
Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia várias vezes destruída –
Quem a reconstruiu tantas vezes? Em que casas
Da Lima dourada moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da
China
ficou pronta?
A grande Roma está cheia de arcos do triunfo.
Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A decantada Bizâncio
Tinha somente palácios para seus habitantes? Mesmo na
lendária
Atlântida
Os que se afogavam gritaram por seus escravos
Na noite em que o mar a tragou. (BRECHT, 2001: 166).
Importa tanto quanto isso, dizer que a
memória compartilhada do oprimido tem sido a memória de sua redução a objeto
(reificação) ou a redução de sua atividade a mercadoria. A história do capital
é igualmente a história do trabalho assalariado que o cria e reproduz. As
relações de produção são reproduzidas cotidianamente, em condições de alienação
ou de reificação. Os modelos de organização de seu trabalho (Taylorismo,
Fordismo, Toyotismo) são modelos reificantes em que o trabalhador é parte da
máquina, ou da estrutura em que esta se encontra inserida.
A
memória do homem com a sua exploração é compartilhada a partir do outro, ou a
partir daquilo que pertence ao outro. Essa memória tem prevalecido, mesmo
quando se fala em revolta, greve, revolução, pois essa é a memória do homem
desumanizado (desominizado), que luta contra sua objetivação para ser senhor de
sua história e (embora apenas em certos momentos) findar o secionamento
individuo/sociedade. Mas mesmo em alguns dos episódios em que o oprimido
descoisifica-se, só tenuamente tem consciência de suas possibilidades humanas,
ou de sua humanidade. A memória da revolta ou revolução só aparece como memória
das possibilidades exploradas para romper a servidão e dissipar o homem objeto,
quando ela se nega para revelar-se História. Porque enquanto permanecer no
âmbito da alienação, será memória individual de cada um, ou compartilhada por
todos os envolvidos no evento. Será a memória alienada, ou reificada, porque se
trata da memória a partir do outro ou do objeto.
O
esquecimento também. E é possível a história dos esquecidos, muitas vezes só
arqueologicamente encontrada na análise das fontes. Nesse âmbito de
considerações, insinua-se a diferença, diferença sob múltiplos aspectos,
especialmente a diferença de classes sociais, interesses e conflitos por ela
criados: sem a consciência disso não é possível a compreensão de esquecimentos,
omissões ou apagamento de memória compartilhada ou que ficou na simples
virtualidade de sê-la.
A memória da situação alienada, quando
compartilhada enquanto tal, tem como companheiros de jornada a falta de projeto
de liberdade e o operário padrão; a
memória das limitações ou do conformismo. Essas se compartilham amplamente,
especialmente diante do predomínio da memória de compartilhamento compulsório
nas salas de aula, nos museus, no exército, etc, isto é, da memória do outro
imposta como memória de todos, logo como nossa memória. Mais uma vez: memória
compartilhada a partir da alienação, memória alienada.
Importa
à História denunciar a memória; se aquela não cumprir o desvelamento dessa,
ficará aquém daquilo que se pode esperar do saber dos historiadores, que é
desnudador, e desnudar todo aspecto alienante ou reificador da memória é uma de
suas tarefas: na demarcação de campos do saber e na interpretação dos dados da
memória imobilizada (objetivada). Diante do monumento da celebração de uma
vitória, ou de uma personagem está a memória imobilizada (objetivada) como
condição de projetar-se para o futuro (viver, mobilizar-se no futuro), por isso
que é memória para evocação. Toda a composição do monumento está cheia de
elementos da alienação. Na sua aparência guarda a memória urbe et orbe, e a preserva (quer
preservá-la). Mas, realmente, seu préstimo para o historiador dependerá de
crítica/interpretação, o que significa não circunscrever a fonte a mera
representação. Aquela fonte certamente está cheia de argamassa, granito, etc, e
da memória que se quer transmitir e compartilhar, mas ainda se encontra vazia
de conteúdos histórico–significativos, tal como os entende o historiador. A
crítica/interpretação irá preencher o monumento de conteúdo historicamente
significativo: a vitória que o monumento ou a personagem que ele glorifica será
o sangue ou a dominação, já não será memória.
Em
outras palavras: recepcionar a memória e negá-la é a dialética que preside as
relações entre memória e História. Não se recusa a memória imobilizada, ao
revés disso se a recepciona para, num segundo momento negá-la, porque: ela é
tomada como fonte, conteúdos diferentes daqueles pretendidos por aquele que a
herdou são descobertos e, no lugar da glória que o testador deixou em herança
para que fosse evocado compartilhadamente, o historiador poderá encontrar o
crime: tantos são os conquistadores,
os heróis, os nossos guerreiros, os
pacificadores, que se moveram entre homens transformados em coisa de matar,
reificados, e dos quais se transmitem a memória alienada, para alienar.
O
tratamento desalienante e desreificante da memória é campo do historiador, que
nega a história-memória e que, tomando a memória imobilizada como fonte
confere-lhe outros conteúdos- não necessariamente aqueles desejados pelo autor
da memória.
No tratamento da fonte, a memória do historiador é outra, a memória para o historiador é outra: aquele sal
lágrima de Portugal pessoano, pode ser lágrima da África, dos navios negreiros:
“Ó mar salgado, quanto do teu sal / São lagrimas de Portugal!” (PESSOA, 1995).
A
afirmativa radical sobre o desfazimento dos conteúdos de alienação e reificação
da memória compartilhada pode ser expressa da seguinte maneira: a memória
existe em relação ao esquecimento, por isso se cultiva e se preserva a memória,
inclusive a memória compartilhada. Para o historiador a memória existe apesar
do esquecimento ou de seu encobrimento. Ele encontrará em cada objetivação da
memória, outras memórias, aliás, mesmo em objetos e marcas não memórias,
pode-se encontrar informação a partir de um dado simples, como diz Björn
Kurtén, em outra área do saber:
Em vez de ser parte do próprio organismo, o fóssil pode ser
uma espécie de registro da sua presença, como uma pegada ou uma toca
fossilizada... Estes fósseis nos proporcionam uma chance única de ver os
animais extintos em ação e de estudar o comportamento deles, embora só seja
possível realizar uma identificação confiável no caso de o animal ter caído
morto e ter-se fossilizado alí mesmo. (BJORN KURTÉN apud ATWOOD, 2005 s/n).
É
que a História não é autopoiesis da memória. Os criadores do oficio do
historiador, os positivistas, desejando ou não, assim o fizeram e por isso
criaram a História-memória. U’a memória que se autocria, portanto uma memória
autopoiética,
na
tentativa de criá-la ao contrário. Não estavam isentos da alienação. A memória
imobilizada nos documentos tornava-se História, porém história–memória, o que
significa uma autocriação da memória no afã dos historiadores de construírem a
memória da nação.
Também
não está livre da alienação a noção de identidade tomada a partir de conteúdos
da memória, pois isso implica em desconhecer memórias que se contradizem, o
caráter contraditório da sociedade e o poder que faz prevalecer a memória dos
dominantes como memória de todos, utilizando as instituições, e a inversão da
convivência e de mecanismos de compulsão (às vezes violência simbólica) com
objetivo de mascarar aquela convivência marcada por contradições.
Mas
a alienação pode tomar aspectos mais graves: na reificação que conforma
memórias.
5.2.
Memória e reificação
A
reificação ora é tomada como caso de alienação (tipo especial dessa), sua forma
superior, ora é tida como fenômeno próprio, embora relacionado àquela. Em
outras palavras: reificação é tipo de alienação ou existe ao lado dessa, como
conceito próprio que corresponde a determinada situação.
A
teoria materialista da alienação encontra-se nos Manuscritos econômico–filosóficos (Marx, 2004), enquanto
considerações sobre a reificação aparecem em obras mais maduras: O capital e Grundrisse.
No
modo de produção de mercadorias, relações e ações humanas veem-se transformadas
em relações entre coisas produzidas pelos próprios homens, as quais tomaram
vida independente. Esse é o fenômeno da reificação.
Em
Marx encontram-se os fundamentos para a teoria da reificação quando afirma que:
O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto,
simplesmente no fato de que ela reflete aos homens as características sociais
do seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios produtos de
trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também
reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação
social existente fora deles, entre objetos. Por meio desse quiproquó os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas
físicas, metafísicas ou sociais. Assim, a impressão luminosa de uma coisa sobre
o nervo ótico não se apresenta como uma excitação subjetiva do próprio nervo,
mais como forma objetiva de uma coisa fora do olho. Mas, no ato de ver, a luz
se projeta realmente a partir de uma coisa, o objeto externo, para outra, o
olho. É uma relação física entre coisas físicas. Porém, a forma mercadoria e a
relação de valor dos produtos de trabalho, na qual ele se representa, não tem
que ver absolutamente nada com sua natureza física e com as relações materiais
que daí se originam. Não é mais nada que determinada relação social entre os
próprios homens que para eles aqui assume a forma fantasmagórica de uma relação
entre coisas. (MARX, 1985, I: 71).
Coube
a G. Lukács desenvolver, na década de 20 do século passado, uma teoria marxista
da alienação. Embora tenha depois, em 1967, feito crítica ao ensaio que trata
da reificação, estas foram no sentido de admitir forte hegelianismo em certas
partes e a não observância com que a natureza aparece no marxismo. É certo, de
qualquer forma, que a posterior publicação dos Grundrisse e dos Manuscritos econômico–filosóficos de Marx deu
suporte ao ensaio A reificação e a
consciência do proletariado (LUKÁCS, 1989), e agregou prestígio ao texto,
que foi traduzido em várias línguas e continua citado.
Lukács assim caracteriza, de forma
ampla, o fenômeno da reificação:
Já muitas vezes se realçou a essência da estrutura
mercantil, que assenta no facto de uma ligação, uma relação entre pessoas,
tomar o caráter de uma coisa, e ser, por isso, de uma objetividade ilusória que, pelo seu sistema de leis próprio,
aparentemente rigoroso, inteiramente fechado e racional, dissimula todo e
qualquer traço da sua essência fundamental: a relação entre homens. (LUKÁCS,
1989: 97).
O
autor insiste que o retalhamento do processo do trabalho em muitas operações
parciais “destrói a relação entre trabalhador e o produto como totalidade e
reduz o seu trabalho a uma função especial que se repete mecanicamente” (p.
102) e afirma:
(...) pela racionalização e em consequência desta, o tempo
de trabalho socialmente necessário, fundamento do cálculo racional, começa por
ser produzido como tempo de trabalho médio, apreensível de modo simplesmente empírico. Para depois, graças
a uma mecanização e a uma racionalização cada vez mais adiantadas do processo
de trabalho, passar a ser produzido como uma quantidade de trabalho objetivamente
calculável que se opõe ao trabalhador qual objetividades consumadas e fechadas
(LUKÁCS, 1989. 102).
O
fato de o processo de trabalho apresentar grande fragmentação (o trabalhador
realiza apenas uma das muitas fases do processo), ser cada vez mais possível a
previsão, medido o tempo necessário para a produção e o trabalho abstrato ser
cada vez mais dominante, determina que “as particularidades humanas do
trabalhador apareçam cada vez mais como simples fonte de erro, racionalmente
calculado de antemão.” (LUKÁCS, 1989: 103).
Examinando o capitalismo de seu tempo, marcado
por forte mecanização, fragmentação no processo do trabalho, predominância do
trabalho abstrato, referido autor diz:
O homem não aparece nem objetivamente, nem no seu
comportamento, em relação ao processo do trabalho como verdadeiro portador
deste processo, está incorporado como parte mecanizada num sistema mecânico que
encontra pela frente, acabado e a funcionar em total independência
relativamente a ele, a cujas leis tem de se submeter. (LUKÁCS, 1989,103).
À submissão do
trabalhador deve ser acrescido o fato de que quanto mais a racionalização e a
mecanização do processo de trabalho aumentam, mais a atividade do trabalhador
perde o seu caráter de atividade para se tornar numa atitude contemplativa.
(LUKÁCS, 1989:194).
De
toda a situação decorre o fato já assinalado de que relação entre pessoas
assume o caráter de uma coisa, adquire com isso uma objetividade, ou autonomia,
que parece racional e disfarça a sua natureza de ser relação entre pessoas.
Nessa conclusão, está presente o que Marx já observara em O capital.
Lukács,
enfatizando a situação reificante que permeia o capitalismo, admite que:
A mecanização racional penetra até a alma do trabalhador:
até as suas propriedades psicológicas são separadas do conjunto da sua
personalidade e objetivadas em relação a esta para poderem ser integradas em
sistemas racionais especiais e reduzidas ao conceito calculador. (LUKÁCS, 1989:
102).
O
autor, no entanto, acredita que o trabalhador com o conhecimento de si atinja o
conhecimento da essência da sociedade, ponto de partida para sua ação
transformadora e, portanto, de rompimento da realidade reificante.
Mesmo admitindo-se a dificuldade de tratar
separadamente alienação e reificação, pode-se dizer que na primeira a ênfase
está em os produtos do homem assumirem objetividade e aparecerem como algo que
os dominem, enquanto que na reificação
são relações sociais que tomam para o homem a feição de relações entre
coisas. Isso significa que não podem ser tratadas isoladamente.
Há
quem diga que “coincidem bastante a reificação lukacsiana e o conceito de
alienação usado pelo próprio Marx” (KONDER,1965: 25).
Embora
aqui o tratamento da alienação e da reificação tenha se fixado sobretudo, mas
não só, no aspecto do trabalho assalariado, da objetivação, um exame que
decorre dos escritos de Marx é complexo, como acentua Meszáros:
tem quatro aspectos principais: a) o homem está alienado da
natureza; b) está alienado de si mesmo (de sua própria atividade); c) de seu
ser genérico (de seu ser como membro da espécie humana); d) o homem está alienado
do homem (dos outros homens), (MESZÁROS, 2006: 20-21).
Para
a finalidade da presente estudo, importam esses aspectos, mas a alienação do
homem em relação à natureza expressa igualmente sua relação com o produto de
seu trabalho, como disse Marx:
O trabalhador nada pode criar sem a natureza, sem o mundo
exterior sensível (sinnlich). Ela é a matéria no qual o seu trabalho se efetiva,
no qual [o trabalho] é ativo, [e] a partir da qual e por meio da qual [o
trabalho] produz.
Mas como a natureza oferece os meios de vida, no sentido de
que o trabalhador não pode viver sem objetos nos quais se exerça, assim também
oferece, por outro lado os meios de vida no sentido mais estrito, isto é, o
meio de subsistência física do trabalhador mesmo. Quanto mais, portanto, o
trabalhador se apropria do mundo externo, da natureza sensível, por meio do seu
trabalho, tanto mais ele se priva dos meios de vida segundo um duplo sentido:
primeiro, que sempre mais o mundo exterior sensível deixa de ser um objeto
pertencente a seu trabalho, um meio de vida de seu trabalho; segundo, que [o
mundo exterior sensível] cessa, cada vez
no sentido imediato, meio para subsistência física do trabalhador (2008: 81).
Os demais aspectos foram vistos, en passant : a alienação do trabalhador
de sua atividade – o trabalho que se torna mercadoria, que não lhe pertence,
pois continuamente tem que a vender para subsistir. Também, da mesma forma, a
desumanização do homem (desominização) foi mencionada: à medida que o
trabalhador sofre desgaste, o mundo objetivo se torna mais poderoso e o seu
mundo interior se torna mais pobre e cada vez mais deixa de lhe pertencer, mas
o faz pertencer ao objeto. Igualmente, o homem passa a considerar o outro homem
“segundo o critério e a relação na qual ele mesmo se encontra como trabalhador”
(MARX, 2008: 86).
A
situação apresentada supõe limitações, mas igualmente tomada de posições
(compreensão do estado alienado/reificado, conflito em relação às condições de
vida, etc, que importam, como será visto, em limitação à própria memória
compartilhada).
Mas tudo isso não atinge apenas o trabalhador.
A reificação perpassa toda a sociedade, assim como a alienação (concede-se
espaço aos que entendem que se tratam de conceitos, que correspondem ao
concreto, diferentes). Muitos aprenderam em compêndios iniciais de matemática
financeira que juro é remuneração do capital, afirmativa que transforma uma
relação social em relação entre coisas; a burocracia trata geralmente os que
nela estão envolvidos como peças de uma engrenagem; as ditaduras despojam, ou
pretendem despojar, o homem de suas capacidades, coisificando-os, etc. Por
isso, também o capitalista segue a lógica
do sistema do capital.
Com efeito, o capitalista,
Ele mesmo se
transforma em máquina que se move com a “energia” do capital, que o transforma
por sua vez em coisa, uma outra engrenagem do mesmo sistema.
Para que a situação
perdure–situação que ele não mais comanda e que segue seu próprio curso–deve
ele comprar não apenas forças de trabalho, mas consciências. E, no ato de
comprar consciências ele anula sua própria consciência. No ato de desominizar,
ele próprio se desominiza. Não é mais um ser humano. É o centro do mundo.
Transformando os outros homens em coisa, ele mesmo se coisifica. No ato de ter,
ele deixa de ser.
(...) como dono, ele
não mais se pertence, pertence ao capital que passa a estimular e a motivar os
seu atos. É um instrumento do sistema. Em troca dessa alienação, ele goza a vida.
Mas perdeu para
sempre sua alma e sua consciência (BASBAUM: 1977: 36-37).
A ideologia acresce um componente,
que interessa ao estudo da memória especialmente da memória compartilhada.
5.3. Memória e Ideologia
Algo
encontra-se subjacente quanto à relação entre ideologia e memória na digressão
feita entre alienação, reificação e memória, quanto à gênese e manifestação
daquela: o seu fundamento em determinada realidade material (social e natural)
é basicamente o mesmo, pois as ocorrências na sociedade têm nascimento
determinado pelo seu próprio ser social.
Igualmente, como foi dito, é acertado
mencionar que a memória é necessária em relação a toda produção humana,
material ou imaterial. A própria denominação das coisas, tão importante para a
sobrevivência da espécie humana e para a interação social, exige memória em seu
duplo aspecto de registro e evocação e é integrante da imaginação. Até mesmo
quando se cria uma nova palavra, a memória está presente, se não fosse pelo
motivo da utilização de meios existentes de que se vale o código linguístico,
ali ela estaria pois é ínsita à consciência.
A relação entre memória e as condições
materiais que envolvem as pessoas permite que aquela (memória) se destaque e
adquira autonomia, opondo-se aos sujeitos, e o seu cultivo pelos homens tem o
mesmo aspecto que Marx apresenta para o cultivo da arte por integrantes de
outro momento histórico e de outro entorno econômico-social:
Sabe-se que a mitologia grega foi não apenas o arsenal da
arte grega, mas seu solo. A concepção da natureza e das relações sociais, que é
a base da imaginação grega e, por isso da [mitologia] grega, é possível com máquinas de fiar automáticas, ferrovias,
locomotivas e telégrafos elétricos? Como fica Vulcano diante de Roberts etc., o, Jupiter diante do para-raios e
Hermes diante do Crédit Mobilier?
Toda mitologia supera, domina e plasma as forças da natureza na imaginação e
pela imaginação; desaparece, por conseguinte, com o domínio efetivo daquelas
forças. Em que se converte a Fama ao lado da Printing House Square? A arte grega pressupõe a mitologia grega i.
é., a natureza e as próprias formas sociais já elaboradas pela imaginação
popular de maneira inconscientemente artística (...)
De outro lado: é possível Aquiles com pólvora e chumbo? Ou
mesmo a Ilíada com a imprensa ou, mais ainda, com a máquina de imprimir? Com a
alavanca da prensa, não desaparecem necessariamente a canção, as lendas e a
musa, não desaparecem, portanto, as condições necessárias da poesia épica?
Mas a dificuldade não está em compreender que a arte e o epos gregos estão ligados a certas
formas de desenvolvimento social. A dificuldade é que ainda proporcionam prazer
artístico e, em certo sentido, valem como norma e modelo inalcançável. (MARX,
2011: 63).
Trata-se
do fato de que a imaginação, por meio de suas mediações diante da realidade,
cria formas capazes de fazer perpetuar sua produção material ou imaterial, como
arte, religião, etc.
Tal
como ocorre com a mitologia que, vinculada a formas de leitura do mundo, mediou
a arte, também mediando a memória compartilhada encontram-se ideologias. Uma
vez que estas se encontrem estabelecidas, influenciam a maneira de construir
lembranças compartilhadas.
A ideologia (como qualquer construção
humano-social) só é possível com a memória e se encontra referenciada em
determinada realidade econômico social, isto é, em determinada formação
econômica. Assim, as condições gerais dadas para a memória compartilhada são
adequadas à ideologia, e à memória autonomizada desta que a acompanha. Como a
memória é dado necessário para a ideologia, poder-se-ia imaginar uma relação
apenas interior, ou subjetiva, mas isso não seria o bastante: a ideologia
informa, com outros fatores, a memória e esta a lança tempo adiante,
atualizando-a ou dessa fazendo (já
quando não é mais operacional) objeto da história dos homens e de seu ideário.
E poderá auxiliar a entender contornos de outras realidades, como é o caso de
sua influência na obra de arte. A memória ideologizada do combate socialista e
suas ideias repercute na literatura, escultura, cinema, mesmo em suas
expressões atuais ou para sua compreensão, quanto a uma vasta produção. O mesmo
pode-se dizer de outros combates.
A ideologia pressupõe memória, num primeiro
momento, e num segundo momento a memória é ideologizada.
Pode-se objetar a ampla generalização que
marca o raciocínio anterior. Afinal reitera-se, de outra forma, um dado: a
inevitabilidade da memória compartilhada para a elaboração ideológica e sua
vinculação concreta à realidade material da sociedade (e à natureza tendo em
vista a necessária relação do homem com a natureza). Mas como isso ocorre é um
dado ausente que necessita de esclarecimento, pois não se trata apenas de
lembrar junto (os homens não lembram sozinhos, estão juntos). O fato envolve
mediações e estas são informadas pela compreensão que os homens têm de seu
momento histórico e de como projetam o seu devir na sociedade ou o devir que
eles entendem dever construir; em síntese: envolve um por teleológico: põe-se
uma antecipação. Imagina-se finalidade e o meio de alcançá-la. Mas isso é feito
com determinada compreensão da realidade ou com um guia (às vezes fantástico)
da interpretação dessa, como se percebe em teorias contratualistas da/ para
construção do Estado; dentre outras, a formulada por Jean Jacques Rousseau.
Pode-se perguntar, em nível de crítica histórica: em que data, em que lugar, e
quem firmou o Contrato Social de que
fala Rousseau? Evidentemente vê-se que aquela realidade política
descrita/imaginada por Rousseau é algo tão abstrato que não se tem resposta
para as perguntas formuladas. No entanto, seu ideário integra na ideologia
liberal e com ele o absolutismo foi percebido e lembrado. Sequer seria possível
a Rousseau (com a concepção de seu Estado artefato) fazer afirmações
categóricas como aquelas que o Exodus faz quanto à legislação (portanto quanto
à criação do Estado). Em contexto abstrato (por que religioso), o Exodus fala
do dia (terceiro dia da saída dos israelitas do Egito), local (Monte Sinai) e
quem (Deus) e por intermédio de quem (Moisés) transmitira a legislação inicial
(fundante) do estado dos israelitas. São indicações concretas, porém de uma
fantasia de caráter religioso. Em Rousseau há abstração sem o referencial
concreto determinado (lugar, onde, quem), pois estado de natureza, superação desse e necessário contrato social não têm concretude: são dados
imaginados, uma fantasia política necessária ao combate contra o absolutismo.
Diferentes entre si, a constituição do Estado
(à medida que se constitui seu ordenamento jurídico) por um contrato social ou
por uma outorga divina (os dez
mandamentos) são maneiras justificadoras para a constituição de uma ordem
laica ou religiosa respectivamente. Ambas as construções estão ai na memória de
uma democracia burguesa contratada (regida
por uma constituição) ou de um estado com motivações religiosas. Apesar da
abstração de ambos, uma por força da ausência de lugar, data, atores; outra por
conter esses dados como invenção religiosa, não se deve olvidar que decorrem de
realidades postas e possuem finalidade: constituir uma relação de mando
historicamente possível e espelhada nos conflitos e necessidades existentes.
Não
apenas tem-se memória da ideologia que se professa, como se a tem daquela que
se combate. Mas igualmente têm-se memória por meio da ideologia que conduz à compreensão da realidade em muitas
situações. Como a memória compartilhada tem fundamento nas diversas
determinações da sociedade e a ideologia também, a memória compartilhada
encontra-se eivada da ideologia; a compreensão da realidade nem sempre é
científica, as mais das vezes é ideológica, e por isso a memória compartilhada
apreende a realidade ideologicamente, incluindo sentido finalístico: lutar
contra um antigo regime e deixar-se guiar pela liberdade para construir um novo
regime pode dar a dimensão do porquê a memória compartilhada está eivada de
ideologia, uma realidade dada, uma compreensão dessa como algo injusto (ou
disfuncional), uma possibilidade de mudança. A luta contra aquele regime é
vista como luta conduzida ideologicamente e, no caso, a leitura da realidade é
reduzida grosso modo à falta de liberdade, e as ideias são aquelas de
liberdades públicas que devem ser reconhecidas constitucionalmente, da divisão
de poderes para evitar o arbítrio governamental, da livre iniciativa, da
liberdade contratual, da igualdade perante a lei. A memória não é compartilhada
ai como conflito de grupos sociais ou, mesmo que o seja, o compartilhamento
dar-se-á como conflitos de grupos conduzidos por ideias. Lembra-se da luta
contra o regime anterior e se a celebra com as marselhesas, as bandeiras
tricolores, ou mesmo fortes alegorias como o quadro de Delacroix – A liberdade guiando o povo.
Alfred de Musset em A Confissão de Um Filho do
Século, misto de memória, ensaio e romance, evoca sentimentos da juventude e
idéias que a motivavam, lembra-se a partir de sentimento dominante, que
entendia comum aos jovens, – do mal do
século – vivenciado de forma diferente: a partir de respectivas condições
econômicas, e lembra-se como as falas revelavam formas diferenciadas de ver a
realidade no momento de crise (o livro abrange a realidade de 1814, fazendo recuos a datação anterior, até 1836).
A juventude lembrava-se e interpretava a realidade de forma diferente e o mal
que a vitimava segundo o autor decorria de uma crise:
Três elementos contribuíam para a vida que então se oferecia
aos moços: atrás deles, um passado jamais destruído, agitando-se ainda sobre
suas próprias ruínas com todos os fósseis dos séculos de absolutismo; diante
deles a aurora de um imenso horizonte, os primeiros clarões do futuro; e, e
entre esses dois mundos, algo de semelhante ao oceano que separa o velho
continente da jovem América, um não sei que de vago e indeciso, um mar agitado
e cheio de naufrágio, atravessado de raro em raro por uma longínqua vela branca
– ou por um navio soltando densa fumaça – numa palavra, o século presente, que
separa o passado do futuro, sem ser nem um nem outro, não se sabe se se marcha
sobre uma semente ou sobre uma ruína. (MUSSET, sd: 12).
Musset
percebia a face exterior da crise, sempre apresentando o novo que não possui ainda tônus suficiente para firmar-se e o velho que teima em permanecer. Em suas
palavras: “Toda doença do século presente provém de duas causas, o povo que
passou por 93 e por 1814 traz no coração duas feridas: Tudo o que era deixou de
ser; tudo o que será não é ainda. Não busqueis fora dai o segredo dos nossos
males.” (p.18). Mas isso não o impedia de ver diferenciações de riqueza e
comportamentos diferenciados face à crise. A sua visão é aquela do progresso,
que Napoleão houvera encarnado. Uma ideologia que permeava a sociedade.
A
memória compartilhada não sofre o impacto da ideologia de forma uniforme, mas
de acordo com a posição dos grupos que respectivamente a compartilham diante e
em relação aos meios de produção: de diversas ideologias.
O
nacionalismo, por exemplo, é campo fértil de mediação entre a realidade e memória. Muito daquilo que se escreveu ou que
ainda se escreve tem a marca nacionalista. Dispensável é citar a história do
Brasil com seus mártires, seus movimentos
nativistas, etc. Alain Dieckhoff, que analisa o papel da cultura na
formulação da ideologia nacionalista, sintetiza sua função:
A cultura assim sedimentada possui dupla função estratégica:
Ela deve, em primeiro lugar, provara
existência do povo ao conferir-lhe uma aparência de unidade primordial. Apesar de sua sujeição
política, o povo em questão vê-se dotado de uma especificidade própria.
Paralelamente, a cultura permite também contestar a ordem política à qual o
povo se encontra submetido. Ela serve, então, de fundamento ideal a qualquer diligência tribunícia ao opor-se às
pretensões universalistas dos impérios ou dos Estados em nome de
particularismos reivindicados. O apelo à cultura deve facilitar a longo prazo a
rejeição da subordinação política. (DIECKHOFF; 200: 43-44).
O autor, em verdade cuida de
nacionalismo e de estado nacional.
Ora,
a prova da existência de um povo pressupõe u’a memória, a idéia de um passado
comum, compartilhado pelos ancestrais, e o nacionalismo (que mobiliza a
cultura) não menos pressupõem a ideologia. E tanto mais forte será a ideologia
nacionalista, mais intensa será sua influência no lembrar: lembrar opressões,
tratamentos diferenciados, etc. A ótica da memória será nacionalista, pois não
só a idéia nacional estará presente na memorização, como também a memória será
convocada para construir um estado nação.
Raciocínios
dispendidos até então e situações declaradas deixam implícito o marco
conceitual de ideologia até então empregado. Não se trata de outro que não
aquele que decorre das construções teóricas de Marx, isto é, trata-se de um
fenômeno superestrutural, mas não individual, como esclarece György Lukács
(2013). Importa, assim, em considerar ideologia tanto uma forma de compreensão,
ou leitura, da realidade ao avesso dessa, em seu aspecto dito pejorativo,
portanto, quanto na forma de meios que auxiliam a compreensão da realidade,
tornando-a entendida, para dirigir a atuação dos agentes sociais.
Lukács compreende que:
A ideologia é sobretudo forma de elaboração ideal da
realidade que serve para tornar a práxis social
humana consciente e capaz de agir. Desse modo, surgem a necessidade e a
universalidade de concepções para dar conta dos conflitos do ser social; nesse
sentido, toda ideologia possui o seu ser-propriamente-assim social: ela tem sua
origem imediata e necessariamente no hic
et nunc social dos homens que agem socialmente em sociedade. Essa
determinabilidade de todos os modos de exteriorização [ÄuBerungswiesen] humanos
pelo hic et nunc do
ser-propriamente-assim histórico-social de seu surgimento tem como consequência
necessária que toda reação humana ao seu meio ambiente sócio-econômico, sob
certas circunstâncias, pode se tornar ideologia. (LUCÁKS, 2013: 465).
No
sentido de forma de elaboração da realidade para a práxis humana consciente, a ideologia pode apresentar-se em defesa
do status quo ou contra esse. O nível
de conflitos e os projetos das classes sociais e a consciência de classe
definirão seu caráter reacionário ou progressista, ou mesmo sua transposição,
ou releitura para contextos diferenciados. O evolucionismo de Charles Darwin,
no mundo da natureza, projeta-se em expressão avançada, no mundo da ciência,
estabelecendo ruptura com a compreensão anterior do mundo dos seres vivos, mas
o mesmo não ocorre com o darwinismo social (transposição do darwinismo para
compreensão e análise da sociedade), o qual justifica o status quo e induz a práxis
da dominação. Lukács acentua que “os adeptos liberais de Herbert Spencer
transformaram o darwinismo em ideologia do mesmo modo que fez o séquito
reacionário do darwinismo social no
período imperialista” (LUKÁCS, 2013: 468).
A
memória não é pura, nem é neutra, mas contaminada, preconceituada, como diz
Damásio (2011). Não decorre apenas da sensação imediata do ver, ouvir, tocar,
cheirar, mas igualmente do observar com todo o fundo cultural que pessoa ou
grupo possuem. E isso é mais aplicável quando se trata de algo social,
compartilhado, referenciado a uma realidade humana, como é o caso da memória
compartilhada. Aqui a experiência humana de agir e reagir, os interesses de
classe, o nível de contradições, etc, impõem seu condicionamento, que conviverá
com as reações da memória individual.
A
ideologia é componente do ser social e por isso a memória a carrega em seu caráter
compartilhado. Mesmo individualmente isso ocorre, mas de forma diferente, pois
a memória individual não é ideologia, por que esta pressupõe atributo
superestrutural. Em relação ao caráter igualmente ideológico da memória
compartilhada (elementos ideológicos dessa), pode-se afirmar o que em relação
às formas de elaboração ideal da realidade disse Lukács: “no âmbito do ser
social nada pode ocorrer cujo nascimento não seja decisivamente determinado por
esse mesmo ser social” (2013: 466).
A
História tradicional, escrita para ser a memória de determinada sociedade,
hipostasia o caráter ideológico da memória dita coletiva, ou da memória
nacional: os feitos dos grandes homens motivados pela idéia. Nas celebrações
(lugares de memória?) aparece o motriz ideológico com o que se faz a leitura,
ou se interpretam, os eventos memoráveis, como ocorre com o nacionalismo:
Insistindo
nas especificidades culturais, quando não mesmo acentuando-as, os dirigentes
nacionalistas procuram, em primeiro lugar, demarcar o mais possível o seu povo
dos outros a fim de conferir uma plena legitimidade às suas veleidades de
independência política. A promoção da cultura da Ucrânia, da Bulgária e da
Letônia inscreve-se assim numa lógica de modelação identitária e de protesto contra
a ordem imperial dos Habsburgos, dos Osmanlis e dos Romanov. Do mesmo modo, a
exaltação da cultura negra, árabe ou hindu tinha como objetivo reatar com um
passado frequentemente denegrido pelo colonialismo, ao mesmo tempo que criava
simultaneamente um distanciamento em relação ao Ocidente, indispensável ao
sucesso político dos movimentos de libertação nacional no Terceiro Mundo.
(DIECKHOFF, 2000: 44).
A
memória compartilhada, enquanto viva na consciência dos contemporâneos, não
exclui o conflito, as lutas de classe, aquilo que da língua disse Bahktin: ser
não um presídio, mas uma arena de combate. Em torno de que memória será legada
aos que vão nascer, trava-se o combate ideológico para seu estabelecimento. Que
memória deve ser legada aos pósteros importa em dizer que memória foi legada à
geração presente para que esta a compartilhe e que memória esta legará para que
os que vão nascer compartilhem. Esse quefazer será traduzido em livros,
imagens, invenção de tradições, dentre outros meios.
A memória que se quer legar para
compartilhamento entre os membros da sociedade pode ser imposta pela história
oficial ou pelos modelos de comemorações, dentre outros meios. As comemorações
do Sete de Setembro legadas pelo Estado Novo aos estudantes, no modelo marcial
pensado pelo ministro Capanema, tinha conteúdo e forma inevitavelmente do
nacionalismo armado, e bania qualquer menção a tudo que não conduzisse à
uniformidade definida previamente da maneira de encarar o evento: “o pedido
para que o Príncipe ficasse, a decisão deste de ficar e de proclamar a
independência”, com suas alegorizações, e figurações de grupos étnicos que
viviam harmoniosamente. O oficialismo, desmentindo a realidade do processo,
ingressava nas escolas com suas razões comemorativas e nessa com a memória que
queria compartilhada nacionalmente.
Mas
a memória que se quer compartilhada pelas gerações futuras, na moldagem de
tradições construídas, pode ser negociada por grupos com seus interesses.
É
o que ocorre nas comemorações iniciais de eventos marcantes. Foi o que ocorreu
com a data magna da Bahia.
E, com efeito:
Expulsas
que foram as forças portuguesas de Madeira de Melo, desfile dos diversos
exércitos ocupou as ruas da cidade do Salvador e depois, anos após anos,
tratou-se de organizar o desfile do Dois de Julho, que lembra o 2 de julho de
1823, a chamada Independência da Bahia:
Logo no ano imediato, os patriotas resolveram festejar a
data gloriosa com brilhantismo.
Para isso lançaram mão de uma carreta tomada aos lusitanos,
nos combates de Pirajá, enfeitaram-na de rama de café, fumo, canas, folha
brasileira (cróton), etc e sobre a carreta colocaram um velho mestiço,
descendente de indígenas.
E assim conduziram do Largo da Lapinha ao Terreiro de jesus
o carro e emblema da ocasião, juntamente com o inolvidável carro de bagagem, ao
som de pandeiros, violas, aclamações delirantes, fanfarras, etc. Em 1825,
repetiu-se o festejo do ano anterior. Em 1826, porém, encomendaram os patriotas
ao escultor Manuel Ignácio da Costa, um carro alegórico ao assunto.
O artista desempenhou-se da incumbência, apresentando o
carro atual, cujas rodas são as mesmas tomadas aos lusitanos para levarem a
efeito os festejos anuais do triunfo. O esbelto Caboclo ornado de penas, aljava
e setas, simboliza o Brasil livre, esmagando a tirania, representada pela
serpente, que arfa e se estorce sob os pés do indígena, que, com a mão direita
crava no animal ervada taquara e com a esquerda empenha galhardamente o
estandarte nacional. (QUERINO, 2009: 57-58).
O
autor, Manuel Querino, descreve o restante alegórico e os desfiles, com o mesmo
carro, nos anos seguintes. No entanto dá relevo às negociações entre comissão
dos festejos e o governador (comandantes das armas da Província) quanto aos
preparativos do 2 de julho de 1849: é que houve proposta para que fosse retirada a estátua do caboclo, considerada
humilhante para os portugueses, e em seu lugar fosse entronizada Catarina
Paraguassu, proposta partida do comandante das armas da província, português
naturalizado. O caboclo não devia sair no desfile, em seu lugar sairia uma
cabocla. A comissão dos festejos não aceitou a proposta e manteve a alegoria do
caboclo, embora depois o fizesse acompanhar de uma cabocla.
As alegorias, o desfile de um grupo de
soldados vestidos como vaqueiros (representa um pelotão de voluntários armados
e mantidos durante a guerra de independência pelo Pe. Brayner – os Encourados
do Pedrão), etc, continuam, mas parte da população de Salvador e visitantes
exercem a criatividade em cartazes, palavras de ordem e cantos políticos.
A
tradição do 2 de Julho, em sua forma inventada, sempre esteve acompanhada de
conteúdo político – ideológico.
Nas
tradições inventadas, memórias compartilhadas mantêm algum núcleo inicial, mas
atualizam-se de acordo com interesses ideológicos daqueles que controlam as
respectivas comemorações. Nelas emerge com força a ideologia que permeia a
memória compartilhada, seja o aspecto tradicional das pompas, da posse de um
Presidente da República ou a entronização de um soberano.
O
lembrar compartilhadamente por parte da sociedade ou de grupos dessa espelha
suas condições econômico-sociais com os conflitos decorrentes das
diferenciações dos agentes quanto à posição que ocupam em relação aos meios de
produção, e dela não se encontram ausentes: alienação, reificação e ideologia.
Quando um grupo entende que a evocação é necessária para fortalecer o status quo, mesmo em nível simbólico, e
para justificar determinado tipo de mando, lança-a para o futuro como memória
que irá explicá-lo.
É a vontade de história.
Vontade
de historia que permeia a sociedade, quer vontade de lembrar, quer vontade
fazer-se lembrada: uma historia- memória que abre contradição – é aquela
realmente vivenciada com a visita aos museus, com as datas memoráveis, com os
festejos, as pompas da celebração, mas que
preenche campo de representações, não o campo da ciência abrangente da
sociedade: o estudo dos homens contextualizadas nos meios e no tempo. Mas quando é possível fazer das
representações História, essa já não será memória compartilhada, pois deverá
desnudar-se das explicações meramente ideológicas, alienadas ou reificadas e será
contextualizada sócio-economicamente.
Não
se trata de decretar a morte da memória com a emergência da História, mas de
entender que: é inevitável para o historiador a memória objetivada; com seus
produtos ele trabalha. A própria memória pode ter a sua crítica e a sua
História.
6.
COMPARTILHAMENTO DA MEMÓRIA USO IDEOLÓGICO DA MEMÓRIA COMPARTILHADA
6.1.
Compartilhamento da memória
A
memória, em sua inevitabilidade quanto à consciência, porque é atributo desta,
serve à contradição. Sem ela seria impossível a retenção e a evocação de dados
indispensáveis à ciência, à aproximação da verdade, ao raciocínio lógico e
mesmo à feitura da obra de arte. Uma vez imobilizada, será utilizada de forma
contraditória com aquela desejada por aquele que a gravou: uma carta documentará
forma de escrever, o estágio da língua, um fato, uma proposta, etc.,
contrariando aquilo que foi desejado pelo autor, e outros sentidos lhe serão
atribuídos.
Guardamos
na memória as palavras e seus sentidos, as experiências certas e as erradas, os
ensaios, fórmulas, etc., ou os criamos para evocá-los e usá-los na construção
desde o texto ficcional à mitologia, até sistemas filosóficos e ciência. É
inesgotável a operação da consciência para inventar, reinventar, modificar,
opor remendos, contraditar e contradizer, e tudo isso se realiza com a
inafastável memória.
Há
mesmo quanto à obra de arte quem entenda, como Pierre Francastel (1973), que
há, ao lado de outros raciocínios, o raciocínio estético, a exigir a memória em
sua operacionalização. E muitas vezes é a obra de arte que a guarda.
Aristóteles (1980) avisou que memória e intelecto são coisas diversas, mas não
advertiu a nenhum de seus possíveis leitores que um não encontrasse na outra
pressuposto. Não há possibilidade para a compartimentação entre eles, exceto,
como fez o Estagirita, do ponto de vista lógico-conceitual.
Assim
é, porém contraditoriamente: a mente evocará fantasmas com os fantasmas de sua
fantasia, mas construirá o conhecimento científico. Utilizar-se-á do código
comum para expressar suas evocações e para melhor reter os dados do mundo
sensível, no entanto debruçar-se-á para interpretar dados dos quais julgava
haver apreendido o sentido.
E mesmo poderá, na fantasia dos alquimistas,
por acaso chegar a uma descoberta. A mente curiosa guarda e evoca sempre.
Quando
a memória se imobiliza em suportes, ou se objetiva, está aberto o espaço para
múltiplos usos diferenciados daqueles que estiveram em sua origem; não só usos
diferenciados, mas finalidades divergentes. U’a memória forte, como ocorre com Guernica, a lembrar a atrocidade da
guerra civil em cidade basca, poderá causar efeito diverso daquele pensado por
Picasso e seus comitentes.
Em
relação ao registro e à evocação há um negar constante, na vida da sociedade. A
memória individual pode tornar-se coletiva, mas há lembranças que
originariamente já o são, isto é, memórias que decorrem de vivência do grupo:
qualquer tipo de vivência, participando de eventos, sendo espectador, tomando
conhecimento de algo, participando de um mundo do trabalho, vivendo igual
cotidiano. São muitas as possibilidades de memorizar coletivamente, ou de
compartilhar memória. E de qualquer forma, a memória individual é
histórico-condicionada. O homem não escapa de ser um “conjunto de relações
sociais” (MARX, 2007: 534). Vê-se que não há u’a memória totalmente individual,
pois o homem encontra-se situado numa cadeia de interações e sua memória tem
uma função que só pode desenvolver-se em razão de sua vida em sociedade.
Importa,
para a finalidade deste texto, ver a aventura da memória compartilhada, seu
sentido, seu uso abusivo ou não.
Há
memórias intensamente compartilhadas, que já são vivenciadas como rotina ou
como hábito. Decorrem de experiências correspondentes a ocupações, modos de
vida, estilos de vida, trabalho, espaço doméstico, etc. Mas há outros que não
possuem essa estrutura de compartilhamento. Há experiências sentidas e
lembradas por todos, pelas quais todos passam, como a morte de um próximo, ou
muitos passam, como o casamento, o nascimento do filho, etc., que não podem ter
a estrutura da memória incorporada com hábito ou rotina. A participação em
projetos comuns ou em situações de risco geram memórias bastante coletivas.
Num estudo da relação memória-história podem
esses tipos de memória galgarem primeiro plano, como numa história do cotidiano
ou das rotinas do mundo do trabalho. Mas há memórias compartilhadas que, sem
excluir a vigência do compartilhamento das memórias já incorporadas como
hábitos e rotinas, têm outra estrutura, como é o caso da memória compartilhada
de uma greve, uma revolta, uma guerra, uma barricada, etc. Se fosse o caso de
utilizar-se o conceito de fato histórico com o seu caráter individual,
poder-se-ia dizer que esses eventos geram memórias compartilhadas em momentos
que são únicos, porém pertencentes a um processo histórico-social bastante
envolvente e os registros desses serão objeto de múltiplas interpretações, de
divergência, de lembranças diferenciadas. Aquilo que é evento evocado como
movimento de vândalos, pode ser lembrado como revolta contra o capital ou como
movimento que expressa a crise.
O compartilhamento ocorre de forma
diferenciada nos modos de produção onde ele é dado: não se pode esperar exceto
na fantasmagoria, u’a memória predominantemente étnica compartilhada no modo de
produção capitalista, especialmente em seu momento globalizado, quando uma rede
mundial de computadores nos faz partícipes de comunidades virtuais ou
testemunha em tempo real de fatos, imagens, falas, etc.
A
forma extensiva de enunciar a diferença de compartilhamento da memória a partir
da diferença de modos de produção e, nesses, de formações econômicas, não pode
excluir consideração meios, processos e lugares onde estes ocorrem. A
comunicação direta entre pessoas, a imprensa, as formas abertas e clandestinas,
as mensagens na internet, os livros, etc, são meios, dentre outros, de
compartilhamento. Mas há lugares como os locais de trabalho, a família, a
comunidade, a escola, o sindicato, o partido político, o templo religioso,
etc., onde o compartilhamento ocorre de acordo com os meios disponíveis e o
estágio de desenvolvimento histórico. As formas e mediações são grandemente
abertas, ou são quase únicas, porém eficazes. Não se pode olvidar u’a memória
étnica institucionalizada e transmitida pelos sacos de palavras (griôs), oralmente como o são, porém registrados
para uso de estudo no mundo.
No
entanto, o compartilhamento trará as cicatrizes ou, mais profundamente, as
contaminações da origem das respectivas memórias e, quando institucionalizadas,
essas podem tomar o lugar mais alto no podium:
pode-se pensar nas genealogias que mantêm status,
justificam poder, garantem títulos de proprietários, etc, ou nas histórias
oficiais, todas com os profundos sinais da alienação, reificação, ideologia: é
que esse compartilhamento não é de u’a memória neutra, mas preconceituada, e
abre o espaço para contestações e releituras pelas pessoas envolvidas, ou não,
no compartilhamento, as quais também a contestarão de acordo com sua alienação,
reificação e ideologia, se permanecerem no campo da memória, ou da ficção, ou
com os instrumentais da ciência, se buscarem a História-não-memória.
A história oficial e as diversas
formas da história-memória (crônica, fatos-em-fila, cronologia, etc),
institucionalizam u’a memória compartilhada ou para compartilhamento presente
ou futuro. Nessa tarefa, as idéias dominantes no tempo deixam suas marcas
indeléveis : Euclides da Cunha, ao escrever Os
Sertões, obra que considerava cientifica e esboçada “ ante o olhar de
futuros historiadores”, e em que caracterizou a campanha militar de Canudos “na
significação integral da palavra, um crime”, encontra-se eivado de darwinismo
social, no entanto: “A civilização avançará nos sertões impelida por essa
implacável força motriz da história
que Gumplowicz, maior do que Hobbes, lobrigou, num lance genial, no esmagamento
inevitável de raças fracas pelas raças fortes”. (CUNHA, 1985:86). O autor, para
compreender o fato de a luta ter ocorrido entre filhos do mesmo solo, diz que o
grupo que exterminou os sertanejos de Canudos teve “na ação um papel singular
de mercenários inconscientes”, “armados pela indústria alemã” (p.86).
J. B. Sá, cientista baiano, que nas páginas de
A guerra do fim do mundo, obra de
Mario Vargas Llosa, aparece como personagem, fez estudo sobre os indígenas
camacãs da Bahia, declarando-lhe grande simpatia, mas entendia debalde os
esforços para salvá-los do extermínio. Ele diz: “Triste espetáculo, que
confrange todos os corações com as dores e os gritos das vitimas; só o filósofo
contempla-o da serenidade de sua consciência, sine odio, nec amore, como movimentos imprescritíveis da dinâmica
biológica!” (SÁ, 1894: 219).
Toda a
memória feita será marcada para ser compartilhada, ou a memória compartilhada,
na forma como foi relatada por um contemporâneo, será marcada pelas idéias
dominantes do tempo. Euclides da Cunha, quanto aos sertanejos de Monte Santo, e
J.B. Sá quanto aos indígenas camacãs da Bahia, pretenderam, além de deixar
registro para o futuro, e o efetuaram contaminados pelo darwinismo social,
fazer ciência. Que a memória de Canudos ou a dos camacãs que, por meio de
leituras, foram compartilhadas por leitores, especialmente os contemporâneos
dos autores mencionados, tenham sido acompanhadas de ideologia dominante parece
não merecer contestação. Com muitos textos desse tipo foi conformada u’a memória
regional ou nacional.
Os cientistas, eles próprios,
curvam-se às idéias e doutrinas de seu tempo. A memória social não se encontra
alheia a esse evocar dos eventos e situações à luz da ideologia, mediação que
oculta e justifica ações e interesses.
Ora,
mesmo os estudos que pretendem estar vinculados à cientificidade transmitem u’a
memória fortemente ideologizada. Certamente que os Sertões é o grande memorial de Canudos e continuará a sê-lo por um
conjunto de qualidades que possui, mas a denúncia que ele faz do crime é
realizada justamente com a ideologia (darwinismo social) que justificou tantos
crimes. João Batista de Sá, por sua vez, fazendo visita científica aos camacãs,
cheio de idéias da nefrologia e do darwinismo social, relata a situação de
abandono e decadência daqueles indígenas, mas ao invés de perceber os fatores
socioeconômicos que os conduziram àquele estado miserável expõe visão
comprometida vinda da Europa: Roma locuta,
causa finita est.
A
memória compartilhada a partir daqueles textos, posta em curso nos centros do
saber como parte de memória nacional, está embotada ideologicamente.
6.2. Institucionalização da memória
compartilhada
A
memória compartilhada, uma vez institucionalizada, hipostasia a ideologia.
Reproduzida em monumentos artísticos, em livros adotados na escola e cujo
conhecimento é objeto de avaliação, em artigos e discursos, relatada em cada
comemoração, etc., a memória compartilhada, quer local, quer regional, ou
nacional, circula amplamente, apaga outras memórias, ou, alterada a ordem, já
não servindo a novos fiadores dessa, é substituída. Os currículos escolares com
seus respectivos programas e ementas estão ai para serem atualizados diante de
novos interesses, da grita dos dominados, ou para a formação daquilo que se
convencionou chamar de consenso civilizado. A memória compartilhada simbólica
pode ser legalmente banida se um novo
poder mais alto se alevanta. Lê-se
num livro de História do Brasil para
a 4°série ginasial, que foi bastante adotado nas escolas:
Várias medidas tendentes a fortalecer a unidade nacional
foram introduzidas em 1937. Entre elas, a centralização do poder. Os governos
dos estados voltaram às mãos dos interventores nomeados pelo Presidente da
República. Por outro lado, a nomeação dos prefeitos ficou a cargo dos
interventores.
A bandeira, hino e demais símbolos da República passaram a
ser os únicos permitidos oficialmente, abolindo-se as antigas bandeiras e
emblemas de caráter regional. Um decreto-lei regularizou, ainda, o uso dos
símbolos nacionais. (PEDROSO, 1956: 302).
A
linguagem do texto é reveladora: atos ditatoriais passam a ser medidas tendentes a fortalecer a unidade
nacional. Fim da autonomia do corpo eleitoral para eleger governadores é
considerado volta a uma situação anterior (de quando, do Império?): os governos
dos estados voltaram às mãos dos interventores (figura surgida pós 1930,
abolida em 1934, reintroduzida em 1937).
Não
é definitiva u’a memória compartilhada, mesmo quando institucionalizada. Mas
deixa raízes. Sobre isso, a memória dos professores de História têm muito a
dizer: pense-se naqueles que viveram 1937, 1945, 1964, e que acompanharam os
textos disponíveis ou mesmo os escreveram, ou, em outro contexto, na fala de
Musset:
Morto Napoleão, as potências divinas e humanas estavam de
fato bem estabelecidas, mas as crenças nas mesmas deixou de existir. Há um
perigo terrível em saber o que é possível, porque o espírito vai sempre mais
longe. Uma coisa é dizer-se: isso poderia
ser. Outra: isso foi. (MUSSET,
sd: 13).
A lembrança daquilo que poderia ter sido, já
não conta mais. É um projeto vencido. Mas o impulso destrutivo / construtivo de
uma revolução finca raízes.
Compartilhar a História é difícil, exceto
quando se trata de história-memória. Compartilhar a memória é algo quase que
espontâneo, quando não é imposta nas escolas, igrejas, etc.
A memória compartilhada e
institucionalizada resiste. É combatida pela História, mas resiste. Conta com
governos e classe dominante para continuar seu império e justifica-se com a
necessidade de manter a unidade nacional, preservar a identidade, ou cultivar
os valores de um povo. O Estado pode dar-se ares de neutralidade ou de consenso
civilizado e prometer ensino ministrado com observância do pluralismo de idéias
e de concepções pedagógicas, porque sabe que há todo um aparato representado
por meios de comunicação, editoras, conselhos editoriais, ou seja, uma potência
econômica capaz de, sobre o discurso e desprezando-o, dizer o verdadeiro desejo
do poder.
E a memória compartilhada da classe
dominada é esmagada.
Mesmo academicamente, a memória, que se quer compartilhada,
veste-se de armadura, lança em riste, derrota a adversária. Assim, u’a memória
criacionista, fortemente estabelecida, sagrada, sobrevive em centros do
saber-poder diante dos ataques, ou justificada pelo pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, num discurso que
não aparta a ciência do mito, nem faz a ciência do mito para desmitificá-lo. Os
exemplos do combate da memória contra a História, ou da história-memória contra
a História são muitos. Um exemplo bem disponível é o caso que envolve Nelson
Werneck Sodré e Joel Rufino dos Santos em face de Américo Jacobina Lacombe: o
caso da História Nova, no Brasil: dessa diz Lacombe, dentre outras coisas:
Além de deformar a mentalidade juvenil com conceitos
errôneos e falsos, abomina e despreza tudo quanto aprendemos na maneira de
interpretar a História. Amesquinha o culto cívico e deslustra os mais
memoráveis fatos da nacionalidade (LACOMBE apud
SODRÉ: 1964: 30).
A
perseguição à História Nova e aos seus autores (Nelson Werneck Sodré, Pedro
Celso Uchoa Cavalcante Neto, Pedro Alcântara Figueira, Joel Rufino dos Santos),
com Inquérito Policial Militar, prisão dos autores e censura da obra,
encontra-se relatada em “História da História Nova” (SODRÉ, 1967). A
denominação História Nova, neste contexto brasileiro, não tem o mesmo sentido
que ficou consagrado na Europa ou nos Estados Unidos, pois aquilo que Werneck e
colaboradores buscaram foi a desconstrução da história-memória no Brasil,
apresentando alternativas para compreensão do processo histórico brasileiro de
forma critica.
Deixando-se
guiar por escrito de Italo Calvino, roubando-o do contexto da ficção em que se
encontra, percebe-se u’a memória capaz de retificar a realidade: “Se na memória
do mundo não há nada a corrigir, a única coisa que resta fazer é corrigir a
realidade alí onde ela não coincide com a memória do mundo.” (CALVINO, 2010:
124).
A glória dos memoráveis bandeirantes que
empurraram nossas fronteiras ainda
além da linha do Tratado de Tordesilhas é a memória que absolve o bandeirante
da escravização ou do extermínio dos guaranis das missões, e que apaga
motivações da expansão fronteiriça.
6.3. Uso ideológico da memória
compartilhada
Desempenha
função ideológica a memória compartilhada, especialmente quando se
institucionaliza.
A idéia de nação tem como pressuposto a
memória compartilhada, institucionalizada na memória-história para continuar a
ser compartilhada. A idéia de nação, como um construto ideológico, ou como
“comunidade imaginada” (ANDERSON BENEDICT), traz em si a memória comum do povo, o seu passado comum e, geralmente, a
vinculação com a continuidade. Quando não há um passado comum, se o inventa com
o mito capaz de vincular o passado conhecido com aquele que se desconhece,
podendo ser a fundação de Roma por Rômulo e Remo, a criação de Lisboa por
Ulisses, a origem troiana do povo francês, etc. A partir daí desenrolam-se
fatos, que são historiados.
Uma
das primeiras preocupações para o estado nacional é a preservação de sua
memória e a escrita de sua história no modelo de memória. É necessário dizer
que há uma história própria, um passado comum, um povo bem definido. Se esse
povo não está bem definido, ou se ele decorre de várias origens, ou etnias,
isso não é um problema: são raças que formaram a nacionalidade e uniram-se nos
diversos momentos para proteger o solo, a exemplo dos liderados por Felipe Camarão
e Poty na expulsão dos holandeses do Brasil. Essa manipulação aprofunda-se nos
livros escolares e nas escolas. Se antes falava-se em grupos ou raças
formadoras da nacionalidade, agora fala-se na proteção às “manifestações das
culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos
participantes do processo civilizatório Nacional.” (BRASIL, 2008). Em outro
modo de dizer: um país mestiço com sua história branca cuja cultura dos não
brancos precisa ser protegida pelo estado nacional.
Com
a idéia da nacionalidade a política elabora e desenvolve o nacionalismo, mesmo
que tenha que inventar um povo: algo a que é conferida uma unidade sobre
divergências, algo a que se atribui a capacidade de forjar um destino: um nós,
esse povo. A matéria que, junto ao Território e à Soberania, no entender dos
clássicos da teoria política, cria o Estado. O nós, profundamente cindido que, formando contraditória unidade,
exige uma história, na verdade u’a memória: uma história-memória. Marx acentuou
o fato de a História encontrar-se intimamente ligada à existência do Estado.
A memória compartilhada tão importante para a
idéia da nacionalidade, e para a noção de uma unidade primordial humana (povo) num território, soma-se à lei, à
religião, à escola, à família, às instituições, enfim, para reforçar o poder e
sublinhar a identidade, a diferença diante do estrangeiro: o que faz do
brasileiro, do alemão, do argentino, serem o que são: algo dotado de identidade
própria, da especificidade, mas: do esquecimento daquilo que seria uma
identidade de todos: a humanidade, a essência, que caracteriza o ser humano. A
memória compartilhada entre integrantes da população do estado nacional é o
componente que a justifica. A memória fundaria a identidade do povo.
Ora, isso remete à justificação da
guerra.
É inevitável dizê-lo.
A
memória compartilhada, nascida pelo simples fato da convivência e dos diversos
modos de interação social, ao ganhar institucionalização, por meio da política
justifica a guerra. Essa, nascida de interesses econômicos, precisa de nuvens
de fumaça para justificar-se ou para não revelar reais motivos. Aqui, é o uti possidetis memorizado para
justificar a tomada de um território, acolá um direito histórico – um legado de
antepassados ou mesmo de um deus, um “sai da tua terra, e de tua parentela e da
casa de teu pai, e vem para a terra que te mostrarei”.
No
entanto, é inevitável que exista a memória compartilhada e essa, integrante que
é da consciência, encontra-se no limite mesmo da sobrevivência do grupo. Como sobreviver
sem que todos se lembrem de como resolveram desafios? Mas, à medida que se
torna um culto, à medida que se institucionaliza com conteúdo autônomo, a
memória compartilhada desenvolve potencial de uso justificador de ações de
classes dominantes e do Estado. Sua função unificadora e identitária não está
revestida de qualquer neutralidade. A identidade nacional | regional esquece a
diferença. Importa falar sobre “berço dos filhos e o túmulo dos antepassados”
(BARBOSA, 1961: 15).
Acompanhada de seus símbolos, dísticos, hinos,
cores e efígies, a memória compartilhada institucionalizada é armazém provido
de bens da nacionalidade e da identidade, que se encontram à mão para lembrar o
alienado pertencimento a um solo, um povo, um percurso: o primeiro – mal distribuído,
concentrado; o segundo – dividido; o terceiro – glorioso, apesar do sangue.
Enfim, uma comunhão, mesmo que ao preço do apagamento de outras memórias.
A
exclusão se estabelece contraditoriamente: o que é divergente é esquecido ou
subsumido em uma finalidade. Então aquilo que identifica ou representa a
unidade sobrepõe-se à razão do conflito e de seus cadáveres, pois era necessário combater o separatismo; eram necessários meios vigorosos para evitar
o esfacelamento da pátria; a reação foi indispensável para repor o equilíbrio
entre forças centrífugas e centrípetas; a civilização se sobrepôs à barbárie,
etc. A explicação justificadora e unitária | identitária não revela os
“segredos internos” (MARX) dos eventos e dos processos. Em certo sentido, é a
continuação da epopeia que, desaparecida da literatura, mantêm sua forma geral
de compartilhar a saga de um povo.
A
exclusão ou o esquecimento cumprem a função esperada da institucionalização de
u’a memória compartilhada ou preparada para ser compartilhada. O que o inimigo
é para a política, a exclusão é para a memória. Ambos levam em conta o outro,
porém o fazem para reforçar instâncias de poder.
Envolvida com os aspectos imediatos e
aparências, fenômeno, por que não se trata de um saber analítico, a memória
compartilhada não se liberta da ideologia, da alienação e da reificação, por
isso exige o culto. Mesmo que ela se refira aos oprimidos: é que a não
penetração no âmago das coisas não lhe permite aprofundar no conhecimento de
suas diversas determinações. Pode haver um saber científico para tratar da
memória compartilhada e de sua institucionalização, mas essa em si mesma reside
no campo da aparência. E, enquanto aparência, é apenas um dado inicial sobre a
realidade. Mas isso não exclui o fato da inevitabilidade da memória para a
ciência, ou de adotar-se um ponto de vista cientifico para a memória
compartilhada tomada como objeto.
A memória compartilhada em si, mesmo que
surpreendentemente seja entendida como síntese (não soma) de memórias
individuais, sempre esteve pronta para permanecer e ser utilizada para reforçar
a ordem, ou quando é compartilhada em grupo contrário à ordem, esta opõe-se a
esse e o sufoca com o discurso da unidade (que pode ser lido como justificador
da ordem legal da exploração de uma classe social por outra), ou com a
institucionalização. As várias memórias compartilhadas, na arena de combate da
sociedade, cedem a u’a delas que estará nas salas de aula, nas comemorações, etc,
e poderá moldar mesmo as formas de evocação da memória, considerada tradição
inventada, como ocorre com muitas celebrações do 1°de Maio, entre sorteios e
música-mercadoria, em alguns lugares, e falas de mudança em outros.
No
entanto, como a luta de classes é continuamente alimentada à medida que são
reproduzidas as relações de produção, deve-se entender que u’a memória
compartilhada por explorados estará presente, também para ser utilizada
ideologicamente como instrumento de mobilização e combate, até que surja a
História que considere os oprimidos.
Alguma
coisa fica para revelar que debaixo da espessa bruma da identidade, unidade,
pátria, nação, etc, encontram-se o conflito real e suas memórias.
A
permanência e o culto à memória podem ser garantidos por uma das formas de sua
imobilização para evocação no presente e no futuro. Howard Fast conta que,
entre as páginas de cada revista e jornal de um clube aristocrático de Boston,
o Atheneum, no dia 23 de agosto de 1927, encontravam-se volantes com o seguinte
texto:
Neste dia, Nicola Saco e Bartolomeo Vanzetti, sonhadores da
fraternidade do homem, que esperavam poder encontrar na América, foram levados
a uma cruel morte pelos filhos daqueles que há muito tempo fugiram para esta
terra de esperança e de liberdade. (FAST, 2009: 235).
É a memória.
É
imediatamente a memória e quem a imobilizou, nos inúmeros exemplares de
volantes, deseja compartilhá-la mesmo com inimigos.
Inimigos americanos.
Compartilha-se
a memória como se compartilha saber e cultura. No entanto, há memória vigente,
como foi dito, de saberes necessários à sobrevivência, de práticas, hábitos,
etc., com correspondentes modos e estilos de vida. É memoria compartilhada que
se vivencia continuamente numa formação econômico-social, enquanto servir aos
objetivos dessa, ou for operacional quanto a suas necessidades. Mas, na
história há que se distinguir as evocações da longa duração daquelas que têm
sua origem em espasmos, como revoltas, revoluções, golpes de estado, eventos
abrangentes, ou mesmo de um processo que se consegue encadear. São lembranças
diferentes. Não se trata de vivenciar no dia a dia de uma unidade produtiva,
por exemplo, aquilo que se lembra e é necessário para reproduzir capital, pois
um evento de que se pode vivenciar terá
sua especificidade. A história positivista falava no fato histórico e na sua
individualidade, irrepetibilidade, em oposição ao geral e repetível fato social.
Embora não se possa centrar a História em a noção de fato histórico e seu liame
de causa e efeito, toma-se aqui essa idéia como simples topo (lugar) para
consignar que é diferente u’a memória cotidiana daquela do evento. Uma se
repete, a outra não, cada evento é diferente do outro.
Um
evento pode até marcar e conformar certos aspectos da realidade para um período
longo: uma ditadura poderá deixar marcas no direito (o entulho autoritário),
traços ideológicos na memória que ela projeta para ser compartilhada
(comemoração marcial nas escolas do Dia
da Independência, por exemplo). Há aquela parte do passado que não quer ser
sepultado: aquilo que Musset caracterizou como “um passado jamais destruído,
agitando-se ainda sobre as próprias ruínas com todos os fósseis...” (MUSSET,
sd: 12). Há portanto, diferença entre o necessário compartilhamento de memória,
como saber, hábito, comportamento, etc, e a memória do evento. No entanto,
pode-se dizer que ambos têm utilidade para o capital, ou em linguagem canhestra
porém direta: servem para ganhar dinheiro. A memória compartilhada não traz em
si somente valor simbólico. Aqui não se está a referir-se apenas a dinheiro
ganho com os livros best-sellers de história-memória,
mas também à função econômica que a carga ideológica da memória desenvolve,
justificando status quo. No primeiro
caso, trata-se da memória que se tornou mercadoria: nos livros mais vendidos de
história, nas revistas de história, etc. No segundo caso, a
memória dos massacres, dos projetos que não deram certo (rebeliões, etc) e a
mobilização da ordem. Mas um dos aspectos econômicos desse uso da memória
compartilhada encontra-se na expropriação: memórias expropriadas.
Há
memórias compartilhadas que são abafadas, são perigosas, não podem vir a lume.
Vivem na clandestinidade. São caladas. Sua possível objetivação em escrito
incidiria no campo do pensamento perigoso.
Não são esquecidas. São vivenciadas no silêncio, ou não saem de um grupo, que
as transmite. O grupo, ele mesmo, não pode expressá-las. No entanto, como que a
reviver a prática dos antropólogos de varanda, alguém consegue, em proveito
seu, de meios de comunicação ou de editores,
falar por aqueles que não puderam fazê-lo, ou que temem fazê-lo. U’a
memória que era vivenciada compartilhadamente, mas que não podia vir à tona na
voz de seus próprios memorialistas, é retirada dai, expropriada, tornada
mercadoria com algum rótulo que faça referência a: revelação de um fato desconhecido; relato proibido de....; segredos
revelados etc. A vivência da memória que não podia extrapolar fronteiras,
uma vez devidamente expropriada de seu grupo, vira mercadoria, na forma de
ficção-história, história-memória.
É que à memória objetivada não é
estranha à economia.
A memória escrita para ser compartilhada
possui por diversas vezes o motivo frio do cálculo e do lucro. Mas não se pode
olvidar que por idênticas vezes conduz o conteúdo estético: a emoção. Aqui os
sacrifícios e feitos audazes de Anita Garibaldi; acolá, um dragão negro do mar
(João Cândido) que diz não à chibata; ou um Lopez derrotado bradando
epicamente: “Morro com minha pátria e com a espada na mão”.
A
memória compartilhada é ficcionável e (como tudo) a ficção a torna ainda mais
compartilhável. Essa ficção não poucas vezes é que a fixou, como foi dito
quando se tratou do texto ficcional em relação à memória. E isso também
demonstra o caráter contraditório que a memória compartilhada possui: o uso da
ficção para construí-la ou mantê-la. Uma não-assim memória. Ela é acessível:
pode ser comprada. É como a reação da personagem de Margareth Atwood diante do
cartaz do planetário: “Elisabeth acha consolador o fato de que mesmo as belezas
eternas custem dinheiro”. (ATWOOD, 2005: 86).
E como custam.
Há
obras monumentais que são construídas para manter a memória. Verdadeiros locais
para o seu culto, imponentes e caros, como a mostrar (para induzir) a pequenez
dos oprimidos diante dos canhões simbólicos do poder: as armas dos barões assinalados.
7. registros da memória.
7.1. Fontes e memória – o escrito.
As diversas escritas da História,
dentre as quais aquelas mencionadas em capítulo anterior, trabalham com memória
objetivada em fontes.
O historiador (a obviedade é
desculpável porque é necessária) trabalha a partir das fontes. Afirma-se e assim
é certo desde que se acrescente: com conhecimentos acumulados e métodos. Dentre
as inúmeras fontes que ele utiliza, há algo comum: todas veiculam memória (s).
Todas objetivam a memória. São memórias objetivadas, imobilizadas.
Aqui apenas um tipo é utilizado para
efeito de demonstração: o escrito.
O escrito
é aqui expresso como manifestação da memória – memória imobilizada. A assertiva
não deve conduzir à idéia puramente de memória. Advertido desde Aristóteles,
que distinguiu memória de intelecto (1980), há no escrito muitas vezes mera
narrativa, mas os textos produzidos com finalidade, que não apenas de assentar
para lembrar, são pejados de memória, ou dos quais podem-se abstrair memórias.
Em outras palavras, textos que pretendem ir além do registro ou da
reminiscência, porque apelam ao raciocínio e à construção de um saber
determinado, estão entranhados de memória.
Textos filosóficos ou científicos
existem com a condição de existir memória: feitos com linguagem que seus
autores aprenderam e da qual se lembram, utilizando as regras da lógica
corrente em sua época, da qual se recordam, ou mesmo refutando-as para erigirem
outras; não há fuga da memória porque esta é indissociável da consciência que,
por sua vez, se expande à medida das transformações das práticas dos homens e
de suas buscas, entre si e com a natureza.
Nesse sentido, a memória imobilizada
porta diversas memórias além do próprio texto, ou produtos da memória. Muitas
vezes isso não é percebido, pois sua apreensão depende de investigação. Quando
se leem textos de várias épocas, num idioma determinado (o português, por
exemplo), percebe-se alteração na maneira de escrever a palavra, na forma da
letra, etc. isso remete à memória de cada tempo, às alterações “espontâneas” ou
àquelas impostas por lei, o desparecimento ou a permanência de palavras no
texto, que correspondem igualmente à preservação, ou não, de palavras na
lembrança. Esse raciocínio pode conduzir a outras memórias, como aquelas
relacionadas à produção da tinta, esquecidas ou banidas. Mas não se pode
esperar linearidade nesse tipo de consideração porque mesmo as palavras mudam
de sentido e há momentos ou contextos em que esses sentidos excluem ou podem
conviver e são lembrados em apenas um deles, ou nos dois.
A maneira de como homens e mulheres escreveram
é a forma de como se lembram do que deveriam escrever, porque, mesmo que
queiram transgredir normas de linguagem aprendidas, precisam das palavras de
que se lembram. Para destruir cânones da escrita, necessita-se da escrita
lembrada e de suas palavras.
É, assim, inevitável que se encontre sempre a memória no
transcurso do trabalho dos homens, aí entranhada até que o fruto desse trabalho
desapareça da sociedade e só possa ser buscado com a pesquisa e essa, no
entanto, dirá que aqueles seres possuíam meios de reter na memória e de
reproduzir, por essa via da lembrança, os processos com os quais produziram.
Por isso que o entrelaçamento entre memória e História é mais complexo de que
as formulações produzidas por muitos autores. E, aqui, pode-se ainda advertir:
história considerada como o suceder de gerações com suas técnicas e suas
relações produtivas (ciência do homem no tempo, diria Bloch), ou história
considerada como conhecimento do homem no tempo: história saber e história
vivência; História e história.
É a memória da substância da história,
a partir da materialidade das fontes e da vida concreta que não dispensa reter
e evocar.
Pouco importa que os historiadores falem, para efeito da
construção de seu saber, em fontes da história, pois sempre encontrarão a
memória, num dos sentidos de que essa se reveste. E mesmo que, elaborando
cientificamente seu conhecimento, os historiadores distingam (como alguns o
fazem) História e memória, como campos do saber, não evitam a memória: põe-se a
questão: apreender com a memória ou/e apreender além da memória.
Isso significa dizer que é da essência
do conhecimento, todo ele, a presença da memória, mas é possível a separação de
campos do saber, teoricamente, definindo métodos próprios, objeto e leis. O
esforço dessa distinção disciplinar pode obscurecer ou não as relações entre História
e memória, especialmente quando se trata da memória coletiva. Será válido, no
entanto, apurar-se sentidos da palavra e deixar clara a inevitabilidade, na
vida concreta, da memória.
Sem pretender conclusão, pode-se dizer
que o desdobramento da memória (mesmo da memória imobilizada) em tantas
memórias corresponde à estrutura da vida social, não se podendo transgredi-lo
quando se estabelecem campos do saber.
A memória imobilizada em textos é
pressuposto do desenvolvimento científico. Não o único, mas o é.
7.1.1. O
escrito e a História
Afirmou-se,
linhas atrás, que o escrito é memória imobilizada (forma de exteriorização da
memória, um dos sentidos de que se reveste o vocábulo memória; não está em si
mesma). Quando a memória se exterioriza em escrito, ela ganha autonomia em
relação à pessoa que memorizou e exteriorizou sua lembrança. E é essa autonomia
(por fundamental que seja a pessoa) que mais de perto interessa ao historiador,
embora alguns não o percebam. Talvez essa afirmativa possa chocar os que
insistem em demonstrar a indissociabilidade entre o que foi lembrado e quem o
lembrou. Mas é fato. Ver-se-á.
Quando o
rei D. Afonso II de Portugal, em 1214, escreveu seu testamento, o fez, como
esclarece, para que, “depois de mia morte mia molier e meus filios e meus
vassalos e meu reino e todos aq(ue)llas cousas que Deus mi deu em poder sten em
paz e em folgãcia” (in Bagno,
2012:226). Mas a história fará uso do testamento de Afonso II, dizendo sua
autoria, de forma impensável para aquele testador. Historiadores do Estado dele
utilizarão, dentre outras coisas, para falar da monarquia hereditária.
Historiadores da língua, para (além de outras razões), dele utilizarão para
demonstrarem que o idioma português deriva do falar e escrever galego.
Historiadores do Direito terão razão em utilizá-lo com finalidade de escrever
sobre sucessões. A relação seria longa e estender-se-ia para além dos umbrais
da história. Aquele rei, no entanto, nem imaginaria essa autonomia de sua
vontade, para ser respeitada e lembrada. O decorrer do tempo o traiu e
determinou que seu testamento não fixasse “paz e folgança”, pois hoje discutem
os sábios se, diante daquele texto, pode-se falar na origem diretamente latina
de nossa língua, ou por intermédio do galego, além de outras guerras sobre o assunto.
A
autonomia da memória exteriorizada no texto escrito (mesmo se desejada como
memória testemunho) alcança não só situações como aquelas acima assinaladas,
isto é, utilização para outros fins que não aquele para o qual foi produzido o
texto.
Pode-se
oferecer outro exemplo.
O acórdão da Relação da
Alçada, do Rio de Janeiro, datado de 18 de janeiro de 1792, relatado pelo
Chanceler Sebastião Xavier de Vasconcelos Couto, firmado por este, Gomes
Ribeiro, Cruz e Silva, Veiga, Figueiredo, Guerreiro, Monteiro e Gasoso, que
julgou os “inconfidentes mineiros”, é decisão exarada em processo criminal.
Para o Estado e a lei do
tempo, tratava-se de investigar e, provada culpa ou dolo, condenar os “infames
réus” pelo crime de conjuração. Os conjurados são criminosos, cometeram o
delito de lesa majestade, enquanto Joaquim Silvério dos Reis agira com
“fidelidade e lealdade, que devia ter como vassalo” da Rainha Maria I. (Autos da Devassa).
Contra um
dos réus, Joaquim José da Silva Xavier, o Mandado de Enforcamento refere-se à
“Justiça que a Rainha Nossa Senhora manda fazer a este infame Réu Joaquim José
da Silva Xavier pelo horroroso crime de rebelião e alta traição de que se
constituiu chefe, e cabeça na capitania de Minas Gerais, com a mais escandalosa
temeridade contra a Real Soberana, e Suprema autoridade da mesma Senhora que
Deus guarde” (Autos de Devassa). E, a
forma de execução reitera o crime imputado e manda que se preserve para o
futuro a memória do réu:
Manda que com baraço
e pregão seja levado pelas ruas públicas desta cidade ao lugar da forca, e nela
morra morte natural para sempre e que separada a cabeça do corpo seja levada a
Villa Rica, donde será conservada em poste alto junto ao lugar da sua
habitação, até que o tempo a consuma; que seu corpo seja dividido em quartos, e
pregado em iguais postes pela entrada de Minas nos lugares mais públicos,
principalmente no da Varginha, e Cebolas; que a casa da sua habitação seja
arrasada, e salgada, e no meio de suas ruinas levantado um Padrão em que se
conserve para a posteridade a memoria de tão abominável Réu, e delito, e que
ficando infame para seus filhos, e netos lhe sejam confiscados seus bens para a
Coroa e Câmara Real.
Rio de Janeiro, 21 de
Abril de 1792. Eu o Desembargador Francisco Luis Alvares da Rocha, Escrivão da
Commissão que o escrevi. Seb.ão X.er de Vas.losCout.º (BRASIL, 1982, 7: 282).
O
historiador encontra-se diante de documento que lhe serve de fonte. Esse e
outros retratam conflito de interesses, insatisfações, idéias que os
acompanham, exploração colonial, crime e criminosos, etc. etc.
Ali, no
texto, não está presente o “herói”, nem a justa “inconfidência”. A história do
colonizador acentuará o crime de lesa majestade praticado por infames réus. O
historiador nacional, tradicional, já de outro tempo, verá movimento nativista
e heróis.
Que
memória se encontra exteriorizada nas peças mencionadas que, em conjunto com
outras, compõem o “Auto da Devassa da
Inconfidência Mineira”? – São os condenados em razão da conjura infames
réus de crime de lesa majestade, ou “heróis e mártires da Independência do
Brasil”?
Há várias possibilidades
quanto ao uso de referidos documentos, em razão da autonomia da memória
exteriorizada, diferentes dos usos indicados, como exemplos, para o testamento
de D. Afonso II. Agora, trata-se do próprio modo de conceber a história, que
permite ler as memórias exteriorizadas documentalmente de diversas formas.
Uma das
formas de usar o documento (memória exteriorizada, imobilizada) por uma classe
de historiadores é aquela assinalada e recusada por Marx (2007, p. 40), dizendo
por que consiste em explicar a história anterior pela história posterior
(anacronismo):
A história nada mais
é que o suceder-se de gerações distintas, em que cada uma delas explora os
materiais, os capitais e as forças de produção a elas transmitidas pelas
gerações anteriores; portanto, por um lado ela continua a atividade anterior
sob condições totalmente alteradas e, por outro, modifica com uma atividade
completamente diferente as antigas condições, o que então pode ser
especulativamente distorcido, ao converter-se a história posterior na
finalidade da anterior, por exemplo, quando se atribui à descoberta da América
a finalidade de facilitar a irrupção da Revolução Francesa, com o que a
história ganha finalidades à parte e torna-se uma “pessoa ao lado de outras
pessoas”.
Essa
história que vê nas condições posteriores finalidades de condições anteriores,
muitas vezes presentista, anuncia igualmente
o autonomizar da memória, sob outro aspecto, que não aqueles mencionados. Os
“mártires e heróis da Independência” o são porque sua finalidade é o 7 de
setembro, ou Elevação do Brasil a Reino-Unido. Essas ocorrências explicam, pela
finalidade, retroativamente, a conjuração e, ao mesmo tempo, por interesse de
ter uma “Nação”, constrói-se tradição, comemora-se data (21 de abril), etc.
No
entanto, admitindo-se a autonomia da memória exteriorizada para que o estudioso
faça sua escrita da História, pode-se chegar a outra forma de sua utilização. Os Autos da Devassa da Conjuração
Mineira informam situações geradas de um tempo no qual devem ser
contextualizadas: situações da crise do antigo sistema. Não podem ser lidos
fora desse contexto que revela que o capitalismo expandia-se, Portugal e
Espanha permaneciam grandemente marginais em relação ao novo sistema de
produção de mercadorias, o exclusivismo comercial tornava-se insuportável para
a população colonial e não atendia interesse da expansão do capital, conflitos
internos ocorriam, etc. Mas a perspectiva de sua leitura não será o “sonho dos
inconfidentes”, porém as condições reais, o movimento, contradições, interesses
de classes, necessidade de construção da idéia, a partir de condições dadas, de
rebelião, a razão do sonho e sua desnudação ideológica, (liberdade para quem?).
Enfim, uma história não linear, nem presentista
(anacrônica).
Partindo-se
do pressuposto do uso autônomo da memória imobilizada exteriorizada,
independentemente do desejo daquele que a exteriorizou (o testamento, a
sentença), é preciso resolver contradições: afirmou-se que a memória é da
substância da história (em outras palavras a memória é inevitavelmente da
essência do conhecimento histórico e o historiador sempre encontrará memórias
em suas fontes); que os positivistas (escola crítico-documental) e Bloch não
dão espaço para a memória. Isso merece explicação.
Expressões
que tratam a memória evidenciam seu significado para a história: “A memória é o
principal nutriente da história” (Castanho,
2009), “A memória na qual cresce a história” (Le
Goff, 2003), etc. No entanto, afirmou-se que a memória desejada, ou
aquela que se desejou preservar (como no testamento de D. Sancho II, ou na
sentença dos inconfidentes) não é necessariamente a memória na forma como
interessa aos historiadores. Estes tomarão a memória exteriorizada como fonte e
cuidarão de, com ela, cientificamente elaborar conhecimento. Importa que D.
Afonso II tenha escrito (ou mandado escrever) seu testamento? É evidente que
sim. Que ele deixe de ser testamento para ser fonte da história da língua, não
o desloca da memória que se preservou, desejada por aquele rei. A memória está
aí presente, mas nutre (considerada fonte) a história da língua, do Estado,
etc.
A
outra possível contradição entre as considerações aqui feitas sobre a memória e
a assertiva segundo a qual os positivistas e Bloch não dão espaço para a
memória, deve ser esclarecida: é que ambos autonomizaram tanto as fontes e seu
conceito que não as vinculam ao dado primário da memória. Os positivistas dizem
que a história se faz com documentos e para, com esses, escrever a história,
são necessárias crítica interna e externa, não exatamente tratá-los como
expressão inevitável da memória. Bloch, em sua certeira crítica quanto ao
testemunho, declaradamente memória, não percebeu que os outros documentos estão
próximos daqueles por via da memória (de várias memórias, como se disse da
potencialidade do escrito). Sua preocupação em delimitar o ofício do historiador,
como o entendia, do mesmo ofício como imaginavam os positivistas, privilegiou
os marcos nos quais o debate se desenvolvia (ou deveria desenvolver-se), não
cuidando de perceber o que poderia igualmente ser tratado:
memória que não fosse pensada como testemunho, depoimento.
Que, como pretende Castanho (2009) a memória é principal nutriente
da história, deve-se dizer sim, pois as fontes revelam memórias, além de que
escreve-se História para compreender, com os dados da memória, a realidade, mas
igualmente para lembrá-la.
7.1.2. O escrito documental – forma de tratamento.
Anteriormente
se disse do escrito que é manifestação da memória, ou uma de suas formas de
exteriorização. E essa afirmativa conduziu a falar sobre documento. E hoje já é
difícil dizer o que ele seja. O saber cada vez mais se orienta para diversas
especializações, a realidade se enriquece, o que é velho resiste (Cazuza, jovem
cantor e compositor, dizia ver um “museu de grandes novidades”), em novas
condições a ciência se expande.
A
maneira como vêm-se processando a evolução humano – social faz com que o
documento se constitua permanente questão: desde registro rupestre, tabuinhas
de argila, papiro, pergaminho, que são suportes materiais, até os meios atuais,
a questão da materialidade encontra-se na preocupação daqueles que tratam do
escrito, ou daquilo que se acha representado nos diversos suportes. A sua
classificação é igualmente tormentosa, assim como o caráter da informação que o
documento transmite. Uma legião de estudiosos é convocada para expressar-se
sobre ou estudar documentos, tais como arquivistas, historiadores,
biblioteconomistas, hermeneutas, juristas, etc.
Aqui
não se está a discutir os componentes dos documentos, nem as características
desse, inclusive permanência e integridade, ou componentes formais (meios
adotados para a representação), nem os componentes conceituais (autoria,
conteúdo), e muito menos a tipologia (documento real, analógico, digital, etc).
Embora para fins de ilustração |
exemplificação haja menção expressa a conceitos jurídicos de documento, foi
eleito, de forma específica o escrito. Desse não se tomou primariamente como
conteúdo a informação, mas a memória. Essa é primordial: submete-se a
informação à memória.
Os indícios, que são objeto de
revalorização pelos estudiosos da História, não são contemplados aqui, por
conta da eleição de uma fonte (entendida esta como manifestação de algo).
O tratamento do escrito e de outros
registros como manifestação da memória abre espaço para o rompimento com a
hermenêutica centrada apenas no autor (ou possível autor) e aquela que
considera os enunciados como ocos que
devem ser preenchidos (densificados) de acordo com a intenção: normativa,
historiográfica, estética, etc. É evidente que considerar o documento a partir
da memória não exclui, na busca de seu sentido pelo historiador,
contextualização, enquadramento, circunstância de sua reprodução, seriação,
quantificação e outros procedimentos que têm sido adotados pelo cientista da
História.
Assim,
a compreensão daquilo que seja documento, que já vinha sofrendo distinção por
motivo do privilegiamento de sua função, ou uso predominante em cada ciência,
se alargou e, às vezes, distanciou de seu significado originário.
É
o caso do direito: grande distância da noção de documento vai do Código Civil
Português de 1867 ao de 1966. No primeiro, documento é escrito: Art. 2420º: Prova documental é a que resulta
de documento escrito; no segundo, documento tem sua noção ampliada: Art. 362º. Prova documental é a que resulta
de documento; diz-se documento qualquer objeto elaborado pelo homem com o fim
de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou fato. O mesmo pode ser
dito daquela noção se forem comparados os artigos 136, III, a 140, do Código
Civil Brasileiro de 1916, com os artigos 225 do Código Civil atual (Lei 10.046,
de 10 de janeiro de 2002).
Contraditoriamente, o documento no
âmbito jurídico retoma o sentido etimológico: docere (informar, fazer saber, ensinar); mens (memória). Na origem da palavra, se encontra memória. Não é
diferente em história; seu tratamento sofreu mudanças sérias, e a sua
importância dependerá do tema, inclusive, tratado pelo historiador. Do
privilégio do documento oficial e verdadeiro, ao uso expansivo de vários tipos
de documento; do documento isoladamente tomado, que outros confirmam, ao
documento visto em série, em conjunto, interrelacionado, todo e qualquer
documento necessário à inteligibilidade do processo ou de uma determinada
duração. Mas ele continuará docere – mens,
sujeito a interpretações e muitas vezes distante do objetivo que definiu sua
criação.
Quanto à forma de tratar o documento,
Foucault (2000, p.7), verificando a maneira como passaram a comportar os
historiadores, diz:
Ora, por uma mutação
que não data de hoje, mas que, sem dúvida, ainda não se concluiu, a história
mudou sua posição acerca do documento: ela não considera como sua tarefa
primordial, não interpretá-lo, não determinar se diz a verdade nem qual é seu valor
expressivo, mas sim trabalhá-lo no interior e elaborá-lo: ela o organiza,
recorta, distribui, ordena e reparte em níveis, estabelece séries, distingue o
que é pertinente do que não é, identifica elementos, define unidades, descreve
relações. O documento, pois não é mais para a história essa matéria inerte da
qual ela tenta reconstituir o que os homens fizeram ou disseram, o que é
passado e o que deixa apenas rastros: ela procura definir no próprio tecido
documental, unidades, séries, conjuntos, relações.
A síntese Foucaultiana, que será
retomada por Le Goff (2003), não implica despojar do documento seu caráter de
memória. Foucault (2003) demonstrou que os positivistas se dispuseram a
memorizar os monumentos (na concepção de monumentos desse autor) do passado e
transformá-los em documentos, enquanto que inversamente os historiadores de seu
tempo comportam de acordo com uma história que transmuda os documentos em
monumentos. O que aqui se deseja acentuar é que a relação de história/memória,
por via do documento, tomado como forma de imobilização (exteriorização) da
memória, sempre estará presente, de forma explícita ou implícita, no trabalho
do historiador, na escrita da história.
Do excurso feito, pode-se estabelecer:
a) que o documento tem tido
tratamento diferenciado pelos historiadores: desde a aceitação total do seu
texto até os procedimentos sintetizados, como se viu, por Foucault, passando
pela diplomática e pelo positivismo com seus modelos; b) a forma de utilização e tratamento do documento acompanha a
doutrina, ou diretriz, dominante no âmbito da história; c) a memória imobilizada no documento poderá coincidir com aquilo
que o autor desejou memorizar, ou não; d)
os historiadores constroem memória histórica (história-memória) a partir de
documentos, inclusive de forma manipuladora; e) documentos, escritos de diversas origens e outras fontes, podem
ter seu tratamento ordenado de tal maneira que com eles se escreve história; f) a memória imobilizada no texto ganha
autonomia e isso permite ser utilizada para a escrita de uma História que não
seja memória, embora com esta imbricada; g)
apesar de todas as possibilidades mencionadas, não se pode excluir do
documento a memória aí imobilizada (mesmo em escrita de História não concebida
como memória).
As afirmativas foram enunciadas para
aquele tipo de fonte que é inafastável da consideração do historiador, e mesmo
eco da escola crítico-documental ainda lê e ouve. O. Doumolin ainda escreve, em
1986: “Escreve-se a história com documento, afirma com razão o positivismo
triunfante. Mediante os documentos, o historiador volta a encontrar a pista dos
fatos, ou pelo menos, testemunhas dos fatos” (in: BURGUIERE, 1986: 242).
7.2.
O texto ficcional: romance e História, literatura de viagem, memórias.
7.2.1.
Romance e História
Até aqui a atenção esteve voltada para
o documento. Pode-se mesmo dizer documento em sentido estrito: o escrito que
reproduz ou representa fato, coisa ou pessoa: escrito que sirva para provar um
fato. Mas a ficção tem interesse para a memória, especialmente para a memória
compartilhada.
Há que se considerar que, no âmbito da
História, o escrito fantasioso, ficcional, encontra-se presente, às vezes com
desdobramentos capazes de impressionar mesmo os leitores exigentes das obras
feitas por historiadores. É evidente, no entanto, que o uso do texto ficcional
pelo historiador muitas vezes se reveste de certa facilidade como dizer que o
acontecimento, ou progresso, é aquele relatado na obra de ficção. Não é difícil
de se encontrarem afirmativas que tomam o escrito ficcional como a realidade
mesma, como se lê, sobre efeitos da crise de 1929 entre os agricultores
estadunidenses, em escrito de Maurice Crouzet:
É o drama destes
pequenos lavradores de Oklahoma despojados pelos bancos hipotecários,
convertidos em meeiro sem suas próprias terras e depois expulsos quando os
bancos fundem suas pequenas explorações, que é descrito em “As Vinhas da Ira”
(CROUZET, 1968: 124).
Certamente que, em As Vinhas da Ira, John Steinbeck não só
descreve aquele drama, mas também lutas dos lavradores; porém o faz
ficcionalmente. Não se trata de tomar o texto ficcional, que pode ser lido em
qualquer tempo, deslocado do fato que o ficcionista tomou como tema, como ponto
de partida ou apoio do trabalho do historiador. Mesmo, como no caso citado,
quando há grande densidade do real, ainda o texto de ficção é fantasia. É que o
que separa a ficção da narrativa histórica é a intenção do autor e a busca de
específicos conteúdos estéticos, estes indispensáveis à ficção.
Com toda a aderência que possa
ter ao real, o texto de ficção não é documento para a verificação do processo
social tal como entende o historiador, com seus próprios métodos e objetivos,
nem pode ser tomado como descrição do real. O objetivo do ficcionista tem
preocupação estética, sobreleva o engajamento emotivo, não se trata de análise.
Isso marca o seu texto profundamente.
Não é caso de dizer que não se
encontra certidão de nascimento ou de batismo da personagem A ou B de um conto
ou romance para desacreditar a ficção que pretende substituir a História ou ser
ela própria documento histórico. A questão é que o documento não é ficcional
para o historiador, mesmo quando é fraudulento.
Mas se é verdade que o texto ficcional
não é documento, também é verdade que o é, no sentido de fonte escrita, de
forma como algo se manifesta.
A
contradição entre o texto ficcional ser e não ser documento resolve-se pela
forma ou especialização de seu uso, não pela exclusão ou princípio de
identidade. O historiador da literatura ou da cultura terá no texto ficcional seu documento. É evidente, sob esse
aspecto – forma de uso e especialização – que todos os textos ficcionais serão
fontes de conhecimento da história da literatura ou da história cultural, logo
documento. Mas a forma de tratá-lo já é bem distante daquela utilizada para o
documento não ficcional. Um problema hermenêutico está posto e pede solução. O ser-não-sendo documento do texto
ficcional encontra igualmente um outro problema: o documento falso. É esse uma
ficção? Sim, porém com um objetivo diferente daquele buscado pelo ficcionista, romancista
ou contista. Nessa ficção – documento falso – não se encontram pressupostos de
ordem estética ou de busca da emoção na forma perseguida pelos artistas da
ficção. O documento falso serve ao historiador a partir da sua falsidade
(objetivos da falsificação, contexto, etc), o texto ficcional do romancista o
serve a partir da própria fantasia sobre o homem e a realidade, por isso é que
um neo-realista, como Steinbeck, se encontra, quanto ao uso de seu texto pelo
historiador, na mesma posição de Kafka que, no sentido atribuído a sua obra,
não é exatamente um realista.
O documento falso não é fantasia,
pois pretende provar fato que inexistiu ou que existiu de forma ou com
motivação diferentes. Trata-se de fraude. A ficção do romancista pode até conter
embrião de uma tese, em seu engajamento, mas não é texto escrito
fraudulentamente (exceto o plágio). A ficção não prova aquilo que é ficcionado,
prova a sua própria existência e, às vezes, a autoria declarada ou não.
Geralmente o texto ficcional propriamente dito (exclusão do documento falso)
tem sido utilizado pelo historiador na forma como trabalham os sociólogos,
quando demonstram condicionantes, por isso que algumas histórias literárias e
culturais apresentam a aparência de textos sociológicos. Obtêm-se, sim,
verdades a partir do texto ficcional, mas não exatamente a partir de sua
ficção: não se nega seu valor para a história da língua, por exemplo, pois ali
estão palavras e construções lexicais e esse dado é uma verdade.
Ocorre que a relativização vigente em
nossos dias alcança patamar que tem permitido assimilar a ficção à própria
realidade, mas certamente esse não é o alcance do método dos historiadores (ou
não deve sê-lo). A verdade da ficção não é a verdade do historiador.
Mario Vargas Llosa (2004), em livro
crítico, acentuou diferenças entre romance e realidade: a) os romances mentem,
mas essa mentira esconde uma realidade – os homens, descontentes, “gostariam de
ter uma vida diferente da que vivem. Para aplacar – trapaceiramente –surgiu a
ficção. Ela é escrita e lida para que os seres humanos tenham a vida que não se
resignam a não ter” (p. 16); b) isso não significa que não possamos identificar
nossas experiências com as experiências de personagens construídas em obras de ficção;
c) todos os romances refazem a
realidade, dando-lhe beleza ou piorando-a, e nos acréscimos reside sua
originalidade; d) o romance expressa uma necessidade e quanto mais profunda for
a ficção a expressará mais intensamente, e em maior número serão os leitores
que com ela se identificarão; e) o que decide a verdade ou a mentira em uma
obra de ficção não é o enredo, mas que “ela seja escrita, não vivida, que seja
de palavras e não de experiências concretas” (p. 18); g) os fatos sofrem profunda modificação “ao traduzirem-se em
linguagem, ao serem contados”; h) ao eleger uns sinais e privilegiar outros, o
romancista destrói muitas possibilidades; i) além da modificação que o
romancista imprime aos fatos, há uma modificação também radical representada pelo
tempo, pois a vida não se detém, “cada história se mistura com todas as
histórias e por isso mesmo jamais começa nem termina”. (p. 19) enquanto que a
“vida da ficção é um simulacro, no qual aquela desordem vertiginosa se
transforma em ordem, causa e efeito, fim e princípio” (p. 19) e, se entre a
palavra e os fatos existe uma distância, entre o tempo real e o da ficção
existe um abismo” (p. 19).
Pode-se verificar, tomando as
considerações feitas por aquele autor em “A verdade das mentiras”, que, apesar
da atribuição de semelhança entre as realidades ficcionadas e aquelas sociais,
há um fosso amplo, porém há alguma verossimilhança na identificação que o
escritor faz com o que viu e aquilo que leu, com personagens, situações e suas
angústias. Mas isso não transforma o texto ficcional em verdade e só assumiria
o conteúdo de documento (fonte) em história literária e cultural, porque essa
busca entre outras coisas, construções fantasiosas, e procura-se fazer ciência
também dessa realidade que é a fantasia. A ciência não tem limitação de objeto,
inclusive a História como “conhecimento cientificamente elaborado”. Isso tudo
não deve cercar o trabalho da escrita da História a ponto de excluir alusões ou
analogias.
Em outras palavras: o texto literário
aparece para o historiador como representação de uma realidade, e exige uma
crítica específica para ser por esse utilizado no campo da história literária,
de representações, etc. A história cultural também pretende a verdade, não do
movimento das sociedades ou da realidade factual, mas do mundo simbólico, pois
o símbolo tem pretensão de representar o real. A apropriação artística do mundo
pelo escritor tem seus próprios pressupostos materiais. Cumpre analisar o texto
de ficção, verificar-lhe os pressupostos materiais, situá-lo em sua própria
classe de objeto cultural. Como acentua Kosik (1995):
O homem vive em
muitos mundos, mas cada mundo tem uma chave diferente, e o homem não pode
passar de um mundo para outro sem a chave respectiva, isto é, sem mudar a
intencionalidade e o correspondente modo de apropriação da realidade (KOSIK,
1995: 29).
7.2.2.
Literatura de viagem
Há um tipo de texto que pretende
retratar a realidade, como o relato, que tem sido bastante utilizado pelos
historiadores: trata-se da literatura de viagem, que merece cuidado especial.
Geralmente aí está a voz da metrópole, que não consegue captar exatamente
estruturas em seu relato e se expressa por meio de um discurso que parte de sua
própria vivência, estranhando costumes, objetos, modos de ser em geral, de
outra cultura, informando possíveis leitores quanto ao tempo e espaço de sua
viagem, adicionando alguma pesquisa. Ele não deve ser excluído pelo historiador
e não tem sido excluído como fonte, mas sua crítica apresenta especificidades.
Há geralmente uma razão colonial que o preside. Toda a intenção do texto é
ditada pelo interesse e pela visão do viajante, naturalista ou não. Termos e
conceitos são utilizados de acordo com o discurso formado de fora: encontram-se
bárbaros, selvagens, não civilizados, etc, e para esses se propõe um lugar ou
uma tarefa, como torná-los civilizados, colonos, “educados”, fiéis, escravos,
etc.
Um dos aspectos da crítica à
literatura de viagem é exatamente desnudar a colonialidade que a perpassa. Sem
essa tarefa, o uso da literatura de viagem transformará a representação do
viajante sobre a realidade em essa própria realidade. O historiador educa-se à
medida que introduz na leitura dos relatos de viagem a colonialidade que os
envolve, criticando o olhar do viajante, contextualizando-o histórica e
ideologicamente.
7.2.3. O
Romance Histórico
Mais relacionado ao tema aqui tratado é
o romance histórico, obra de ficção em cujos objetivos encontra-se o de
registrar a história e com isso preservar a memória.
Registrar a história, sem dúvida, mas
a ressalva se impõe: registrá-la não na forma do historiador. Lukács, no
momento em que trata da mudança da concepção da História após a revolução de
1848 e de sua relação com o romance histórico, define o “histórico” do romance em
face do historiador:
...trata-se não de um
assunto interno da história como ciência, não de uma disputa metodológica de
eruditos, mas da vivência que as massas têm da própria história, de uma
vivência compartilhada pelas mais amplas esferas da sociedade burguesa, mesmo
aquelas que não têm nenhum interesse pela ciência da história e não fazem
nenhuma ideia de que houve uma mudança nessa ciência. (LUKÁCS, 2011:2013).
Trata-se portanto, no romance
histórico, de captar vivências sentidas pelas pessoas diante dos
acontecimentos, isto é, de universalizar, a partir de personagens, sentimentos
e experiências no transcorrer da história.
Acentua referido autor que há romances
históricos em que a história é legada a mero pano de fundo, funcionando como
cenário decorativo; no entanto há romances históricos em que os personagens
estão efetivamente vinculados aos problemas da época em que se desenrola o
texto ficcional, sofrendo suas consequências, mantendo vivência com eles:
Tanto Scott como
Tolstoi criaram homens cujos destinos pessoais e sócio-históricos estão
estreitamente ligados um ao outro. De modo que certos aspectos importantes e
universais do destino do povo se expressa ‘diretamente na vida pessoal dessas
personagens. O espírito autenticamente histórico da composição mostra-se no
fato de que essas vivências pessoais estão em contato com todos os problemas da
época, ligam-se a eles de modo orgânico e surgem necessariamente a partir
deles, mas não perdem seu caráter nem a imediatidade dessa vida. Em ‘Guerra e
Paz’, quando Tolstói figura Andrei Bolskonski, Nicolai e Petia Rostov etc., ele
cria homens e destinos em que a influência dessa guerra é sentida imediatamente
nos destinos humanos privados, na transformação exterior da vida e na alteração
do comportamento” (LUKÁCS, 2011:347,348).
Então há importância do texto
ficcional para a história e memória social. Mas a utilização e a forma dessa
variam.
a) O texto ficcional entra necessariamente
como objeto e fonte para a história cultural, geralmente na forma de
representação ou como objeto socialmente condicionado para compreensão de um
dos componentes da história humana (diversas formas de compreensão, leitura e
representação do percurso histórico). Seu tratamento como “texto” não será o
mesmo que o historiador dará ao texto-documento;
b) O texto ficcional, fora da
história cultural (representações, mentalidades, etc), pode ser entendido como
vivência compartilhada (como no romance histórico), que expressa a maneira como
grupos da sociedade entendem a história que se processa (não a história
ciência), de imediato.
Muitos ficcionistas fizeram pesquisas
em documentos para elaboração de seus textos, mas o seu interesse não era
exatamente a história como ciência, mas o processo histórico como eles o
sentiram para a intenção ficcional. Ao historiador interessa prioritariamente o
processo histórico. No entanto, as narrativas bem elaboradas, que muitos
conseguiram, terminaram por ser introjetadas como verdade pelos leitores, com o
apelo forte do texto bem construído, mantendo uma preocupação com a história e
a memória. E muitos leitores conhecem determinados acontecimentos a partir de
texto de ficção. Distantes da pesquisa e da ciência, leitores são captados pela
ficção e a maioria desses certamente não saberá distinguir, a partir daquele
texto do romance, entre o que é verdade e o que não é. Guerra e Paz (Tolstói), A
Guerra do Fim do Mundo (Llosa), Subterrâneos
da Liberdade (Amado), O Senhor Presidente (Asturias), Eu, o Supremo (Bastos), dentre outros,
são obras que inevitavelmente transmitem aos leitores, no mínimo, marcante
experiência da história e da memória.
O escrito ficcional, como visto, é uma
das formas de representar. Forma de representar grandemente desconhecida,
deve-se acrescentar. É que não estão estabelecidas as mediações entre o
ficcionista e a realidade. A imaginação cria um oceano de distância entre o
real e o invento. A fórmula que estabelece ser a ficção modo de conceber o real
sempre será incompleta, por que fica em aberto o processo de como isso ocorre.
Também reduzir esse processo à mímese, para evidenciar a relação com o real,
tende a desconhecer a forte carga criativa mobilizada pelo artista da escrita.
René Welleck e Austin Warren
examinaram o problema quanto às visões clássica e a neoclássica:
Qual a relação que há
entre a ficção narrativa e a vida? A resposta clássica ou neoclássica seria
aquela que apresenta o típico, o universal: o avarento típico (Molière,
Balzac), as filhas infiéis típicas (o Rei Lear, Pai Goriot). Mas não são
próprios da Sociologia esse conceitos de classe? Ou melhor: que a arte
enobrece, ou eleva ou idealiza a vida? Tal espécie de arte existe, certamente,
mas é uma espécie, não o essencial da arte. O novelista não apresenta um caso,
mas um mundo. Todos os grandes novelistas têm esse mundo suscetível de ser
conhecido, que coincide com o mundo empírico, mas que é distinto em sua
consequente inteligibilidade (WELLECK e WARREN, apud Brasil, 1979: 180).
7.2.4.
Memórias. Romance de não ficção
Há textos literários que pretendem
recuperar o real, representando-o, imobilizando a memória, que certamente não
visam à mimese e pretendem expor o real. São as memórias: histórias de uma
vida, “sua vida”, relatadas pelo próprio autor.
As memórias, ou autobiografias (é
difícil distinguir umas das outras) não guardam distância (ou assim pretendem)
com a ficção. São textos que objetivam extravasar o eu: de Santo Agostinho, no
ano 400, com suas Confissões, até as
memórias vindas a lume periodicamente nos tempos atuais.
É possível dizer que as memórias ou
autobiografias mantêm distância com a realidade em razão de sua não
objetividade quanto aos fatos relatados: são por excelência textos subjetivos;
expressam ponto de vista bem pessoal sobre a realidade. Nesse sentido, as
autobiografias, embora pretendam representar o real e não a mimese, não se
confundem com a História, e não são poucos os exemplos de textos
autobiográficos que pretendem ir além da autobiografia e alguns efetivamente a
superam.
Marcadas pela subjetividade (o eu em
primeiro plano, ou o que eu vi), aquelas histórias de vida são eminentemente
ideológicas. Sua utilização pelo historiador cerca-se de cautelas que já Marc
Bloch apontava em seu “O Ofício do Historiador”, antes mencionado.
Diante da defesa de que a ficção pode
ser utilizada pelos historiadores no desempenho de seu ofício (com limitações e
cuidados metodológicos), também há que se estender essa convicção aos textos de
memórias: curiosos textos que, bem subjetivos, às vezes procuram provar um
ponto de vista como, dentre outros, Minha
Infância na Prússia, de Marion, Condessa de Donhoff (2002).
A realidade subjetivada nas “memórias”
para ser apreendida exige redobrado esforço de decifração. O que de imediato
pode balizar a atividade de sua apreensão e análise é o confronto com fontes do
tempo daquelas e o controlado juízo de possibilidade no contexto de sua época.
O trato metodológico do uso das
memórias (memória evocada escrita, autobiografia) guarda grande aproximação com
aquele da história oral por força da forte visão pessoal da realidade que se
encontra naqueles textos e nos depoimentos orais. Isso não quer dizer que os
memorialistas usem completamente óculos
de Pangloss, ou seu inverso, pois há certo controle em seus depoimentos:
muitos fatos são conhecidos pelos contemporâneos do memorialista e, como podem
ser contrariados, sofrem alguma inibição, por certa exigência dos leitores
quanto a não ficcionalidade prometida no título memória.
Para além dos modelos indicados que
interessam aos objetivos do presente texto, o romance de não ficção importa.
Lodge diz em que esse consiste:
Romance de não ficção
é um termo criado por Truman Capote para definir ‘A Sangue frio’: relato
verdadeiro de um homicídio múltiplo e suas consequências (1966). Em 1959,
quatro pessoas de uma família exemplar do centro-oeste americano foram
brutalmente assassinadas, sem nenhum motivo, por dois psicopatas errantes da
classe baixa. Capote investigou a história da família e o ambiente social em
que viviam, entrevistou os condenados no Corredor da Morte e presenciou as
execuções. Então o autor escreveu um relato do crime e das consequências em que
fatos minuciosamente investigados integram-se a uma narrativa cativante que, em
termos de estilo e de estrutura, é idêntica a um romance. (LODGE, 2011:209).
Muitos títulos seguiram-se à obra de Capote,
como Radical chique, de Tom Wolf; A Canção dos carrascos, de Norman
Mailer; A Lista de Schindler, de
Thomas Keneally, etc. Mas a prática fora utilizada mesmo antes de Truman
Capote. O próprio Lodge (2011), cita e comenta História da Revolução Francesa, publicada em 1837, de autoria de
Thomas Carlyle.
Embora os romances de não ficção não
sejam livros de História, contribuem para a formação de u’a memória
compartilhada.
Livros como os Subterrâneos da Liberdade, de Jorge Amado, eram apreendidos como
memória do trajeto do Partido Comunista do Brasil durante o Estado Novo
(1937-1945) pelos jovens comunistas nas décadas de 1950 e 1960, e assim
coletivizada. Os gaúchos têm apreço pelo seu passado tal como
relatado/ficcionado em O Tempo e o Vento,
de Érico Veríssimo.
É que a percepção que existe algo além
da ficção nos contos e romances por parte dos leitores é inevitável, e esse
resíduo é percebido dentro das possibilidades do contexto histórico e do
conhecimento daqueles.
Mas quanto ao texto ficcional, apesar
de tudo o que foi dito em sua relação com a memória e a história, nunca é
demais lembrar Joseph Conrad, citado por Bernadete Limongi, em introdução que
fez a O Coração das Trevas:
Primeiro gostaria de
deixar bem claro uma proposição: a de que raramente um trabalho artístico é
limitado a um significado único e exclusivo, e não necessariamente tende a uma
conclusão definitiva. E isto pela simples razão de que, quanto mais próximo da
arte, mais simbólico se torna. Todas as grandes criações literárias são
simbólicas, é com isso ganham em complexidade, poder, profundidade e beleza (in
CONRAD, 2008:154).
Há evidentemente um campo aberto à
história cultural sobretudo pelas memórias imobilizadas na obra ficcional –
como objeto e representação. De qualquer forma, a obra ficcional tem provocado
compartilhamento da memória, ou criado fetiche nesta. Em certas circunstancias
pode ser entendida como uma mediadora da memória compartilhada, além da própria
(a evocação, pelas pessoas, das obras lidas).
8. CONCLUSÕES
Atribui-se a Políbio a afirmativa
segundo a qual o começo é mais que a metade. A profundidade da assertiva conduz
a que também se possa perguntar se a conclusão não é igualmente um começo em
outro momento da produção escrita do intelecto.
Os
estudos sobre memória hoje têm o seu começo em produções que acompanham o
evoluir da humanidade, desde o período que se convencionou chamar de
Antiguidade até aquelas vinculadas à Neurociência atual.
Para além dos estudos de memória, ou memória
individual, o Século XX presenciou o surgimento de trabalhos que passaram
tratar de memória coletiva, memória social, ou memória compartilhada. A memória
social como que suplantou considerações sobre o volksgeist e o zeitgeist,
espírito do povo e espírito do tempo, que o espírito romântico pretendeu haver
encontrado, ou em certos aspectos, o de cultura, naquilo que diz respeito à
transmissão do saber-lembrança: saber por que lembra, ou compartilha memória e,
como saber transmitido ou compartilhado, dado da cultura.
A
existência de uma memória coletiva, tal como consciência coletiva (do realismo
sociológico), imaginário (de uma derivação do freudismo e utilização por
historiadores), ideologia (no sentido utilizado pelo marxismo), representação,
identidade, dentre outros que ocupam espaço distribuídos em profusão entre
textos de diversos approaches, passou
a ser investigada e objeto de estudos, desde escrito pioneiro já transposta
quase a década de 20 do século passado.
Então,
considerações existem quanto ao caráter da memória coletiva; em relação a como
as sociedades lembram; à forma como o esquecimento social se estabelece; ao
medo do esquecimento; às memórias subterrâneas, etc.
Dentre os problemas que a memória
social (coletiva ou compartilhada) suscitou encontra-se a delimitação de seu
campo em face da história, até mesmo por que esta foi encarada durante muito
tempo (e ainda há quem o faça) como a memória de um povo.
Ora,
quem se abalança hoje a cuidar teoricamente da memória coletiva, ou social, já
encontra um conjunto de trabalhos que fazem do começo do seu próprio estudo mais da metade do tema sobre o qual quer
investigar e discorrer, não bastasse a projeção que a consciência realiza
quando pensa em objetivos que são buscados e hipóteses que ela anima.
É o que aconteceu páginas atrás.
Tendo
contado com acervo de estudos sobre o tema, tendo-se formado com diversas
leituras, mas igualmente tendo imaginado e formulado objetivos, a pessoa é
invadida por sensação de que já possuía mais
da metade quando enceta a tarefa de examinar e escrever sobre determinado
tema.
A memória assumiu a feição de fato social; não
há apenas aquela memória individual, mas o lembrar junto com outros, uma
síntese de várias memórias diante de outro conjunto de memórias: memórias de
grupos. Sob influência do pensamento dukheimiano e aceitando as características
que esse assentou para o fato social, um seu seguidor, mantendo no entanto
originalidade, dentre os fatos da sociedade encontrou u’a memória coletiva, com
as características que são indicadas pelo realismo sociológico para o fato
social: generalidade, exterioridade e coercibilidade. O fato de ter origem
inscrita no cérebro de cada homem não foi impedimento para que se concluísse pela
existência de um tipo de síntese de
memórias surgida em grupo, condicionada pelo viver neste. E quando grupos
geracionais vão deixando o palco de seu mundo, resolvem registrá-la. Mas
sobretudo a memória individual necessita de referências externas à pessoa que
lembra e geralmente completa suas lembranças com o esforço evocativo dos
outros. A vida em diversos grupos, inclusive no estado nacional, é marcada por
acontecimentos de que muitos se lembram, mas apenas por meio da imprensa ou por
testemunho de tantos outros. Sua evocação depende da memória dos outros: u’a
memória que perpassa a sociedade, genérica, exterior, que igualmente nos faz
evocar da maneira como o grupo pensa.
Mas
essa memória de caráter social pode ser reduzida a uma vida subterrânea, não
aparecer na vida nacional, ou na vida de outro grupo, até que certas condições
permitam a sua vinda a tona, pois não lembrar socialmente não significa
esquecer. Isso já é um desenvolvimento dentro da descoberta da memória
coletiva. Como também o é a indagação de como as sociedades lembram e | ou por
que temem o esquecimento. Essas questões, no entanto, não são tratadas no
estudo ora sob conclusão.
Tema
relevante (e instigante) que motivou estudos de memória social, ou coletiva, ou
compartilhada, uma vez posta em curso e aceita a sua noção, foi o de delimitar
campos entre memória e história.
De
início, o próprio criador do conceito de memória coletiva, ainda sob império da
concepção de História dominante (embora essa já estivesse abalada em França)
tratou de delimitar fronteiras entre a memória social, do grupo, e a História:
a memória é um fluxo contínuo que só retém do passado o que ainda está vivo
daquele e por isso capaz de viver na consciência do grupo que a mantem.
Gerações se sucedem e a posterior pode não possuir nenhum interesse pelo
período que a antecedeu. Mas a história é diferente: situa-se fora dos grupos
que se sucedem, introduz periodizações na corrente dos fatos estabelecidos. Mas
não só: há várias memórias coletivas, mas só existe uma História. A História é
una, a memoria é plural. O historiador quando pesquisa detalhes ou um espaço
sabe que se trata de uma única história, pois a história de cada espaço e os
diversos detalhes formam um conjunto.
Uma
questão sobreveio: começou-se a historiar a memória e isso implicou uma
inversão: a memória que era matriz da
História passou a ser objeto da
História. E, então, historiadores passaram a falar em sociedades de memória
essencialmente oral (memória étnica), sociedades de memória essencialmente
escrita, fases de transição, etc. Trata-se de fazer a História da memória e de,
por conseguinte, transformar a memória em objeto da História. O tratamento
anterior, que via a memória em seu aspecto matricial em relação à História, foi
posto em questão no âmbito das humanidades e, nem sempre, com apuro conceitual
e de generalização.
A questão epistemológica passou a ocupar
espaço quanto aos campos específicos da memória e da História e de suas
relações.
Existem, de qualquer maneira, convicções de
que tanto a memória quanto a História buscam aquilo que já não se encontra
presente; que a evolução humana sempre se preocupou em manter instrumentos para
a constituição de uma memória social; que a noção de memória social é válida;
que à medida que historiador apura métodos, cria conceitos próprios e delimita
melhor objeto de seu saber, distancia-se sem negar, da memória como campo de
saber; o ofício do historiador mudou sensivelmente desde o positivismo e ele
não pode ocupar o papel de memorialista.
Ecos
de convicções e da disputa no campo epistemológico persistem para indicar que a
memória é algo vivo, mantida por grupos que vivem, sujeita tanto à lembrança
quanto ao esquecimento, é sempre atual, está enraizada no concreto, no lugar,
no gesto, em imagens e objetos, e é absoluta, enquanto que a História
reconstrói aquilo que não mais existe; representa o passado, que recupera, com
análise e crítica; é universalizante, vincula-se a continuidades temporais, às
evoluções, às relações entre as coisas e nega, com o relativo, o absoluto da
memória.
Tudo
isso não impede apreciação que considere a inexistência de uma diferença
ontológica entre memória e História, e que funde a memória em noção de
fidelidade: sempre se crê que algo aconteceu e essa crença se estabelece diante
de testemunhos orais e de imagens do passado.
Postas
em rápidos traços a questão da memória, que se compartilha, e a disputa que
busca delimitar campos (História / memória), é preciso dizer que:
O
positivismo, tendo avançado até alcançar definir ou delimitar ofício do
historiador, estabelecendo a hermenêutica-documental para fins históricos,
intentou dar status cientifico para a
História, mas construiu uma história-memória comprometida com o estado nação.
Dos estudos de Marx e Engels e daqueles
que seguiram seu método de análise surgiu a configuração de uma História que
tem referência na estrutura da sociedade e nos conflitos que aí ocorrem. A
importância da referência dos fatos ao ser social e não ao espírito, e
submissão deste àquele, a perspectiva de encarar a realidade em seu movimento e
de verificar as contradições reinantes no meio social e seu caráter; a análise
da realidade social para apreender-lhe as múltiplas determinações e obter
síntese; as mediações entre o todo e as partes; a verificação da necessidade;
os homens fazendo história em condições dadas, a fixação do caráter da
ideologia, o desvelamento da alienação e da reificação, o caráter contraditório
do processo histórico, conceitos de modo de produção e formação econômica, de
superestrutura e infraestrutura, são aspectos importantes para a teoria da
história. O marxismo oferece instrumental para analise da memória social, como
o feito em seus traços maiores, anteriormente, neste texto.
A Escola dos Anais em sua primeira fase traz
contributo, especialmente com suas achegas metodológicas e críticas pertinentes
ao positivismo, que devem ser considerados no estudo da memória social. Em sua
fase última – a da História Nova – alcança tornar a memória objeto da História
e, na sua história cultural, chega a estabelecer diferenciações entre Memória e
História, criticar o caráter memorialístico da história positivista e denunciar
o caráter sagrado da memória e sua vinculação ao Estado Nação e, no âmbito da
história cultural, aponta para a necessidade de destacar a memória em relação a
seus lugares e da possibilidade da fala a partir desses lugares de memória, em
seus aspectos material, simbólico e funcional, que operam simultaneamente em
graus diversos. Essa idéia de lugares da memória significa afirmar-se que não
há memória espontânea, que arquivos, museus, etc, não devem ser tomados como
memória, e que se a memória já não vive no interior das pessoas, ela necessita
de suportes no exterior. O Estado nação é a sua memória ou não é. Sua
identidade é garantida pela memória.
Memória
historiada e denúncia da memória, busca de distinção de campos, e a forma de
apreender a memória social, são o pano de fundo da preocupação atual,
decorridos tantos anos da cunhagem do conceito de memória coletiva e de suas
variantes.
O
exame da memória coletiva, social ou compartilhada, estudada a partir de uma
perspectiva do materialismo histórico, como aqui se intentou, considera, sim,
que há diferenciação de campo entre História e Memória, entenda-se a memória
social e compartilhada, mas que elas se relacionam a partir do produto dos
homens e só pode ser entendida com origem em bases materiais dadas.
Inevitável é esclarecer.
O
dado inicial é o fato da consciência: memória é atributo da consciência e há
uma dialética em que da consciência decorre a memória, mas essa a potencializa.
A formação da consciência decorre da vida em sociedade e é na busca da
sobrevivência que ela de pouco a pouco vai-se moldando. Para isso é fundamental
o trabalho. Nesse processo de sobrevivência, o homem denomina coisas, aprende,
aplica o que aprendeu de forma consciente e com a escrita imobiliza a palavra
para melhor sobreviver.
O
homem cria conscientemente, mas não se pode confundir o produto com o produtor,
pois aquilo que é produzido ganha autonomia. A fala uma vez imobilizada
(escrita), convencionadas as denominações das coisas, é produto da atividade
social do homem, de sua memória. Não é, no entanto, memória tout court, embora a represente. Ganha
autonomia. Este não-ser-sendo memória permitiu duas coisas: chamar o produto
(por exemplo, o documento) de memória, mas dar-lhe uso diferente daquele que
lhe deu quem o produziu. É memória, mas é a prova de algo. É memória, mas é uma
fonte de história; é memória mas é uma norma jurídica; é memória, mas indica o
estágio de evolução de um idioma, etc. Em determinado momento é a memória de que fração da terra pertence a alguém
privadamente; noutro momento que o homem é senhor de outro homem. Disso tudo se
faz memória e é do entorno do homem e de suas realizações que memórias são
registradas pela fala perante todos ou por escrito. São as memórias possíveis,
transmitidas e evocadas oralmente (dai falar-se em memória predominantemente
oral) ou gravadas em suporte exterior ao homem (escritos, objetos).
A
depender da complexidade das relações com a natureza e das relações que os
homens travam entre si, a memória abarcará mais dados que serão utilizados, ou
menos. Completa esse elaborar da memória a imaginação, pois essa também pode
ser mantida (memória retentiva) e evocada (memória evocação). Os homens
lembrarão de acordo com as possibilidades de sua consciência, mas esta é
situada historicamente.
Os
homens além de lembrar individualmente, necessitaram de lembrar juntos –
lembrar socialmente: é preciso lembrar de como se partilha a caça e a pesca, de
como se planta, de como se constrói um artefato, e depois – de quem é o dono da
terra, lembrar de quem é livre e de quem é escravo, de quem governa, etc. Disso
todos devem lembrar, inclusive da origem: é escravo por que assim foi
transformado pela guerra, ou foi objeto de escambo; é dono da terra por que
primeiro dela tomou posse, etc.
Os
homens trabalham e exploram juntos e travam relações de produção entre si,
relações que podem ser entre iguais, entre senhores e escravos, servos da gleba
e senhores, burgueses e operários, ou outros que concretamente a história
aponta, como ocorreu no antigo modo asiático de produção, e de sua vida
relacionada têm memórias. Estas sofrem múltiplas determinações a partir de uma
base formada pelos meios de produção, forças produtivas, processo de trabalho,
sobre a qual ergue-se uma infraestrutura formada pelo Estado, instituições
jurídicas, concepções filosóficas, religiosas, etc. Não há memória corrente,
viva, referente a um modo de produção em outro diverso, salvo persistência de
um traço ou outro que foi herdado do anterior, como ocorreu com a sirga feita
por mulheres, na Inglaterra, quando já estava estabelecido o capitalismo, ou
traços de relações atrasadas no campo em certas formações econômicas. Mas mesmo
aí a memória social dominante se refere à totalidade ou a grupos sociais,
dentre os quais as classes sociais. Quando hodiernamente se fala em
democratizar a memória, preservar a memória dos trabalhadores, etc., está-se
levando em conta essa realidade, mas igualmente os fenômenos que a intermediam,
por isso que se fala em memória religiosa, por exemplo, atentando para u’a
mediação. O mesmo se pode dizer da literatura, mitologia, etc, que produzem
mediações entre o meio social e a memória compartilhada.
A
memória social, compartilhada, encontra-se eivada pela alienação, pela
reificação e pela ideologia.
É
que a atividade dos homens e dos resultados dessa transformam-se objetivamente
em força suficientemente autônoma, que os domina, opondo-se a eles que, ao
invés de sujeitos ativos do processo social, tornam-se seu objeto. É, dentre
outros, o fato do trabalho alienado, trabalho que se objetiva em mercadoria, a
qual se opõe ao homem; trabalho que é essencialmente humano, mas que passa a
pertencer, como força de trabalho, a outro, que o adquire como a qualquer
mercadoria; trabalho que se objetiva em produto, que se opõe ao trabalhador. Ou
mesmo no caso da autoatividade do cérebro humano e suas criações, como na
religião em que, criado um deus, a este o homem submete-se, pois que aquele
toma vida independente e o domina.
Mas
pode o grau de alienação tornar-se maior, como no caso em que relações sociais
são vistas como relações entre coisas, uma desumanização. É o caso de
admitir-se valor intrínseco ao ouro, quando essa atribuição é feita em razão do
processo de produção; ou considerar o juro como remuneração do dinheiro, quando
se trata de uma forma de exploração; ou mesmo quando a burocracia trata as
pessoas como peças de uma engrenagem.
Tanto
a alienação quanto a sua forma agravada, a reificação, fazem a mediação entre
realidade e memória, tornando-a alienada, como, por exemplo, na memória a
serviço do trabalho, ou na memória conformada pela reificação burocrática ou
nas ditaduras. Preconceituada que é a memória, a alienação e a reificação a
conformam ou a contaminam, a depender do grau de sua influência e do
desenvolvimento civilizacional.
A
ideologia por sua vez, como idealização do real para dar consciência aos homens
em sua práxis, também media a memória. A ideologia é apreensão do real pelos
homens para que estes conscientemente combatam por seus interesses. A
ideologia, assim, pode ser uma reconstrução espiritual da realidade ao avesso,
isto é, que não corresponda exatamente à realidade, ou uma construção adequada
a essa, porém sempre dotada de generalidade, pois não há ideologia individual.
Só há ideologia quando uma visão de mundo ou do tempo histórico adotada conscientemente
pela práxis humana permeia a sociedade.
O
impacto da ideologia em relação à memória social é intenso e muitas vezes essa
a recobre ou a motiva, como é o caso, dentre outros, do nacionalismo e seu
produto maior a historia-memória: que cria um povo, define o território deste e
lhe indica suposta identidade.
Marcada
por ideologia, a memória social desdobra-se em usos: a atribuição de uma
unidade ou identidade a um povo, um grupo, uma etnia, etc; o fortalecimento do
Estado com a ideia de nação, ou pátria; o obscurecimento da consciência dos
oprimidos pelos opressores; a conservação da ordem; a proteção do capital.
As determinações e mediações da memória social
também assaltam o historiador e suas concepções e métodos para a História e, ao
lado do esforço cientifico para a compreensão do homem no tempo e em seus
contextos, há uma história - memória, que não consegue libertar-se dos grilhões
dos interesses de classe e das idéias dominantes.
Necessário
é, para além dessas questões, porém considerando-as, fixar ainda uma síntese
quanto à tormenta que domina a fixação de campos distintos – História e
memória. Nutriz da História seria a memória; matriz da História e não seu
objeto seria a memória. Mas esse conflito na forma de encarar cada campo pode
ser desfeito, afirmando-se que o fato de a memória ter-se apresentado com
aspecto matricial em relação à História não impede a sua historicização, isto
é, a sua transformação em objeto, pois, no tempo, individual e socialmente, os
homens lembram e tentam ou conseguem legar memória a gerações vindouras, e a
história apreende o homem no tempo com suas lutas e realizações.
É
evidente que as distinções têm sido feitas epistemologicamente, mas podem sê-lo
a partir da essência: é que uma coisa é o processo objetivo dos homens no
tempo, coisa distinta é a memória que se faz disso, mas esse processo é
apreendido pela consciência da qual a memória é atributo essencial. Nessa
apreensão consciente e metódica, o historiador utiliza-se de memória
imobilizada, isto é, objetivada, e o fim que a objetivação da memória buscou
pode não ser o mesmo que o historiador atribui: um testamento será a memória da
sucessão de bens desejada pelo testador, mas para o historiador é mais que isso.
Ele não evoca, estuda à luz da ciência. Ele mantém liberdade diante da memória
objetivada, indo além do desejo do memorizador, e denuncia a memória
institucionalizada.
Pode-se
completar dizendo que a memória possui dois instantes: a retenção e a evocação.
O cientista da História, nessa condição, trabalha com o segundo momento da
memória (evocação) de acordo com seus registros, isto é, com a memória
imobilizada, objetivada, porém condenado à utilização de sua memória individual
para o fim de construir saber a partir daqueles registros, de seu esforço
intelectual e dos instrumentos disponíveis em seu tempo.
Que
a História tenha se confundido com a memória e tenha mesmo, num momento
crucial, se realizado como história-memória, não é estranho: as ciências se
constroem de acordo com as possibilidades do tempo. Por isso nada é definitivo.
Tudo flui. Tudo. A História e a memória fluem,
por isso devem ser imobilizadas em estelas. Ainda que estejam imobilizadas, as
consciências delas tomando conhecimento, as farão fluir.
9.
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