terça-feira, 7 de abril de 2015



TESE DE DOUTOURADO


Para obter em pdf  copie e cole o link abaixo

https://drive.google.com/file/d/0BxMNpdpzm_slMDFfRGF6eXlSVFE/view?usp=sharing


UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA
PROGRAMA DE MESTRADO E DOUTORADO EM MEMÓRIA, LINGUAGEM E SOCIEDADE



RUY HERMANN ARAÚJO MEDEIROS




MEMÓRIA COMPARTILHADA E HISTÓRIA: ENTRE ALIENAÇÃO E IDEOLOGIA.














Vitória da Conquista/BA
2015













MEMÓRIA COMPARTILHADA E HISTÓRIA:
ENTRE ALIENAÇÃO E IDEOLOGIA


Tese apresentada ao Programa de Mestrado e Doutorado em Memória, Linguagem e Sociedade, como requisito obrigatório para Conclusão do Curso.

Orientador: Prof. Dr. Sérgio Eduardo Montes Castanho
Co-Orientadora: Profa. Dra. Ana Palmira B. S. Casimiro












2015


© by Ruy Hermann Araújo Medeiros, 2015.


 








Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca....................

Bibliotecária – CRB-

M h
Medeiros, Ruy Hermann Araújo

História Compartilhada e Memória: entre Alienação e Ideologia/ Ruy Hermann Araújo Medeiros. – Vitória da Conquista, Bahia – UESB – Doutorado em Memória, Linguagem e Sociedade, 2015.
145p.

Orientador: Sérgio Eduardo Montes Castanho
Co-Orientadora: Ana Palmira Bittencourt Santos Casimiro
dTese (Doutorado) – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Programa de Pós-Graduação em Memória, Linguagem e Sociedade.

1.V. da Conquista – Memória – História. 2. Teoria da História. 3. Alienação. 4. Ideologia. 5. Crônica. I. Castanho, Sérgio Eduardo de Montes. II. Cassimiro, Ana Palmira Bitencourt Santos. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Programa de Pós Graduação e Memória, Linguagem e Sociedade – UESB. III. T

CDD



 

Título em inglês: Shared Memory and History: between alienation and ideology


Keywords: History, Memory, Shared Memory, Immobilized Memory, Mode Of Production, Alienation, Reification, Ideology, Institutionalization Historical Materialism.
Área de concentração: História, Sociedade e Memória.
Titulação: Doutor em Educação
Orientador: Sérgio Eduardo Montes Castanho
Co-Orientadora: Ana Palmira Bittencourt Santos Casimiro
Data da qualificação:26/02/2015
Programa de Pós-Graduação: Memória, Linguagem e Sociedade
e-mail: ruy-medeiros@uol.com.br




 

MEMÓRIA COMPARTILHADA E HISTÓRIA:
ENTRE ALIENAÇÃO E IDEOLOGIA

BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Prof. Dr. Sérgio Eduardo Montes Castanho
(UNICAMP)
Orientador
____________________________________________
Profa. Dra. Ana Palmira B. S. Casimiro
(UESB)
Co-orientadora
____________________________________________
Profa. Dra. Ana Elisabeth Santos Alves
(UESB)
_____________________________________________
Profa. Dra. Mara Regina Martins Jacomelli
(UNICAMP)
____________________________________________
Prof. Dr. José Alves Dias
(UESB)
______________________________________________
Prof. Dr. José Claudinei Lombardi
(UNICAMP)
SUPLENTES
_____________________________________________
Prof. Dr. José Luís Sanfelice  
(UNICAMP)
______________________________________________
Profa. Dra. Lívia Diana Rocha Magalhães   
(UESB)


                                                              DEDICATÓRIA




















 A
Alberto Medeiros Pereira
e
Antonieta Araújo Pereira
(Medeiros),
meus pais.
        In memoriam








AGRADECIMENTOS


Mais que agradecimento, registro minha gratidão ao Professor Doutor Sérgio Eduardo Montes Castanho pela orientação prestada de forma profícua, ética e amigável. Com ele aprendi muito.
A Nelci, Kátia, Mário, Ruy (neto), e Rebeca declaro a mesma gratidão por haverem compreendido a vontade sexagenária de continuar estudando.
Com muita vontade de fazê-lo, consigno gratidão aos Professores Doutores Ana Elizabeth Santos Alves, Rita de Cássia Mendes Pereira e José Alves Dias.
Muitíssimo grato sou a você, Daniela Miranda, colega.
Não deixo de agradecer,  nem posso deixar de fazê-lo, a Daniela (Dany) Moura e ao grupo de pesquisa coordenado por Ana Palmira, que possibilitou a  discussão da parte mais substancial do presente trabalho, e pelo estimulante convívio intelectual. Igualmente sou devedor de agradecimentos, que externo, às coordenadoras do Programa de Pós- graduação em Memória, Linguagem e Sociedade da UESB, Lívia Diana e Conceição Fonseca. Aos professores José Claudinei Lombardi (Zezo) e Mara Jacomelli sou grato pela disponibilidade demonstrada quanto à participação na banca examinadora de doutorado referente à presente tese, fato que me envaidece.
Gratidão especial, gravada para durar, revelo à Professora Doutora Ana Palmira B. S. Casimiro, co-orientadora desta tese. Além de sua grande colaboração no decorrer do curso de pós-graduação, incentivou incansavelmente a elaboração deste trabalho.   
Muito obrigado a todos.











 










Chega mais perto e contempla as palavras.
cada uma
tem mil faces secretas sob a face
e te pergunta, sem interesse pela resposta
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
(Carlos Drumond de Andrade,
Procura da Poesia)

Choveu memória onde em pedras devera
estar a mente presa e sepultada,
dormindo escura, qual ouvido à cera
entregue para a surdez fria do nada.
                                       (...)
Choveu memória no que em mim me pesa
Afivelando o tempo do meu instante,
Onde eu devera, livre do momento,
Haver entregue eternamente ao vento
Minha memória já de mim distante
(Nauro Machado, Nau de Urano, soneto 122).








RESUMO

Memória compartilhada e História: entre alienação e ideologia, tese de doutoramento, trata basicamente da delimitação de campos do saber – História e memória – e da relação entre memória compartilhada e o ser social, diante das intermediações na forma de alienação, reificação e ideologia, e do fenômeno de sua institucionalização. O autor defende o ponto de vista segundo o qual a objetivação da memória em determinado suporte material tem consequências cruciais para a relação História/memória e por isso os estudos devem levar em consideração a memória objetivada. Segundo o autor, é possível não apenas uma delimitação epistemológica entre aqueles campos do saber, porque ontologicamente pode-se obtê-la. Isso é possível porque uma coisa é o processo objetivo dos homens no tempo e coisa diferente é a memória que se faz disso, mas esse processo é apreendido pela consciência da qual a memória é atributo essencial. Nessa apreensão consciente e metódica, o historiador utiliza-se da memória imobilizada, isto é, objetivada, e o fim que a objetivação da memória buscou pode não ser o mesmo que o historiador atribui. O historiador não evoca, estuda à luz da ciência. Ele mantém independência diante da memória, indo além do desejo do memorizador, e denuncia a institucionalização da memória compartilhada. A História confundiu-se com a memória (embora seja diferente desta), em diversos momentos do percurso de seu estabelecimento como saber, e realizou-se inclusive como história-memória, mas as possibilidades criadas pelo acúmulo de conhecimentos já permitem que seja estabelecida a demarcação entre aqueles campos de conhecimento. Com isso o autor concorda e aponta resposta possível para a questão.
Palavras chave: História. Memória. Memória compartilhada. Memória imobilizada. Modo de Produção. Alienação. Reificação. Ideologia. Institucionalização. Materialismo histórico.








ABSTRACT

“Shared Memory and History: between alienation and ideology”, it´s a PhD thesis that, basically, deals with the delimitation of fields of knowledge - History and memory - and the relationship between shared memory and social being, in the face of intermediation in the alienation form, reification and ideology and the phenomenon of its institutionalization. The author defends the point of view that the objectification of memory in certain material basis has crucial consequences for the relationship between history/memory and, because of that, the studies must taken into account the objectified memory. According to the author, it is possible not only an epistemological distinction between those fields of knowledge, because ontologically we can get it. This is possible because one thing is the objective process of the humanity in time, and another thing is the memory that forms about it, but this process is seized by the consciousness that the memory is an essential attribute. In this conscious and methodical apprehension, the historian uses the immobilized memory, that is, objectified memory, in the order that the objectification of memory sought cannot be the same as the historian attributes. The historian does not evoke, he studies by the light of science. He maintains independence from memory, going beyond of the desire of memorizer, and denounces the institutionalization of shared memory. History confused with the memory itself (although it is different), at many moments of the route of its appropriation as knowledge, including as history-memory, but the possibilities created by the accumulation of knowledge already permit for the setting of demarcation between those fields of knowledge. Therewith the author agrees and points possible answer to this question.

Keywords: History. Memory. Shared memory. Immobilized memory. Mode of Production. Alienation. Reification. Ideology. Institutionalization. Historical Materialism.








SUMÁRIO
1.INTRODUÇÃO................................................................................................................... 12
2.PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS............................................... 17

2.1.Antecedentes.................................................................................................................. 17

2.2. Considerações da teoria e do método....................................................................... 25
2.2.1.Consciência: o marco inicial..................................................................................... 25
2.2.2.Considerações do Método......................................................................................... 27

3.MEMÓRIA E HISTÓRIA.................................................................................................... 32
3.1. Campo da Memória. Visão preliminar........................................................................ 32
3.2. Plurivocidade e qualificação....................................................................................... 35
3.3. A memória imobilizada, a memória animada e a história....................................... 37
3.3.1.Exteriorização da memória........................................................................................ 37
3.3.2.Positivismo e história – memória.............................................................................. 41
3.3.3.A primeira e segunda geração dos Anais e História............................................. 45
3.3.4. A terceira geração dos Anais e memória................................................................ 50
3.3.5. A História oral e a memória....................................................................................... 58
3.3.6. Materialismo histórico e memória............................................................................ 61
4.AS BASES MATERIAIS DA MEMÓRIA SOCIAL OU COMPARTILHADA.............. 68
4.1.Memória, trabalho e modo de produção..................................................................... 68
4.2.Memória e transformação social.................................................................................. 73
4.3.Memória e conservação atual do passado................................................................. 78

5.MEMÓRIA COMPARTILHADA, ALIENAÇÃO, REIFICAÇÃO E IDEOLOGIA......... 82
5.1.Memória e alienação...................................................................................................... 82
5.2.Memória e reificação................................................................................................... ..88
5.3.Memória e ideologia.............................................................................................93

6.COMPARTILHAMENTO DA MEMÓRIA E USO IDEOLÓGICO DA MEMÓRIA COMPARTILHADA 103
6.1.Compartilhamento da memória................................................................................. 103
6.2.Institucionalização da memória compartilhada...................................................... 107
6.3.Uso ideológico da memória compartilhada............................................................. 109

7.REGISTRO DA MEMÓRIA....................................................................................116
7.1.Fontes e memória – o escrito.............................................................................116
7.1.1. O escrito e a História......................................................................................118
7.1.2. O escrito documental – forma de tratamento.................................................122
7.2.O texto ficcional: romance e história, literatura de viagem, memórias...............125
7.2.1. Romance e História........................................................................................125
7.2.2. Literatura de viagem.......................................................................................128
7.2.3.O Romance Histórico......................................................................................129
7.2.4. Memórias. Romance de não ficção................................................................131

8. CONCLUSÕES.............................................................................................................. 134
9. BIBLIOGRAFIA UTILIZADA.......................................................................................... 143


1.    INTRODUÇÃO

         Esta tese trata da memória em seu aspecto social e de sua relação com a História. Seu texto busca explicitar divergências e convergências entre esses campos e, após, discorre sobre o uso da memória social, ou compartilhada, entre mediações da alienação e da ideologia.
        Seu núcleo encontra-se na afirmativa de que a memória compartilhada é condicionada por bases materiais. Em outras palavras importa dizer que ela vincula-se a determinada formação econômico-social. É que a atividade material dos homens, a forma como se encontra organizada a produção o tipo de relação de produção, técnicas, processos produtivos e conflitos disso tudo decorrentes moldam a memória que se compartilha na sociedade. E mesmo não há como pensar em ideias e representações sem memória fundada nas mesmas bases: a atividade material.
        Grupos sociais, família instituições, etc., têm a marca da formação social. E também a possui a memória. No entanto isso, não ocorre linearmente, pois há lutas de classes e de grupos, interesses divergentes, disputas pela prevalência de determinada versão sobre fatos e processos e mediações fortes: alienação/reificação e a ideologia. Além disto, é possível a sobre vida da memória compartilhada, em certas situações quando determinado modo de produção esvai-se.
        O núcleo referido pressupõe igualmente que a História, embora imbricada com a memória (e exista mesmo uma história-memória), com essa não se confunde. Impregnada de memória vige a História, porem com esta demarcando fronteiras: a memória que encontra no documento e no artefato é tratada de forma especifica pelo historiador. Este não apenas evoca, pois busca compreender o processo histórico com o instrumental produzido pela ciência, indo além da memória e mesmo transgredindo esta na forma como fora imediatamente desejada por aquele que memorizou, para alcançar descobertas novas. O historiador pretende encontrar a estrutura elementar do passado e embora se utilize de sua própria memória e da memória com que os homens impregnaram tabuinhas de argila, papiros, pergaminhos, papéis, artefatos, etc., a sua imaginação não é mera lembrança, o seu estudo não é evocação nem mera retenção (memória evocativa e memória retentiva), e desnuda a memória compartilhada quando demonstra seus condicionamentos e denuncia-lhe a institucionalização. O historiador sobre tudo trabalha cientificamente com a memória objetivada.
         O texto encontra-se dividido em capítulos articulados entre si. Foram, no entanto, concebidos de forma temática, ou seja, são temas articulados que possuem certa autonomia de leitura, mas que são tangenciados por conclusões gerais, ao final.
         O item dois desta tese é direcionador, pois cuida de pressupostos, no caso – de pressupostos teóricos e metodológicos cujo referencial encontra-se na concepção da formação social da consciência e no materialismo histórico. Entende o autor que sem o trabalho e a vida em sociedade não haveria consciência, que a memória é atributo inafastável dessa e, no decorrer do desenvolvimento da espécie humana, ela precisou ir além de sua função retentiva interna para exteriorizar-se e esse fato possui larga consequência para os estudos da relação da memória com a História (campo do saber) e da história processo que envolve homem e suas relações no tempo. No entanto, não se pode deixar de entender que são múltiplas as dimensões de uma realidade reconstruída na consciência: realidade complexa exige que sua construção espiritual considere suas múltiplas determinações, em movimento, contradições, interações, etc.
         Uma antecipação maior não cabe no espaço da introdução, mas deve-se informar que o materialismo histórico aqui não encontra nenhum fundamento em mecanicismo de aplicação de conceitos, respostas já encontradas desde o início, presentismo, etc, como algumas leituras e alguns textos sugerem.
         O terceiro item trata da memória, incluindo informações bibliográficas e formas de como a memória foi concebida, inclusive a chamada memória coletiva. Ai já se encontra parte do tema propriamente dito, pois são examinadas as principais correntes teóricas da História e o possível tratamento, ou concepção, que delas pode decorrer do fenômeno da memória social, ou compartilhada. Ficou assentado o caráter contraditório do positivismo histórico que, querendo fundar a História (ciência) construiu memória, a história-memória; a insuficiência da Escola dos Anais quanto ao tratamento do tema, embora já houvesse estudo contemporâneo sobre o assunto; a não convergência dos autores da História Nova (que tem origem na escola anterior, embora seja dessa considerada uma geração); as possibilidades que o marxismo aponta para a compreensão da memória coletiva, social ou compartilhada, especialmente a virada que ele patrocinou na compreensão da sociedade, e nos estudos relativos à ideologia, reificação e alienação, mas especialmente quanto ao método de análise. (O capitulo mencionado corresponde ao item três do presente texto)
         No item de número quatro encontra-se o estudo das bases materiais da memória social ou compartilhada. Ai se demonstra que o condicionamento forte da memória social não é um grupo em si, mas a formação econômico-social com suas mediações, e versa igualmente quanto à relação com o meio social da sobrevivência da memória correspondente a um modo de produção quando outro já o sucedeu. A vinculação da memória compartilhada ao trabalho e à mudança encontra-se ai examinada, assim como a projeção para o futuro de memórias correspondentes ao modo de produção.
         O quinto item trata especificamente de determinações presentes na História (saber) e na memória social: alienação, reificação e ideologia. Esses conceitos, tornados operacionais, foram explicados com extensão julgada apropriada para a fundamentação de sua utilização, pois embora o afinamento conceitual seja desnecessário a uma banca examinadora, nem sempre os leitores de História estão acostumados com eles: em um momento, foram perseguidos pelo poder por incidirem em zona de pensamento perigoso; houve sua larga utilização em textos das décadas de 1950, 1960 e 1970, mas depois o conservadorismo reinante nas academias resolveu evitá-los. Às vezes foram substituídos por discurso, leitura a partir de um lugar, topo, etc. São aqui retomados. A alienação basicamente considerada fenômeno da oposição entre aquilo que o homem cria voltar-se contra si, objetivação, como ocorre quanto à mercadoria (trabalho objetivado) ou, na cultura, a religião: criação humana que termina por dobrar o homem a ritos, deveres, sacrifícios, etc, a um deus. A reificação, salvo aspecto que foi explicitado, no texto deve ser lida como forma mais acentuada de alienação. Já no que se refere ao conceito utilizado de ideologia, esclarece-se que esse foi adotado na forma lucaksiana (de Lukács), isto é, forma de elaboração ideal da realidade que se destina a dotar a práxis social humana de consciência para agir. Isso significa que tanto a leitura ao avesso da realidade, quanto outro tipo de leitura desde que, conscientemente adotada, sirva à pratica social, é ideologia. Isso exclui caráter individual do conceito de ideologia: mesmo que uma grande ideia seja projetada por um indivíduo, ela só se torna ideologia se for socialmente adotada. As condições de alienação, reificação e ideologia são utilizadas para a investigação da memória e da História.
         Examina-se, no item seis o compartilhamento da memória, sua forma e institucionalização e o seu uso ideológico. Entende-se que toda memória compartilhada de um tempo busca, ou futuramente, os ideólogos constroem, a sua institucionalização, olhando retrospectivamente, para finalidades do presente relacionada ao obscurecimento da realidade ou justificação do poder. 
         O sétimo item cuida da relação  entre o escrito, a memória e a história. Nesse foi necessária a introdução de um conceito que permeia o texto: a memória imobilizada (objetivada), para tratar de maneira mais adequada os diversos escritos e fontes da história. Não se trata de entender teórica e praticamente o documento como algo pensado estaticamente pelo autor ou pelo leitor, que dele fazem uso. Por entender que o texto ficcional é importante para a História (há muitas referências a contos, romances, poesia, etc, em obras de historiadores) e para a memória social, ou compartilhada, houve digressão quanto àquele, especialmente sobre a sua importância para a fixação da memória sobre eventos, processos, ou eventos encadeados.
         A conclusão retoma, em síntese, as questões tratadas e aponta para o fato de que, apesar de dificuldades, a distinção do campo da História em relação àquele da memória não pode residir apenas na epistemologia, como tem sido dito quanto a esse problema. É verdade que a epistemologia tem sido convocada sempre que um novo campo do saber é conformado para fixar-lhe fronteiras que, muitas vezes, são tênues e oscilantes. No entanto, pode-se ponderar que são momentos logicamente diferentes a consideração ontológica daquela prestada pela epistemologia. O processo objetivo da vida dos homens no tempo e a apreensão deste pela consciência da qual a memória é atributo inafastável é uma coisa; lembrar os dados do processo e tratá-lo à luz da ciência e do avanço do saber não é apenas evocá-lo, é compreendê-lo, penetrar-lhe a essência, descobrir leis (mesmo que tendenciais) e atingir a síntese.
         Algumas citações estão longas, mas foi o caminho escolhido para não prejudicar o pensamento dos autores de onde foram recolhidas, e apesar da profusão daquelas há demarcação visível quanto a possível postura eclética: o método de análise espanca o ecletismo.
         A atribuição de caráter pessoal quanto ao tratamento do tema pode ser aferida em relação ao documento como exteriorização da memória, em que esta antecede logicamente a informação, e a consequência da autonomia da objetivação da memória para os diversos saberes (embora o que o autor de um escrito, por exemplo, tenha desejado expressar seja importante), pois a intenção científica no uso da memória exteriorizada afasta-se grandemente do memorialista, e sobre essa base, a interpretação toma outros aspectos e se liberta da hermenêutica positivista centrada no autor, ou possível autor, e daquela que vê nos enunciados ocos que devem ser preenchidos pela interpretação de acordo com as intenções do uso. Outra atribuição de autoria pessoal, intimamente ligada à anterior, é o fato de ocorrer o exame da memória compartilhada a partir da estrutura social: o ser social determina a formação da memória, porém com mediações. A forma ampla de tratar a memória a partir do materialismo histórico e de envolver dialeticamente sua objetivação para discernir campos de saber (História e memória) certamente deve ser entendida como resultado da presente construção textual.
        Optou-se pelo uso do vocábulo homem para definir o ser humano. Onde ele for encontrado, deve-se ler homem e mulher, obrigatoriamente.

























2. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS.


  2.1. Antecedentes


De tantos escritos sobre memória pode afigurar, de início, temeridade buscar algo de original sobre ela, que não signifique apenas uma forma de dizer as coisas diferentemente das maneiras outrora ditas.
A preocupação acima entrevista tem seu sentido. Dentre os antigos filósofos, na Grécia Antiga, já Platão e Aristóteles escreveram sobre memória. O primeiro, em passagens dos diálogos Teeteto e Filebo (PLATÃO, 1990), o segundo fê-lo mais extensamente em De Memoria (ARISTÓTELES, 1980).
No entremeio de datas que são convencionadas como o fim da Antiguidade e o início do Medievo, Agostinho, em Confissões (1992), trata desse “ventre da alma”. Thomas de Aquino, na Idade Média, dedica-lhe espaço especialmente na parte I, questão 79, artigos 6 e 7 da Summa Teológica (2005).
No século XVII encontram-se, sobre memória, contribuições de Hobbes, no seu De Corpore, Spinosa, na Ética, além de escritos de Leibniz e Locke. No século seguinte, Wolff e Kant trataram do tema, enquanto que no primeiro terço do século XIX, Hegel também considerou o tema. Esse mesmo século presenciou o surgimento, em 1885, da primeira obra decorrente de pesquisa de Psicologia experimental sobre memória, devida a Hermann Ebbinghaus.
Então é cediço o tratamento do tema, que encontra, nas idades e nos séculos, quem dele trate. No entanto, obra mais densa iria demorar a aparecer. No final do século XIX, Bergson produz obra marcante, assim considerada: Matéria e Memória. Outros títulos e autores se sucedem.
Atualmente, filósofos, historiadores, neurocientistas e antropólogos se debruçam sobre memória, modificando o perfil de estudos que até o século XIX quase que exclusivamente foi delineado pelos filósofos.
Enfim, tanto se escreveu e se escreve sobre memória, em seus diversos aspectos, que a impressão de “mais um texto” é inafastável e chega geralmente na forma de pergunta: algo de novo pode ser dito sobre memória?
O autor do presente texto entende que sim. O pensamento não é estático. Uma visão crítica e intelectualmente denunciadora conseguirá encontrar, nos usos da memória, em intersecção com História, alienação e ideologia, um sentido que lhe indique novos caminhos e que, nesse esforço, demonstre a relação da memória com a História. Não só.
Quanto ao objeto, cumpre distinguir o que realmente é memória, em relação a seus suportes, suas múltiplas relações: imaginação, grupo social, história, trabalho, lugar, ideologia, alienação, reificação e seus diversos usos. Os “objetivos” desse esforço intelectual ─ a que se remete o leitor ─ afinam a temática do presente trabalho.
Inclui-se na temática não a memória dita pura (como se houvesse), mas memória envolta na realidade circundante, na ficção, na ideologia, na reificação e na alienação. Memória situada, portanto.
Como foi dito, cediça é a preocupação com a memória.
Inevitável é a citação de obras da Antiguidade Clássica Grega. Platão marca a literatura sobre a memória nos textos (diálogos) Teeteto e Filebo (PLATÃO, 1990).  Aí já se encontram definidas as formas de manifestação da memória que serão utilizadas posteriormente por muitos autores: a conservação de sensações (memória retentiva) e a reminiscência (memória evocativa). A discussão sobre memória aí aparece em razão da necessidade de responder o que é a ciência, apartando-a do simples aporte de sensações: “A ciência não repousa em impressões, mas no raciocínio exercido sobre elas” (PLATÃO, 1990, p. 923). Nesse diálogo (Filebo), já aparece a figura da “cera" na consciência apta a receber impressões; em algumas pessoas, cera mais abundante, em outras em quantidade menor, em umas, mais pura; noutras, mais impura, mais dura ou mais suave (PLATÃO, 1990, p. 933). Na “cera” modelam-se sensações e pensamentos, e aquilo que aí está impresso pode ser recordado. Essa figura – cera – não poucas vezes será retomada, por diversos autores.
Aristóteles (1980) trata da memória (Do sentido e do sensível e da memória e da lembrança) e tem o cuidado de distinguir entre a marca deixada pela coisa e a coisa em si. Indaga o filósofo como pode, evocando-se a marca, presente na alma, lembrar daquilo que não está presente. A sua resposta é que a marca deixada na alma pelas sensações é como uma pintura que pode ser considerada enquanto tal e pela coisa representada: coisa e sua representação. Tal como ocorre em Platão (Teeteto), Aristóteles entende a memória em dois momentos: conservação de sensação (a representação e a coisa representada) e a recordação são condições da memória (memória retentiva e memória evocativa). Também essa contribuição estará presente em autores que muito depois trataram da matéria, inclusive a relevância que o Estagirita confere ao caráter ativo da reminiscência: sua deliberação e escolha.
No medievo europeu, Agostinho (Confissões), escrevendo na fase que os historiadores costumam entender como período que se encontra no cruzamento da Antiguidade e Idade Média, retoma os momentos da memória (retenção e evocação) e discorre sobre “os campos e vastos palácios da memória”: a memória intelectual, a memória e os sentidos, a memória e as idéias inatas, a memória e as matemáticas, o fato de a “memória lembrar-se de lembrar”, a lembrança e os afetos da alma” (“memória é como o ventre da alma”), a memória das coisas ausentes, o fato de a memória lembrar-se do esquecimento, a lembrança do objeto perdido, a reminiscência (AGOSTINHO, 1987). Vê-se no texto agostiniano a presença de Platão, o desenvolvimento de ideias que esse já divulgara na Grécia, e como que a diretriz dada pelo mestre.
A lição agostiniana igualmente reverberará, posteriormente, forte no campo da doutrina cristã.
Thomás de Aquino (2001,I), em diversos momentos da Suma Teológica, trata da memória, especialmente em, I, Questão 78, artigo 4 , e a questão 79, artigos 6 e 7 (THOMÁS DE AQUINO, 2001, I, p.447). Em combate às ideias de Avicena, Thomás de Aquino opõe o ensino de Aristóteles, quanto à relação da memória com o intelecto: “As imagens são conservadas não somente na parte sensitiva, mas antes no composto, pois a memória é ato de um órgão. Mas o intelecto, enquanto tal, conserva as imagens, sem a ajuda do órgão corporal” (THOMÁS DE AQUINO, 2005, I, p. 448- 449).
Hobbes, Spinosa, Leibniz e Locke, no século XVII escrevem sobre o tema, considerando a memória como conservação de pequenas percepções que não possuem mais formas de pensamento (Leibniz), sensação de já ter sido sentido (Hobbes), concatenação entre ideias e coisas externas ao corpo (Spinosa).
No século XVIII, Wolff e Kant versaram sobre memória, tendo o primeiro a definido como faculdade, tanto de reconhecer as ideias reproduzidas pela mente quanto as coisas que elas representam; enquanto o segundo insiste no caráter ativo da memória e a distingue da imaginação sob argumento de que a primeira pode reproduzir voluntariamente a representação que lhe é anterior. Ainda na primeira metade do século imediato (XIX) Hegel trata da memória como momento unilateral da existência do pensamento. É também o século XIX que presencia o surgimento de obra fora da tradição filosófica: trata-se do estudo Sobre a memória: pesquisas de psicologia experimental, de autoria de Hermann Ebbinghaus, datado de 1855.
Em 1896, surge a obra Matéria e Memória, de autoria de H. Bergson (1999, p. 156-195) que estuda o papel do corpo para a seleção e representação das imagens e conclui que deve-se distinguir a lembrança pura, a lembrança imagem e a percepção, que não se produzem isoladamente: a percepção não é jamais um simples contato do espírito com o objeto presente, está inteiramente impregnada das lembranças-imagens que a completam, interpretando-a. A lembrança-imagem, por sua vez, participa da lembrança a materializar, e da percepção na qual tende a se encarnar.
O autor de Matéria e Memória entende que o corpo é apenas “instrumento de ação”, que não serve para preparar e explicar uma sensação. Somente pela conservação de hábitos motores pode e corpo “desempenhar de novo o passado” e isso se explica em razão de que o corpo pode retomar atitudes em que o passado irá se inserir, ou então pelo fato de repetição de fenômenos no cérebro prolongarem percepções anteriormente experimentadas e que com isso fornecerá à lembrança sua ligação com o que é atual. O cérebro, diferentemente daquilo que os antigos diziam, não guarda memórias impressas e não contribui para a representação.
Bergson (1999, p. 264) combate a visão de materialistas e idealistas, assegurando que ambos consideram, as mesmas coisas e da mesma forma, aquilo que diz respeito à percepção e à memória, como duplicatas uma da outra. A visão materialista, que tem a memória como epifenômeno, não conseguiria explicar porque “certos fenômenos cerebrais são acompanhados de consciência, ou seja, para que servem, ou como se produz a repetição consciente do universo material que se pôs de início”. O idealismo por sua vez não é capaz de entender que se “me forem dadas percepções, o meu corpo será uma delas”, com o que se repete o dualismo. Materialismo e idealismo, ao desenvolverem a dualidade, terão que perceber o físico e o moral, opondo-os, e com isso sacrificam a liberdade, segundo o autor.
A consciência é capaz de reter memórias antigas e é capaz de organizar o passado com o presente, e, à medida que isso ocorre, a consciência é capaz de criar atos, utilizando a liberdade: “O espírito retira da matéria as percepções que serão seu alimento, e as devolve a ela na forma de movimento em que imprimiu a sua liberdade” (p. 291).
Para Bergson o passado é perpetuado nos mecanismos motores e nas recordações independentes e isso o leva a afirmar que se pode discernir duas memórias teoricamente independentes. A afirmação fez com que Lalande (1993, 662-663) o criticasse por aplicar ao gênero o nome da espécie (memória função psíquica – “reprodução de estado da consciência do passado”, e “conservação do passado de um ser vivo no estado atual deste”), assinalando que o “procedimento tem grande defeito de não por claramente em evidência o verdadeiro movimento do pensamento, e, por conseguinte, é fértil em mal entendidos”.
M. Halbwachs trata da memória coletiva e é o criador desse conceito, depois – e hoje – posto em grande evidência. Trata em seu livro de edição póstuma (Memória Coletiva) da distinção e da relação entre memória individual e memória coletiva. Discípulo de E. Durkheim, de quem segue os passos, em questões de método sobretudo, M. Halbwachs (2006, p. 72) “descobre” a memória coletiva e indica que as pessoas pensam em razão de pertencerem a um grupo. Para ele:

A memória individual não está inteiramente isolada e fechada. Para evocar o seu próprio passado, em geral a pessoa precisa recorrer às lembranças de outras, e se transportar a pontos de referência que existem fora de si, determinados pela sociedade. (p. 72)

Mas ao lado de memória individual há a memória coletiva, que tem limites, como os tem a memória individual, porém não são os mesmos:

Durante o curso de minha vida, o grupo nacional de que faço parte foi teatro de certo número de acontecimentos a respeito dos quais digo que me lembro, mas que só conheci através de jornais ou pelo testemunho dos que nele estiveram envolvidos diretamente. Esses fatos ocupam um lugar na memória da nação – mas eu mesmo não os assisti. Quando os evoco, sou obrigado a me remeter inteiramente à memória dos outros, e esta não entra aqui para completar ou reforçar a minha, mas é a única fonte que posso repetir sobre a questão (Halbwachs, 2006, p.72).

O autor enfatiza o fato de lembrarmos porque participamos de um grupo: lembramos juntos. É evidente a perspectiva sociológica de E. Durkheim a influenciá-lo, quando toma a memória como fato social, pelos caracteres de generalidade, exterioridade e, certamente, coercibilidade.
A concepção do autor quanto à história (necessária para sua discussão sobre a diferença dessa para com a memória coletiva), encontra-se ainda nos marcos de uma história tradicional, embora em sua pátria (França) já estivessem em curso transformações na concepção da história – a demolição da história positivista pelas novas perspectivas da Escola dos Anais.
Para distinguir memória de história, Halbwachs (2006, p. 102-103) evidencia que a “memória é uma corrente de pensamento contínuo”, que não retém do passado “senão o que ainda está vivo ou é capaz de viver na consciência do grupo que a mantém” (p. 102). Ele esclarece que não é o mesmo grupo que se esquece do seu passado, o que ocorre é que dois grupos se sucedem, e o grupo sucessor pode deixar de se interessar pelo período anterior. A História, no entanto, por situar-se acima e fora dos grupos que se sucedem, introduz divisões “na corrente dos fatos, cujo lugar está fixado uma vez por todas” (p.103). Por outro lado, há mais uma diferença: existem várias memórias coletivas, enquanto que a

[...] história é una e se pode dizer que só existe uma história (p. 105), mas isso não pode significar desconhecimento da distinção entre história de um país, de região, etc., por que para o historiador a pesquisa de detalhes (nacionais, locais, de períodos, etc.) é vista como parte de um todo; “é que detalhe somado a detalhe dará um conjunto, que se acrescentará a outros conjuntos e no quadro total resultante de todas essas somas sucessivas, nada está subordinado a nada, qualquer fato é tão interessante quanto qualquer outro, e tanto quanto qualquer outro merece ser posto em destaque e transcrito (HALBWACHS, 2006, p. 105-106).

Os trabalhos de Halbwachs sobre memória até hoje influenciam pesquisadores. Em vida, ele publicou Quadros sociais da memória (1925), enquanto que Memória coletiva veio a lume após sua morte.
         Outra contribuição importante, quanto ao estudo da memória e sua correlação com a história é o trabalho Memória e História (2003), de Jacques Le Goff. Inicialmente publicado como artigos nos 1º, 2º, 4º, 5º, 8º, 10º, 11º, 13º e 15º tomos da Enciclopédia Einaudi e, posteriormente, como obra separada daquela coleção, Memória e História ainda exerce influência sobre estudiosos.
Jacques Le Goff trata da história, seu conceito, seus limites, revisita concepções de história, trata das oposições antigo/moderno, passado/presente, progresso/reação; idades míticas, escatologia, decadência, memória, calendário, documento/monumento.
Naquilo que concerne à memória, Le Goff (2003, p. 419) entende que seu conceito é crucial. Apresenta inicialmente digressões sobre memória no “campo científico global”, embora seu texto Memória seja dedicado mais à memória social.
Referido autor ensina que “o estudo da memória social é um dos meios fundamentais de abordar os problemas do tempo e da história aos quais a memória está ora em retraimento, ora em transbordamento” (p. 422).
Le Goff (2003, p. 423), para o “estudo histórico da memória histórica”, enfatiza as diferenças entre “sociedade de memória essencialmente oral e as sociedades de memória essencialmente escrita, como também as fases de transição da oralidade à escrita. O autor, tomando essa diretriz geral, fixa os seguintes períodos para o estudo “histórico de memória histórica”: a) memória étnica (sociedades sem escrita). b) desenvolvimento da memória da oralidade à escrita; c) memória medieval (em equilíbrio entre o oral e o escrito); d) progressos da memória escrita (século XVI a nossos dias); e) desenvolvimento atual da memória”. Trata de cada um desses “tempos” e, após, fala do surgimento e expansão da história oral, em poucas, porém densas linhas.
Para Le Goff (2003, p.469), é evidente o valor da memória para os estudos históricos. Ele afirma que

A evolução das sociedades, na segunda metade do século XX, elucida a importância do papel que a memória coletiva desempenha. Exorbitando a história como ciência e como culto público, ao mesmo tempo a montante, enquanto reservatório (móvel) da história, rico em arquivos e em documentos/monumentos, e aval, eco sonoro (e vivo) do trabalho histórico, a memória coletiva faz parte das grandes questões das sociedades desenvolvidas e das sociedades em vias de desenvolvimento, das classes dominantes e das classes dominadas, lutando, todas pelo poder ou pela vida, pela sobrevivência e pela promoção. (LE GOFF, 2003:).

O autor (LE GOFF, p. 469) endossa a assertiva de Leroi–Gourhan “segundo o qual a partir do Homo sapiens, a constituição de um aparato da memória social domina todos os problemas da evolução humana”, (p.469) e entende que “a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia”. (p. 469)
O historiador francês chama a atenção para o fato de a memória coletiva ser uma conquista e um instrumento e objeto de poder, e defende que “os profissionais científicos da memória” têm a tarefa de lutar pela “democratização da memória social”. (p. 469)
         A conclusão do ensaio Memória, último do livro (Memória e História) volta a evidenciar o quanto seu autor encontra-se imbuído da convicção da importância da memória, alimentante e alimentada da história: “A memória, na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens” (Le Goff, 2003, p. 471).
Além de contribuir com a sistematização, periodizando sem visão estanque de fases, para o “histórico da memória histórica”, caracterizando criticamente cada período, Le Goff denuncia o caráter não neutro da memória coletiva e a sua serventia a objetivos do poder e das classes sociais.
Paul Ricoeur é autor de a memória, a história, o esquecimento (2007), um de seus últimos escritos. Examina a memória, recenseando diversos autores, para depois verificar as questões da continuidade e descontinuidade, buscando encontrar a dependência ou a ultrapassagem dos historiadores quanto à memória. A perspectiva dos historiadores, segundo o autor, é crítica, quanto ao passado, e por essa razão deve ir além da memória. Os historiadores têm condições de produzir estudos sobre a memória, como as pessoas a utilizaram, em suas comemorações de fatos que julgaram importantes, às vezes abusivamente.
A memória é diferente da imaginação, embora ambas apelem para a noção de imagem e a utilizem. A História e a memória chamam pela imaginação efetivamente, mas isso não importa em dizer que a história se reduza a uma escrita ficcional. Memória se diferencia da imaginação tanto pela intencionalidade (sentido fenomenológico do termo) quanto em relação ao objeto. Ambas buscam aquilo que não se encontra presente – o objeto da memória “é do passado” (aqui Ricoeur retoma sua digressão sobre memória em Aristóteles, que se encontra na parte inicial do livro). No trato da memória coletiva preocupa-se sobre “quem lembra”. Pode-se responder que “quem lembra” são “eles”, o que pode ser reduzido ao anônimo, ou seja, a ninguém. Memória coletiva e memória individual devem ser dispostas de forma a não se oporem, porém colocadas em âmbitos diversos do discurso. Somente em parte a memória coletiva é responsável pela continuidade da memória individual.

Segundo o autor,

[...] A questão de saber se a memória, de matriz da história, não se tornou simples objeto da história, pode legitimamente se colocar. Chegados a esse ponto extremo de redução historiográfica da memória, demos voz ao protesto no qual se refugia o poder de atestação da memória a respeito do passado. A história pode ampliar, completar, corrigir, e até mesmo refutar o testemunho da memória sobre o passado, mas não pode aboli-lo. Por quê? Porque, segundo nos pareceu, a memória continua a ser o guardião da última dialética constitutiva da preteridade do passado, a saber, a relação entre o “não mais” que marca seu caráter acabado, abolido, ultrapassado, e o “tendo-sido” que designa seu caráter originário e, nesse sentido, indestrutível. Que algo tenha efetivamente ocorrido, é a crença antepredicativa – e até mesmo pré-narrativa – na qual repousa o reconhecimento das imagens do passado e o testemunho oral (Ricoeur, 2003, p. 505).

Obra densa e extensa, A Memória, a História, o Esquecimento, compreende a discussão de diversas questões, tais como memória e imaginação, memória exercitada; usos e abuso; memória pessoal, memória coletiva, História/Epistemologia, condição histórica, perdão.
O autor apresenta visão crítica sobre Halbwachs, Le Goff, K. Pomian, Richard Terdiman, Yerushalmi e Pierre Nora, quanto à produção destes em torno da memória. Suas observações ajudam a leitura dos textos desses autores, mesmo que não se aceite o julgamento de que seriam inconsistentes atribuído a aspectos daquela produção historiográfica no tocante à memória e sua relação com a história.
Nos últimos trinta anos, a memória social tem sido objeto de estudos sob diversos aspectos. Nora (1993), Passerini (1993), Pollack (1992), dentre tantos outros, examinaram a questão e este texto incidentalmente faz eco a suas contribuições. Só incidentalmente.

2.2. Considerações da teoria e do método

2.2.1. Consciência: o marco inicial.

Pressuposto de análise e de método é a própria concepção que se tem do caráter da consciência. Adotar uma concepção mágica ou metafisica quanto a seu significado e surgimento conduz inevitavelmente a conclusões diferenciadas em relação aos achados da psicologia evolutiva, por exemplo. 
O método, intrinsicamente vinculado à teoria, deve atender a pressupostos bem definidos. Em primeiro lugar, impõe-se priorizar a realidade material. Com isso, não se trata de tomar idéias, escolhas, atos humanos isolados de seu contexto físico e social. O homem está situado. A sua consciência é produto de seu trabalho, que ocorre na história. Embora o problema da consciência ainda esteja grandemente em aberto, inclusive a consciência de si, não se pode ignorar que à medida dos desafios impostos pelo necessário trabalho de luta pela sobrevivência, desenvolve-se a consciência. Que o homem tenha alcançado nível de capacidade do manejo da inteligência cada vez mais abstrato, isso não desmente a historicidade daquela,ao invés disso a confirma. A cada desafio o homem responde com criações que, por sua vez, dilatam sua possibilidade de compreensão da natureza (inclusive de sua própria) e da sociedade.
Como ocorreu a formação da consciência no homem é algo ainda não decifrado pela ciência. Há certo consenso, no entanto, quanto ao papel desempenhado pela postura ereta, que liberou as mãos, e a existência do polegar oponível, com capacidade de apreensão de objetos em conjunto com os demais dedos. Para essas assertivas não contribui apenas o materialismo histórico. Decorridos tantos anos da elaboração de referida corrente de pensamento, a Neurociência atual e a Psicologia evolutiva não as desmentem. A questão reside em saber como as propriedades especiais da mente humana se formaram.
Recentemente Marc Hauser (2013, p. 74-75) escreveu:

Se nós, cientistas, conseguirmos desvendar um dia, como a mente humana se desenvolveu, precisamos inicialmente localizar com exatidão o que a separa da mente de outros animais. Embora os seres humanos compartilhem a vasta maioria dos genes com os chimpanzés, estudos sugerem que pequenas trocas genéticas, ocorridas na linhagem humana desde que ela se separou das dos chimpanzés, produziram enormes diferenças no poder computacional. Essa reorganização, supressão e cópia de elementos genéticos universais criaram um cérebro com quatro propriedades especiais.

Após assim afirmar, Marc Hauser (2013, p. 74) assinala as propriedades especiais da mente humana, evolutivamente construídas: a) a computação evolucionária, ou seja, a capacidade de criar “variações de expressões virtualmente ilimitadas, sejam elas na organização de palavras, seqüência de notas, combinação de ações ou série de símbolos matemáticos”; b) capacidade para a combinação indiscriminada de idéias; c) o uso de símbolos mentais (capacidade de converter as experiências sensoriais – reais ou imaginárias – em símbolos que retemos para nós mesmos ou para comunicar aos outros); d) o pensamento abstrato.
O autor entende que para a evolução da mente o grande salto foi a liberação da recursividade para domínios do pensamento. Embora os animais possuam um maquinário motor recursivo como parte de seu equipamento operacional padrão (são capazes de colocar um pé atrás do outro para andar; pegar e levar um objeto à boca, etc.), esse sistema está localizado nas partes motoras do cérebro, fechado a outras áreas desse. No homem, no entanto, houve a liberação da recursividade, da prisão numa região específica do cérebro, para outros domínios do pensamento. Isso fez a diferença para a mente humana: a partir desse momento ela pode desenvolver-se de maneira a fazer o homem diferente de outros seres de seu reino.
A consideração da prioridade da matéria não significa estimar o homem como ser passivo. Ao contrário disso, afirma-se aí sua capacidade de criar-se e de criar. A imaginação criadora, a inventividade, a capacidade de idealizar um objeto, projetando-o para construí-lo, é dado da consciência historicamente confirmado. Na apreensão da realidade o homem não adota uma atitude passiva, como se aquela fosse formada por mero reflexo dos dados do mundo exterior com o qual ele pensa. A apreensão da realidade é ativa e os dados obtidos com aquela são conscientemente objeto de hipóteses, cogitações, combinações, estudo, enfim.
Cumpre igualmente dizer que o homem analisa dados apreendidos de acordo com procedimentos mais, ou menos, complexos, a depender do desenvolvimento de seu domínio sobre a natureza e de sua compreensão da rede complexa de interações que ocorrem na sociedade. Nisso, faz escolhas. Trata-se de adotar método.

2.2.2. Considerações do Método

O desenvolvimento da consciência permitiu ao homem (até para atender suas necessidades vitais) dar nome às coisas e fazer abstrações. E ele analisa a realidade que o circunda, partindo de uma abstração, qualquer uma que entenda dever ser o seu ponto de partida (embora possa substituí-la, julgá-la inadequada, depois). No entanto, logo ele verificará que deve dirigir sua inteligência para a realidade. Se ele toma a abstração “sociedade”, verificará o lugar onde esta se encontra assentada, distribuição por faixa etária, diversidade de ocupação, diferenças de classe, técnicas utilizadas, etc. Isso significa que deve ocorrer um movimento que segue o curso da abstração ao concreto. Mas não basta o esgotamento do pensar nesse caráter aparentemente descritivo da realidade (embora aí já haja compreensão, níveis iniciais de análise capazes de discernirem diferenças, oposições, classes de objetos, etc.).
A ida da mera abstração ao concreto busca pensá-lo. Mas trata-se de pensá-lo em “suas múltiplas determinações” (Marx, 2013). Impõe, assim, distinguir abstração, ou abstrações, tomadas como ponto de partida, o concreto, tal como concreto (objetivamente considerado, portanto) e o concreto pensado. Mas não o pensado simplesmente, mas o pensado até alcançar a síntese e o encontro de leis que regem aquela realidade estudada.
É, no entanto, evidente que a capacidade de ir da abstração ao concreto e desse ao concreto pensado e à síntese, não exclui limitações em razão dos instrumentos até então disponíveis. Uma coisa é a descoberta do carbono 14 e a utilização de seu marcador, e outra é não tê-lo ainda disponível.
Ainda há que considerar as idéias dominantes em cada época histórica e em cada sociedade, as quais obstaculizam o conhecimento com a força dos saberes estabelecidos. Mas não só isso: essas idéias dominantes vinculam-se a interesses da classe dominante, que as reproduz inclusive com a instituição escolar e com os meios disponíveis para a sua divulgação.
Há, ainda, se afastada a pressão das idéias existentes sobre a consciência, fenômenos como a alienação e a reificação (esta, uma exacerbação da primeira, como alguns entendem). É fato que relações entre pessoas podem ser vistas como relações entre coisas (reificação), e processo de imposição de bens, capital, cultura como algo independente, que se opõe ao sujeito. É o caso de deuses que, criação humana, passam a ser objeto de cultos, obrigações: uma alienação.
É certo que alguns tratam a reificação como forma exacerbada de alienação, mas há alguma diferença entre o tratar relações entre pessoas como relações entre coisas (considerar o juro como remuneração do dinheiro ao invés de exploração do agiota, ou dizer que o metal precioso tem valor intrínseco), e a relação de dependência (afetiva ou intelectual) entre criador e criatura. De qualquer forma, o pesquisador, ao analisar a realidade, verá se não é vítima de comportamento intelectual alienado ou reificado.
É evidente que muitos aspectos podem não apresentar possibilidade de compreensão em razão de limites técnicos ou de conhecimentos. É que nem sempre a sociedade tem à sua disposição os instrumentos necessários para solucionar questões que lhe são postas e necessariamente haverá a análise limitada ou resposta declaradamente provisória, ou hipóteses.
Há, também, o peso da ideologia dominante, capaz de obscurecer a consciência. A exemplo disso, pode-se perguntar até que ponto falar de miscibilidade do português para explicar que a miscigenação na colônia significa reduzir a um a relação que envolve mais de um? Qual o papel de outros grupos étnicos para a configuração da miscigenação? Atribuir apenas ao europeu a miscigenação não seria fruto (admite-se que até “inconscientemente”) de uma ideologia dominante branca? A extensão do mando à passiva aceitação do enlace sexual? Seria, ao invés de uma explicação científica, uma tomada de posição branca? O homem está sujeito a muitas influências e convive com padrões de pensamento ideológicos, que direcionam sua maneira de perceber a realidade, em cada tempo. É o caso referido, que se inclui na ideologia da democracia racial.
Dizer que tem-se que perceber as múltiplas determinações, ou dizer que a realidade pensada é fruto de múltiplas determinações, tem sentido profundo, mas para percebê-la de modo científico não se deve deixar de prevenir-se diante do cerco da ideologia, reificação e alienação do sujeito.
E a memória – objeto do presente texto – também possui suas múltiplas determinações e está sujeita a contingências históricas, políticas, sociais, da alienação e da reificação.
Para o desempenho de seu mister, o estudioso não se deterá apenas em uma forma de raciocínio. Considerará, dependendo da circunstância, formas de dedução e indução. Mas o mover de seu pensamento não se contenta com essas formas, pois, utilizar-se-á de categorias próprias da dialética (relação todo e parte, contradição, necessidade/possibilidade, mediação, movimento, etc.).
Considerando que será necessária a interpretação de documentos/textos o esforço hermenêutico estará presente, mas submetido às razões sociais de contextualização e condicionamento. Se é verdade que um documento permite múltiplas interpretações, não é menos verdade que ele será, em sua análise, objeto de uma intenção determinada.
É evidente que a investigação sobre o tema, além de seu caráter direto, submete-se a observação indireta, pois importa conhecer o passado e isso é feito com a utilização de fontes porém atendendo pressupostos antes mencionados para reconstrução, na consciência (reconstrução espiritual), daquele.
Mesmo para análise dita direta cada vez mais há mediação de instrumentos de levantamento de dados (a exemplo de elaborações estatísticas), utilização de dados já coletados ou pesquisados por terceiros e de estudos antes realizados.
No estudo da memória compartilhada os pressupostos gerais do método do materialismo histórico incidem na analise critica das fontes, mas direcionam igualmente a compreensão da realidade atual. Esforços intelectuais de contextualização, seriação, hermenêutica, etc., são envidados pelo observador  tanto para a elucidação das fontes do (sobre), o passado quanto para a compreensão da realidade presente.
Memória e História, mediações alienantes ou reificantes e o uso ideológico da memória compartilhada: este estudo visa a expor a inter-relação de memória, ideologia e história e o uso ideológico da memória. Para isso busca-se delimitar os campos da memória e da história e saber se é possível realmente diferenciá-los. Entende o autor que estudos no âmbito das humanidades têm contribuído para a fixação de uma teoria histórica da memória, embora a maioria dos trabalhos sobre o tema tenham sido tópicos e, portanto, não abrangentes de determinações da realidade que devam estar presentes.
Necessário é evidenciar polissemia ou a plurivocidade do termo memória, e a necessidade de adotarem-se critérios que possam determinar, quando se escreve, de que memória se está tratando a fim de evitar-se a confusão, que se observa em alguns textos, entre memória-função e as diversas formas de exteriorização da memória. Dessa forma, buscar-se-á o sentido da memória, enquanto função de cérebro e a exteriorização dessa, que tem sido chamada de memória, a exemplo das reminiscências e dos acervos documentais e de imagens. Mas o presente trabalho discorre sobre a finalidade dessas formas de exteriorização (como servir de prova, por exemplo), e como esses meios, uma vez imobilizando a memória, passam a ser objeto de interpretação com intenções diferentes (cientificas, literárias, etc.).
Mas, para além dessas questões, os usos institucionais, políticos, sociais e historiográficos da memória devem ser objeto de análise a partir do contexto que os cria. A relação entre as bases materiais da sociedade, especialmente as relações de produção e processos produtivos devem ser estudados, até porque a memória e sua conservação sofrem fortes condicionamentos infraestruturais, que vão além dos simples hábitos do movimento do corpo e do adestramento das mãos.
Nesse sentido, memórias dominantes e institucionalizadas guardam seu aspecto de classe, mesmo a memória da repetição para o desempenho do oficio, para além do controle ideológico. A busca da compreensão do caráter de classe da memória dita coletiva pode ser objeto desconsiderações à luz do materialismo. Não se trata apenas da destruição da memória dos ofícios e de todo tratamento/adestramento que impregnou trabalhadores, pelo impacto de novos processos produtivos, ou mesmo do saber memorizado pelo trabalhador, por força da propriedade privada dos meios de produção. Para além desse destruir contínuo com toda sua força de desenraizamento e de desamparo ou exclusão, há o próprio apagamento da memória dos que trabalham e sua substituição por outras memórias: memória da dominação.
Alienação e reificação são fenômenos que incidem fortemente na conformação da memória e por isso devem ser considerados em análise do objeto. Há memórias alienadas. Cumpre verificar a forma como isso ocorre e qual o seu sentido social, sob pena de incompreender a memória compartilhada.
Para saber se é possível delimitar epistemologicamente em campos distintos a memória e a história é necessário partir de bases materiais dadas na sociedade. Se é possível memória coletiva não mediada ideologicamente e se alienação e reificação a conformam e até onde; o que caracteriza o uso abusivo da memória e por que os regimes ditatoriais têm historicamente apelado para a memória; qual o diálogo possível entre os que cuidam dos estudos da memória e os historiadores, são, dentre outras questões, problemas que só podem ser compreendidos com referência infraestrutural, mas sem desprezo ao avanço do saber.








3. MEMÓRIA E hISTÓRIA

3.1. Campo da memória. Visão preliminar

O estudioso depara-se, ao estudar memória, com a possibilidade de uma primeira e imediatamente verificável afirmação: há muitos sentidos para a palavra. A acepção antiga, clássica, que os gregos nos legaram, por si mesma já indica duas realidades: a representação, na consciência, de uma coisa, e a evocação dessa coisa ausente. Em outras palavras, seus momentos: memória retentiva e possibilidade de evocar (recordação). Esse discernimento da realidade da memória já se encontra em Platão, que distingue a conservação de sensações e a reminiscência, e o estar desprovido de memória e por isso incapaz de recordar, inclusive, o que se experimentou em momento determinado, como se lê em Teeteto, O Sofista e Filebo (PLATÃO, 1990).
Nos diálogos Teeteto e O Sofista pode ser encontrada a distinção entre conservação de sensações (retenção) e reminiscência (evocação) como momentos da memória, memória conservação e memória evocação (Platão, 1990).
Aristóteles igualmente fala na memória que conserva sensações (retentiva) e aquela que as evoca (recordação), em seu De Memória (1980). Em sua referida obra, esse autor supõe que em nós permanece uma impressão, lembrança, e que uma busca ativa (recordação) a traz até o presente. Dito de forma mais elucidativa, a imagem aparece como uma pintura (quadro) que pode ser tomada como representação daquilo que representa e tomada por si mesma, objeto representado e representação, portanto. Assim também ocorreria com a imagem impressa em nossa memória, pois essa pode ser entendida como objeto representado ou como representação de outra coisa. Ao lado disso, Aristóteles põe a recordação. Esta é ativa, decorre de uma busca feita pelo indivíduo: e memória retentiva é diferente da memória evocativa (recordação), que é ativa.
O Estagirita, como o fizera Platão, distingue entre memória retentiva e recordação, mas assinala o caráter ativo, ou voluntário dessa última, enquanto que a primeira (retentiva) é passiva. A recordação funda-se na idéia de conservação de movimento.
Essas duas memórias (retenção e evocação) continuaram na história do pensamento ocidental, ora como momentos, ora como sentidos do vocábulo. Fixado está o registro dos sentidos, ou condições, de memória em recuados tempos.
Correta é a afirmação feita de que memória recebeu tratamento que a considera em duplo sentido, pois tanto a retentiva quanto a evocativa são memórias. Não se pode afastar a plurivocidade da palavra.
Com efeito, denomina-se memória tanto a evocação de fatos, imagens, sentimentos, etc., que seus lembradores querem verdadeiras, quanto obras de ficção que se estruturam com narrativa cujo fluxo se desenvolve como se de memória efetiva se tratasse. E há mesmo o meio-termo em que “memórias verdadeiras” se entremeiam com “memórias inventadas”. Invencionice convive, nesse caso, com fatos que realmente ocorreram, na forma como os percebeu o autor da obra semificcional. E, ainda mais, há ficção que se encontra envolvida com a realidade de forma tão intensiva que se pode perceber aí um tipo de veracidade. Vargas Llosa (2004) confere a esse fenômeno um título: “A verdade das mentiras”, com que batiza seu livro de crítica literária. Nesse último caso há, sobretudo, romances históricos e a tradição realista de inúmeras obras literárias. Não é descartável, nesse contexto, o projeto consciente de ver a realidade à luz da recriação inventiva.
Memórias ficcionais que alcançam o patamar de obras de arte, como as Memórias Póstumas de Brás Cubas (Machado de Assis), em cuja apresentação o autor teima ironicamente que não se trata de reminiscências de um “autor defunto, mas de um defunto autor”. Mas mesmo aí, na “mentira” do livro há verdade: um pano de fundo, a maneira de pensar do tempo, etc.
Mas, ao lado de memórias fictícias, há aquelas que pretendem ser lembranças de fatos “verdadeiros”. No entanto, esses relatos verdadeiros” não estão a salvo de serem meras versões do visto e do sentido.
Há, ainda, a tradição de certas realizações historiográficas a que se atribuem o título de memórias, ou certos relatos históricos deixados para memória. Algumas dessas expressões trazem fantasias como se de memórias verdadeiras se tratassem, mas são memórias na dicção de seus autores. Os títulos sobram.
Documentos são tidos como “memória” ou expressão dessa. Fala-se em “lugares da memória”, em memória de um individuo, ou de um povo, ou mesmo de memória coletiva, do computador, memória afetiva, olfativa, bruta, etc.
São muitas as memórias e todas elas com o conteúdo daquilo que é passado. E a presentificação desse (evocação) traz um mundo inteiro de informações, não apenas informações que o memorizador quis transmitir, mas passado envolto numa tensão entre o registro e o esquecimento.
A memória social deve ser analisada sob múltiplas determinações. O tema memória, secularmente discutido, retomou importância, cresceu para constituir um campo do saber, e a luta pela preservação da memória foi entranhada no cotidiano. Importa falar dessa pluralidade de sentidos, pois um desses é a História. Campo do saber que, na busca de delimitar seu espaço no conjunto do conhecimento, foi confundida com a própria memória (o fato de ser passado alimentou essa confusão), mas isso deve ser evitado. Castanho (2009), sobre isso, afirma:

A memória é principal nutriente da história, mas não se identifica com ela, assim como a semente não é o passarinho que, não obstante, nutre. A memória é algo de mais substantivo, tanto do ponto de vista do objeto quanto do sujeito. Objetivamente, a memória é aquilo de que se lembra: acontecimentos, fatos, sentimentos, sensações e significados, tudo aquilo que passou pelo campo de percepção do indivíduo e pelas antenas da sociedade, sendo retido por um e por outra e devolvido diante de qualquer necessidade. Subjetivamente, a memória é o ato de lembrar, individual e coletivamente, compreendendo, na sua complexidade tanto o momento de fixação quanto o de devolução. (CASTANHO, 2009: 15)

Fixado, ainda que provisoriamente (pois tem havido expansão do objeto), o campo da memória, o exame de questões como a memória imobilizada (registrada em diversos suportes, especialmente o documento), a memória evocada (individual, social, registrada, etc.), a relação entre memória e imaginação, história, propriedade, ditadura, classe social, tem sido intentado em diversas oportunidades.
As múltiplas relações da memória com o meio social dão-se de forma tensa e cambiante: tensa quando se considera a luta entre a memória e o esquecimento, cambiante quando se verificam as mutações que ocorrem na história quanto à memória – ora confundida com aquela, ora demarcada, ora em diálogo, ou em reinterpretações dos dados da memória retentiva e as condições de sua evocação no tempo face ao poder e às classes sociais. Isso implica pesquisar usos da memória pelas classes sociais, pelo poder, pelos historiadores, em bases afastadas da metafisica.
A própria existência da plurivocidade pode esconder um conflito: o que é simples memória de alguns pode ser imposto como História.
 3.2. Plurivocidade e qualificação

         Diante da plurivocidade do termo, é necessário qualificá-lo a fim, sobretudo, de alcançar distinção entre memória (retentiva e evocativa) e suas formas de manifestação. Se não é conveniente equiparar História a memória, também causa embaraço tratar documentos, fotografias, filmes, etc., como memória, ou seu conjunto como memória coletiva, ou, para diluir seu significado, falar-se de lugares da memória, como o faz Nora (1984), diante do fato de ocorrer crise daquela, e a História, no seu estágio atual, não poder confundir-se com a memória.
         O uso do termo com tantos significados, ou necessita ser substituído por outro, ou ser acompanhado de um vocábulo que precise seu significado em cada contexto. A substituição vocabular é possível, porém encontra a resistência do uso largo e continuado. A opção por um qualificativo atende melhor objetivos de precisão teórica. Nesse sentido, o presente estudo distingue a memória (com suas propriedades de evocação e retenção) de suas formas de manifestação.
Realmente, há um dado, que embora não primário, isto é, não se refira imediatamente ao cérebro, tem relevância para a discussão da matéria: memória mantém diferença de suas formas de exteriorização. Veja-se que, dentre funções cerebrais, ocorre a memória, mas uma memória que pode (ou não) exteriorizar-se. A pessoa pode lembrar, relembrar, sem expressar a reminiscência a terceiro, silenciosamente, ou fazê-lo em diálogo, comício, ou por escrito, por exemplo. A reminiscência pode exteriorizar-se, manifestando-se de formas diversas.
Pode-se, assim, falar de memória e suas formas de manifestação, ou de exteriorização: memória exteriorizada. O presente texto referir-se-á à exteriorização da memória quando pura e simplesmente não referir-se às funções de reter no cérebro ou de evocar (memória retentiva, memória evocativa).
A memória exterioriza-se de diversas maneiras, dentre as quais, de forma oral (ou gestual) ou de forma escrita. Este texto fala de memória animada quando da sua manifestação oral ou gestual, e de memória imobilizada (imobilização da memória quando se tratar de manifestação em escritos, filmes, documentários, etc.) No entanto, imobilizada não significa estática. O vocábulo guarda inspiração no tratamento que à escrita deram as linguistas: fala imobilizada. Uma objetivação da memória é o que se pretende com o conceito de memória imobilizada.
No entanto, outros qualificativos de memória seguirão este vocábulo: memória individual (reminiscência pessoal) e memória coletiva (memória compartilhada, ‘o lembrar junto a outros’), conceito cunhado por M. Halbwachs (2006).
Não fazer a assimilação entre memória e documento escrito (como às vezes ocorre em Le Goff - 2003), surge como necessidade expositiva da matéria e como apuro conceitual, evitando-se equívocos da leitura. Nora (1993) intentou lugares da memória, título mais defensável, porém que suscita a mistura entre fontes e seu depósito.
Não posso falar de u’a memória escrita, como algo predominante a partir de certo período histórico do ocidente, uma vez que a reminiscência, oralizada ou não, está sempre presente em todas as épocas. No entanto, corrige-se a expressão memória escrita ou impressa por memória imobilizada, e textos como os de Leroi  Gourhan e Le Goff assumem maior valor, pois sua leitura importará em atender que, convivendo com a exteriorização da memória, pela escrita, há memórias oralmente exteriorizadas ou não, objetivadas em suportes (papel, disco rígido, etc) ou não. Pois é isso que efetivamente ocorre em toda e qualquer sociedade que domina a escrita: as pessoas lembram, relembram, individualmente ou de forma compartilhada, manifestando-se de forma oral ou por registros (documentos, fotos, etc.), ou as têm incorporadas em hábitos.
No entanto, ainda é necessário dizer que o motivo inicial da existência de u’a memória imobilizada (documento, por exemplo) nem sempre tem como motivação imediata a preservação daquela, mas servir como prova (indissociável da memória, no entanto), como é o caso do contrato para as partes que o celebram e para aqueles que laboram no campo jurídico. Com o contrato, registra-se a manifestação de vontade (de comprar, vender, doar, locar, etc.) e preserva-se a prova. No entanto, essa motivação principal de sua existência (prova) é indissociável da memória, pois aquele texto contratual sempre lembrará às partes o que efetivamente avençaram, podendo haver divergência de interpretação das cláusulas e, surpreendentemente, será um juiz ou um parecerista que irá fixar o verdadeiro sentido da memória preservada no contrato, à medida que fixa o sentido da cláusula à luz da normatividade, mesmo que o faça segundo a regra de que na interpretação dos contratos vale mais a intenção das partes que a literalidade, e isso conduz ao tema com que os historiadores têm-se defrontado: a crítica da fonte documental, porém muitas vezes sem atentar para o fato da existência da autonomia da memória, que permite que haja controle por terceiros do sentido do registro (manifestação da memória), os quais o interpretam ou dele fazem uso. Ao usar um contrato como fonte, por exemplo, o historiador o fará para outra finalidade que não aquela pretendida pelos contratantes (mesmo até desprezando-a), autonomizando a memória, com consequências que poderão ser acerto histórico ou erro histórico crasso. No entanto, o historiador, assim procedendo, irá além daquilo desejado por aqueles que contrataram, por isso que deve, no seu trabalho crítico, declarar que ele vai além da vontade das partes e que a autonomia que faz dele o raptor daquela vontade é motivada por intenção que difere daquilo que foi almejado pelos signatários do acordo de vontades. Dirá de que se trata, mas mencionará a intenção de seu uso histórico.
Coisas semelhantes à exposta indicam que não pode haver assimilação entre memória e suas formas de exteriorização. A memória imobiliza-se contraditoriamente para sobreviver e circular, as mais das vezes, e ganha autonomia. Num conjunto de outras imobilizações poderá ser posta em dúvida ou sofrer limitações no resultado de sua interpretação.

3.3. A memória imobilizada, a memória animada e a História

3.3.1. Exteriorização da memória

         Memória tem sido entendida como capacidade de reter e evocar imagens, sons, odores, sentimentos, informações, movimentos, etc., que o cérebro possui. Assim é considerada por séculos.

A capacidade de manobrar o complexo mundo à nossa volta depende dessa capacidade de aprender e evocar – reconhecemos pessoas e lugares porque fazemos registros de sua aparência e trazemos parte desses registros de volta no momento certo. (DAMÁSIO, 2011: 168).

         A questão que, no entanto, é ainda em nossos dias pesquisada é como ocorre o registro (memória retentiva) e a lembrança (memória evocativa), especialmente esse segundo momento: “Para que possamos entender como tudo isso ocorre, precisamos descobrir no cérebro os segredos do algum modo e localizar o algum lugar. Esse é um dos intricados problemas da neurociência atual” (DAMÁSIO, 2011: 168).
         A tendência atual é entender que o cérebro reduz a imagem, som, cor, etc., em um código, e essa visão é justificada com o argumento de que “seria impossível armazenar no formato original os mapas que fundamentam todas as imagens que um individuo já percebeu” (DAMÁSIO, 2011: 178). Assim, todas as memórias disponíveis encontram-se no cérebro sob forma dispositiva, no aguardo para explicitar-se em imagens ou ações. Quando se fala em forma dispositiva com que tudo o que herdamos, vivenciamos, etc., se encontra disponível no cérebro, quer-se dizer “registros abstratos de potencialidades”.
         Embora toda e qualquer memória dependa desses registros, isto é, de sua forma de existir, e de maneiras de evocação mais ou menos complexas a depender de circunstâncias, quando se trata de memória individual, ou seja a base biológica inicial para que se possa pensar numa memória social (coletiva, compartilhada), esta possui condicionamento que decorre do próprio ser social. Socialmente registra-se e evoca-se de forma diferente, basta pensar na resultante de debates gerados na sociedade, que são reduzidos a uma posição sobre determinado assunto discutido e lembrado, por exemplo, ou então imaginar o registro consistente em um suporte físico, portanto exterior ao cérebro.
         Compartilhar memória muitas vezes não é apenas lembrar junto, pois circunstâncias ocorrem que têm o efeito de modificar o curso da memória social, como acontece diante de mudanças, revisões, ação do poder, esquecimento e retomada com alterações dos registros memoráveis.
A memória exterioriza-se de diversas maneiras. A palavra aplicada para designar uma função cerebral é a mesma utilizada para nomear formas de sua exteriorização.
Metonímia histórica e devoradora fez com que a exteriorização escrita da lembrança tomasse o nome de memória: assim são tidos os documentos em geral. E, também, assim é a exteriorização oral: depoimentos falados. Mas não é de surpreender o fato de que novos suportes em que a memória se exterioriza passem a chamar de memória, como o filme, a foto, a gravação, o disco rígido, etc. Mesmo os hábitos e práticas? Sim, aí estão gestos, repetições de expressões do corpo e maneira de utilizar a mão no desempenho do ofício, que importam à História, especialmente a do cotidiano, do trabalho e da vida privada.
Para além, memória também tem outros significados, como é o caso do texto ficcional denominado memória(s).
Aqui, no presente capítulo, o interesse cinge-se às exteriorizações escrita e oral.
O rigor dos historiadores ainda não encontrou palavra-conceito capaz de evitar os equívocos que acompanham o uso da palavra memória. Confunde-se com seus produtos e com a própria História e mesmo há tipo de História que pretende ser memória e assim é indicado por autores ou tradições do escrever.
O apelo à memória e a busca crescente pela autonomia do campo da História têm determinado esforço para a fixação de parâmetros que estabeleçam distinções, desde Halbwachs, com Les Cadres Sociaux de la mémoire, de 1925, e Mémoire Collective, de 1950 (publicação póstuma).
Certamente que sem memória (função) não há História, sequer conhecimento. Mas é necessário dizer como e o porquê disso, nas diversas orientações historiográficas.
Um passo fundamental da civilização foi o de imobilizar a memória. O dito, o acontecido, o sentido e o pensado puderam ser imobilizados como a própria escrita houvera fixado a linguagem articulada. A memória foi imobilizada, tal como a palavra, como condição de ser utilizada e manter-se viva.
Com a imobilização da memória, um outro patamar abriu-se para os humanos. Não se tornou necessário retomar apenas dados da lembrança (evocação): o que se conhecera ou praticara. A partir daquela imobilização, o caráter fugidio da memória foi substituído pela sua permanência em um substrato qualquer.
Essa imobilização não é a memória completa, e seu caráter é problemático. Se tenho diante de mim um texto, preciso completá-lo num esforço que vai além de minhas lembranças. Preciso lembrar-me do significado das palavras, ficar atento diante das armadilhas da grafia, embutir o escrito no escaninho de seu tempo, verificar seu sentido, ou suas contradições. A memória imobilizada precisa da memória viva atuante. É como se esta a aviventasse.
E a complementariedade entre ambas – a memória imobilizada e a viva memória – pode ir além: necessitar de outras memórias, da memorização do saber (ele mesmo memorizado), do saber fazer e de sua preservação. Mas necessita de interpretação – um saber sempre incompleto. Muitas vezes o pensamento não está voltado imediata e exatamente para a necessidade de estancar a memória em um suporte, como um papel, mas produzir uma prova, como ocorre no contrato entre duas ou mais pessoas. Relendo-o, os agentes que o elaboraram, ou mandaram elaborá-lo, percebem que se trata a toda evidência de um acerto de vontades e de sua prova, no entanto o texto é encarado como memória daquilo que foi acertado, diante do esquecimento e da negativa.
A complementariedade que se exige para conhecer a memória imobilizada, como foi dito, pode demandar o trabalho coletivo e mesmo esperar até que isso seja possível, no futuro: esperar uma técnica, novas pesquisas, ou um Champollion, (linguista que decifrou os hieróglifos), este mesmo já preparado com conhecimentos acumulados pela sociedade, para decifrar a escrita.
A memória, algo difícil de ser compreendido, quando imobilizada, ainda continua difícil de ser entendida, por isso que exige interpretação.
A memória, uma vez imobilizada, deixa amplo espaço para uma atividade grande e complexa: a busca do sentido, não da memória em si, mas do texto que dela ou da necessidade de mantê-la resultou. É o âmbito de interpretação que se abre. Enunciados escritos, reveladores da memória imobilizada, carecem de significados, pois enquanto não são interpretados não servirão para o intuito do cientista e a intenção desse será reveladora do tipo de interpretação. Grandemente vazios são os enunciados e por serem relativamente ocos comportam vários sentidos. O texto de lei é exemplo, talvez o mais eloquente, disso. Confirmando-o o fato de, em sede de controle de constitucionalidade de lei, por exemplo, tribunal buscar entre várias interpretações possíveis, a interpretação conforme a Constituição.
Difícil, politizada e ideologizada é a tarefa da interpretação do enunciado dito, ou escrito, ou dito e escrito. Quando a memória é dito imobilizado em documento, sucessivamente, no decorrer da história, uma nova proposta de interpretar o texto surge atrelada a uma doutrina dominante. Mas mesmo o enunciado atual de autoria de qualquer pessoa busca uma “interpretação autorizada”. Há um caso exemplar: Georgina Dufoix, ministra francesa dos Assuntos Sociais e da Solidariedade Internacional, diante dos duros questionamentos sobre sua responsabilidade no caso da utilização, pela rede hospitalar, de sangue contaminado que, em 1991 vitimou muitas pessoas, afirmou que era “responsável, mas não culpada”. A expressão gravada pelos diversos meios de comunicação foi utilizada como forte argumento por aqueles que buscavam sua condenação por homicídio culposo e atentado culposo contra a integridade física das vitimas. Georgina Dufoix utilizou uma lógica não apreciada pelos juristas: desvincular a responsabilidade (assumida) da culpa (o justo). Ela se dizia responsável, mas não ter culpa.
Que sentido atribuir a “responsável mas não ter culpa”? Inovadoramente, como perito, a então ex-ministra indicou um filósofo, Paul Ricoeur (2008), e este buscou estabelecer o sentido, distinguindo a responsabilidade política da culpabilização para fins penais.
Foi dito que há vínculo entre a doutrina dominante e a interpretação da memória imobilizada – o texto. Mas é preciso ainda completar: há um contexto cultural que deve ser levado em conta e objetivos que o cientista pretende alcançar.
Em nível historiográfico, importa dizer que a concepção dominante da História está indissoluvelmente ligada a determinado método de interpretar e esse e aquela têm vigência em determinado contexto. Não há hermenêutica ad aeternum. Mas há uma eterna busca de sentido.

3.3.2. Positivismo e História– memória

O positivismo histórico pretendeu fazer do documento (e de sua controlada interpretação) a única fonte da história. Charles Langlois e Charles Seignobos (1944, p. 15), iniciam o capítulo I de sua introdução aos Estudos Históricos, com afirmativas precisas sobre o tema:

A história se faz com documentos. Documentos são os traços que deixam os pensamentos e os atos dos homens do passado. Entre os pensamentos e os atos dos homens, poucos há que deixam traços visíveis e estes, quando se produzem, raramente perduram: basta um acidente para os apagar. Ora, qualquer pensamento ou ato que não deixou traços, diretos ou indiretos, ou cujos traços visíveis desaparecem, está perdido para a história: é como se nunca houvesse existido. Por falta de documentos, a história de enormes períodos do passado da humanidade ficará para sempre desconhecida. Porque nada supre os documentos: onde não há documentos não há história. (LANGLOIS e SEIGNOBOS, 1944: 15).

Adverte-se, no entanto, que os autores acima mencionados admitem como documento um traço material como um monumento, um objeto fabricado (página 43), mas firmou-se a posição de que a história estabelece o modo indireto de investigação. O historiador não observa os fatos no “momento em que se produzem”, mas indiretamente, utilizando os traços que aqueles fatos deixaram.
Langlois e Seignobos privilegiam os documentos, sobretudo os escritos (mas não todos), estabelecem procedimentos para sua análise e pretendem com essa alcançar o sentido e encontrar a verdade. Firmam dois grupos de procedimentos necessários ao historiador: a crítica externa e a crítica interna do documento. Em suas próprias palavras:

Primeiramente observamos os documentos. Está ele tal qual como no momento em que foi produzido? Não foi danificado? Indagamos como ele foi fabricado, a fim de o reintegrarmos, se for preciso, em seu texto original e de lhe determinarmos a procedência.
Este primeiro grupo de trabalhos preliminares, que se executa em função da escrita, da língua, das formas, das fontes, etc., constitui o domínio particular da CRÍTICA EXTERNA ou crítica de erudição. A seguir, intervém a CRÍTICA INTERNA: ela tem por fim, atuando por meio de raciocínios por analogia – de que a maior parte é tomada à psicologia geral – reelaborar os estados psicológicos por que passou o autor do documento.
Sabendo o que o autor do documento disse, perguntamos:
1)         Que quis dizer?
2)         Acreditou ele no que disse?
3)         Tinha razão para acreditar no que acreditou?
Sob este último aspecto o documento atingiu a um ponto em que pode ser reduzido a uma das operações científicas, das quais se constitui toda ciência objetiva: tornou-se um caso de observação; basta tratá-lo pelos métodos das ciências objetivas. Todo documento vale exatamente na medida em que depois de ter sido estudado em sua gênese, pode ser reduzido a uma observação bem feita (p. 45 e 47).      

        E, quanto a cuidados suplementares, advertem os historiadores:

Muito importante são as precauções que devemos tomar para nos servimos destes documentos, que constituem o único material da ciência histórica [...] é preciso eliminar os que nenhum valor apresentam e distinguir nos outros o que já foi observado com fidelidade. (p. 47-48).

        Além disso, declaram os autores que:

A crítica tem por objetivo discernir nos documentos o que pode ser aceito como verdadeiro. Ora, um documento é o resultado de uma longa série de operações, das quais o autor nenhuma informação nos dá. Observar ou arrolar os fatos, conhecer frases, grafar as palavras, são operações distintas e necessárias, que podem não ter sido feitas com igual correção.
É preciso, pois, analisar o produto deste trabalho do autor para distinguir quais as operações incorretas, a fim de recusar-lhes os resultados. Deste modo a análise é parte indispensável da crítica; toda crítica começa por uma análise. (p. 100-101). 

Uma concepção histórica desse tipo não pode ter a memória manifestada de forma não escrita (nem história oral!) como fonte da história e, se fosse problema posto aos seus partidários, no tempo de sua vigência, certamente fariam oposição entre história e memória a partir dos documentos (inclusive relatos memoriais). Não seria sequer o caso de adotar – como é feito neste capítulo – conceito de memória imobilizada. A perspectiva positivista anularia a memória e só reconheceria a história: os fatos históricos, o passado. Uma história fatual, enfim. Diante do relato, essa procuraria impor seus critérios de críticas interna e externa, visando ao verdadeiro. Mas há quem veja na história crítico – documental (positivista) u’a memória de modelo história-memória também, que toma o acervo documental (manifestação da memória) como memória.
A argumentação feita acima segundo a qual o positivismo histórico, centrando-se no documento e na sua crítica, exclui a memória justifica-se apenas em razão dos pressupostos apresentados: a tentativa (para alguns alcançada) do positivismo histórico de criar o ofício do historiador, profissionalizar a história. Em outras palavras, indica rompimento com uma tradição em que visivelmente a idéia de memória esteve presente, e implicava em autonomizar a história, situando-a num campo bem definido com o seu objeto: o fato histórico, encadeado em suas causas e consequências. Declaradamente, pode-se até mesmo dizer, a autonomia buscada e a profissionalização do historiador implicam na argumentação até aqui feita, de que há uma delimitação de campo, na fixação de um objeto definido (o fato histórico e seu encadeamento) e um método para a observação indireta própria da história (a crítica documental).
E assim seria, mas não ocorreria o avanço entre a mera aparência e o encontro do essencial. A argumentação ficaria limitada à pré-compreensão. É que falta nas considerações expendidas, que indicariam um campo próprio para a história e, com isso, sua distinção do campo da memória, componente essencial: a própria concepção de história que resulta da leitura crítica da produção historiográfica dos positivistas. Isso remete para a denúncia da função ideológica, do objetivo, consciente ou não, daquela história produzida no seio do positivismo.
Efetivamente, leitura que não se detém nos aspectos abordados, que podem ser sintetizados em autonomização do objeto da história (fato histórico e seu encadeamento singular entre causas e consequências) e elaboração de método próprio (observação indireta e crítica documental), encontra componente que faz da história positivista texto profundamente memorial: mesmo que em alguns deles a tessitura do histórico apareça em movimentos contraditórios.
É fato que a concepção geral da história positivista, para além do objeto e do método (para além da autonomização do campo do saber e da profissionalização de seus cultores), decorrente da análise daquilo que foi historiograficamente produzido, é a concepção de uma história-memória: memória da nação, ou a preocupação ideológica de criá-la ou de consolidá-la.
Marx (2007) já havia apontado a estreita vinculação entre a história e o Estado. Esse patrocina o aparecimento da história nacional (2007).
Com a proposição de que a história no modelo de Ranke, Langlois e Seignobos é uma história-memória concordam Foucault (Arqueologia do Saber) e Nora (Entre Memória e História – A problemática dos lugares). Diz Foucault:

É preciso desligar a história da imagem com que ela se deleitou durante muito tempo e pela qual encontrava justificativa antropológica: a de uma memória milenar e coletiva que se servia de documentos materiais para reencontrar o frescor de suas lembranças; ela é o trabalho e a utilização de uma materialidade documental (livros, textos, narrações, registros, atas, edifícios, instituições, regulamentos, técnicas, objetos, costumes, etc.) que apresenta sempre e em toda parte, em qualquer sociedade, formas de permanências, quer espontâneas, quer organizadas. O documento não é o feliz instrumento de uma história, que seria em si mesma, e de pleno direito, memória [...].
Digamos, para resumir, que a história, em sua forma tradicional se dispunha a “memorizar” os monumentos do passado, transformá-los em documentos e fazer falarem estes rastros que, por si mesmo, raramente são verbais, ou que dizem em silêncio coisa diversa do que dizem. (FOUCAULT, 2007: 7, 8).

Nora (1993, p. 11), por sua vez, escreve:

Houve um tempo em que, através da história e em torno da Nação, uma tradição de memória parecia ter achado sua cristalização na síntese da III República. Desde Lettres sur l’histoire de France, de Augustin Thierry (1827) até Histoire Sincere de la nation française, de Charles Seignobos, adotando uma larga cronologia, História, memória, Nação mantiveram, então, mais do que uma circulação natural: uma circularidade complementar, uma simbiose em os níveis, científico e pedagógico teórico e prático. A definição nacional do presente chamava imperiosamente sua justificativa pela iluminação do passado. (NORA, 1993: 11).

Então, aquilo que, com ênfase, se disse anteriormente quanto ao positivismo, de uma história que nega a memória, com a análise direcionada por determinado vetor, não se sustenta diante do quanto efetivamente produzido pelos historiadores crítico-documentais. Estes alcançaram uma história concebida como memória, com função ideológica precisa: memória da nação, comunidade (imaginada) de todos, que a todos unifica apesar das profundas contradições entre as classes sociais. Por isso toda declarada intenção de fazer história é direcionada para a construção da memória: uma história concebida como memória; uma história concebida com pecado. Não bastasse isso, o culto ao documento é culto à memória, pois documento é exteriorização desta. É meio, fonte, não objeto de reverência.

3.3.3. A primeira e segunda gerações dos Anais e História.

Como foi visto, o positivismo trata o documento de forma privilegiada, especialmente o documento oficial, estabelecendo a sua crítica como centro de metodologia da história. Por outro caminho, a primeira geração da Escola dos Anais rejeita a memória (de forma sui generis, mas quer História) e trata os relatos feitos a partir daquela de forma bastante crítica, negando-lhes geralmente validade quanto àquilo que informam, exceto em situações limitadas e com outros critérios críticos, ou utilizando-os como falsificações que informam, buscando-lhe a razão de ser (uma carta falsa pode ajudar a entender um conflito de interesses).
Para estabelecer o posicionamento da primeira geração da Escola dos Anais quanto à memória relatada, pode-se utilizar o texto de Marc Bloch – Apologia da História: o Ofício do Historiador (2001). Nesse texto, Bloch aponta motivos para a recusa do relato memória, isto é, do relato testemunho: a) limitação humana de perceber o ambiente; b) cansaço ou a emoção; c) as lembranças não atingem a estrutura elementar do passado; d) a faculdade de observação do indivíduo não é uma constante social; e) o erro da testemunha é favorecido por certas circunstâncias sociais, que potencializam a transmissão da notícia falsa, como a censura e a propaganda; há relatos conscientemente mentirosos; f) muitas testemunhas se enganam com toda boa fé.
Bloch (2001, p. 103), para ilustrar a distração (limitação humana para perceber o contexto imediato), reproduz informação de Guillaume de Saint-Thierry amigo e discípulo de São Bernardo, que noticia que este ficara, “um dia muito surpreso ao saber que a capela onde o jovem monge seguia cotidianamente os seus ofícios divinos abria-se, ao fundo da nave, em três janelas, sempre imaginara que tinha apenas uma”. E ao saber dos alunos do professor Claparède, em Genebra, que “mostraram-se, durante experiências célebres, tão incapazes de descrever o vestíbulo de sua universidade quanto o doutor da palavra de mel a igreja de seu mosteiro”.
O autor (2001, p. 103) chama a atenção para o fato de que “em certos espíritos a inexatidão assume aspectos verdadeiramente patológicos”, e que há causas para isso: o cansaço e a emoção, que ocorrem diante da situação em que momentaneamente se encontra o observador, enquanto que outras limitações acontecem em nível da atenção do indivíduo, pois “com poucas exceções não se vê, não se ouve bem a não ser o que se esperava de fato perceber”.
Bloch explica que

[...] muitos acontecimentos históricos só puderam ser observados em momentos de violenta perturbação emotiva ou por testemunhas cuja atenção, ora solicitada tarde demais, quando havia surpresa, ora retida pelas preocupações com a ação imediata, era incapaz de incidir com intensidade suficiente sobre as características às quais o historiador, com razão, atribuiria atualmente um interesse preponderante. (BLOCH, 2001: 104).

Segundo o referido autor (2001, p. 105, 106), deve-se considerar, quanto à faculdade de observação, que esta não é uma constante social. Há épocas em que essa faculdade escasseia, enquanto em outras há maior acuidade no observar. Mas o testemunho não é contaminado por erros apenas em razão de fraqueza dos sentidos ou fragilidade da atenção. A tarefa do historiador não é a do psicólogo, daí porque aquele deve buscar causas na própria atmosfera social de cada tempo. Embora, como antes foi dito, Bloch não despreze, na análise do relato, ou testemunho, a desatenção ou fraqueza dos sentidos, entende que não cabe ao historiador abdicar do estudo que ultrapasse essas fragilidades, em suas palavras – “pequenos acidentes cerebrais”, deixando a tarefa ao campo da psicologia, pois há causas não psicológicas que explicam erros dos sentidos, desatenção, etc.,

Mas, para além desses pequenos acidentes cerebrais, de natureza bastante comum, muitos deles remontam a causas muito significativas de uma atmosfera social particular, eis por que assumem, frequentemente, por sua vez |como a mentira|, um valor documental. (2001 :104).

Veja-se aí que a perspectiva do historiador não é, fixada a falsidade, abandonar o relato (como faria o positivista), mas buscar entender, na atmosfera em que foi produzido, causas profundas para que a inverdade ou a inexatidão tenham ocorrido. E perceber que também serve à explicação histórica o esclarecimento da falsidade ou da falsificação. Há distanciamento da memória.
Os testemunhos, por seu turno, igualmente não alcançam a “estrutura elementar do passado. A psicologia do testemunho alcança, com incerteza, os “antecedentes completamente imediatos”. Muitos fatores devem ser considerados além da imediatidade. Diz Bloch:
Numerosos fatores, muito diversos e muito atuantes, que desde logo um Tocqueville soube vislumbrar, haviam preparado há muito tempo a revolução de 1848 –esse movimento tão claramente determinado, o qual, por uma estranha aberração, certos historiadores acreditaram [poder] transformar em protótipo do acontecimento fortuito. O fuzilamento do boulevard des Capucines foi outra coisa senão a última pequena fagulha? (BLOCH, 2001: 105).

Não é desprezível, no texto de Bloch, a percepção de que o relato falso geralmente é potencializado pela censura e propaganda. O autor observa que a situação da sociedade, especialmente em determinados momentos, favorece a divulgação da noticia falsa, e o erro de uma só testemunha ganha amplitude social, e assinala essa forte ocorrência nos últimos anos contados da escrita da sua Apologie pour  l’historie (1940-1944).
Assim, pondera Bloch:

No entanto, para que o erro de uma testemunha torne-se o de muitos homens, para que uma observação malfeita se metamorfoseie em falso rumor, é preciso também que a situação da sociedade favoreça essa difusão. Nem todos os tipo sociais lhe são, longe disso, igualmente próprios. Nesse aspecto, os extraordinários distúrbios da vida coletiva que nossas gerações viveram constituem outras tantas admiráveis experiências. (BLOCH, 2001: 107).

O autor anota, quanto aos anos da Primeira Guerra Mundial:

Todos sabem o quanto esses quatro últimos anos mostraram-se fecundos em noticias falsas. Sobretudo entre os combatentes. É na particularíssima sociedade das trincheiras que a formação dessas notícias parece mais interessante de ser estudada. (p. 107).

E, sobre a censura e a propaganda como fatores potencializadores da divulgação do falso relato, do “erro de uma testemunha” que se torna no erro “de muitos homens”:

[...] o papel da propaganda e da censura foi, à sua maneira, considerável. Mas exatamente o contrário do que os criadores dessas instituições esperaram delas como disse um humanista: “Prevalecia nas trincheiras a opinião de que tudo podia ser verdade à exceção do que se deixava imprimir. Ninguém acreditava nos jornais; tampouco nas cartas; pois, além de chegarem irregularmente, eram consideradas muito vigiadas. Daí uma renovação oral, mãe antiga das lendas e mitos. (BLOCH, 2001, p. 107).

Bloch também compreende que o engano da testemunha pode acontecer sem má-fé: “não é menos verdade que muitas testemunhas se enganam com toda boa-fé” (p. 102)
O autor (2001, p. 106) entende que “o erro quase sempre é previamente orientado. Sobretudo, só ganha vida sob a condição de se combinar com o partis pris da opinião comum, torna-se então (como) o espelho em que a consciência coletiva contempla seus próprios traços”.
Disso tudo não se conclui que o testemunho seja relegado ao abandono. Afirmou-se que não se descarta o relato falso. Este tem sentido para o historiador: algo determinou a sua existência e ele ajuda a compor o quadro em que se move a inteligência do historiador. Mas, afora a consideração do não uso do documento falso (positivismo) e o seu uso para a compreensão dos processos históricos, Bloch estabelece alguns critérios para análise crítica dos testemunhos ou relatos sobre o mesmo fato, recomendando que fiquem evidentes as discrepâncias que os marcam; a escolha daquele que deve subsistir após a operação lógico-critica (uso do princípio da contradição; contextualização; utilização de fontes vizinhas; etc.); exame do material empregado (exemplo, uso [contrafação] do papel em momento em que esse inexistia); verificação da técnica utilizada ao tempo; observação de semelhanças e verificação se um relato dependeu de outro, ou individuo o copiou alterando termos, voz de verbo, etc.; entender que a estrita semelhança de relato pode indicar que um é cópia de outro; perceber, no entanto, que a similitude do relato pode confirmar o acontecimento ou acreditá-lo; observar se não ocorreu imitação por outrem de relato anterior; “desmarcar uma imitação é, ali onde inicialmente acreditamos lhe dar com duas ou várias testemunhas, deixar subsistir apenas uma”; utilizar a operação estatística, etc. (BLOCH, 2001: 113).
O relato não é abandonado, mas é submetido à lógica do método crítico, que ultrapassa o modelo da crítica interna-externa da escola crítico-documental (positivista), tal como a última aparece na obra citada de Langlois e Seignobos.
Igualmente necessário é a contextualização, sob diversos aspectos, inclusive físicos:

Um documento, que se diz do século XIII, que está escrito sobre papel, ao passo que todos os originais dessa época até agora encontrados o são sobre pergaminho; a forma das letras aparece bem diferente do desenho observado em outros documentos da mesma data; a língua abunda em palavras e figuras de estilo estranhas ao uso unânime. Ou então as dimensões de uma ferramenta, pretensamente paleolítica, revelam procedimentos de fabricação empregados apenas em épocas bem próximas de nós. Concluímos que o documento e a ferramenta são falsificações (BLOCH, p. 110, 111).   

E, com rigor, Bloch (2011, p. 111) diz que “A ideia que, desta vez, orienta a argumentação reza que, em uma mesma geração de uma mesma sociedade, reina uma similitude de hábitos e técnicas muito grande para permitir a qualquer individuo afastar-se sensivelmente da prática comum”.
Embora possa afirmar-se, segundo o autor, que para que o testemunho seja reconhecido como autêntico, o método, vimos isso, exige que ele apresente uma certa similitude com os testemunhos vizinhos. O autor – porque adota muitas determinações – não se esquece de que pode ocorrer a originalidade, invenção, ou distanciamento dos modos vigentes na sociedade:

Não apenas a impressão de uma contradição entre um testemunho novo e seus similares arrisca-se a ter como origem apenas uma temporária enfermidade de nosso saber, como acontece de a discrepância residir autenticamente nas coisas. A uniformidade social não detém tanta força que dela não consigam escapar certos indivíduos ou pequenos grupos. Sob o pretexto de que Pascal não escrevia como Arnauld, que Cézame não pintava como Bouguereau, nos negaremos a admitir as datas reconhecidas das Provinciales ou da Montagne Sainte-Victoire? Acusaremos de falsificação os mais antigos artefatos de bronze pela razão de que a memória das jazidas da mesma época não nos fornece senão artefatos de pedras? (BLOCH, 2001: 115).

O que importa aqui, para os objetivos desse trabalho, quanto à Escola dos Anais, ora tomando como seu representante Marc Bloch, de sua primeira geração, é estabelecer como já foi dito, que não há uma recusa da memória escrita (que aqui é denominada memória imobilizada para distingui-la da memória função), porém um rigor crítico para a aceitação daquilo que deve ser tido como verídico, que vai muito além do método e dos objetivos dos positivistas. Mas – frise-se –não se trata da memória que se expressa a terceiros como oralidade. Não. Se se quiser traçar possível contribuição de Bloch, quanto à aceitação de memória (relato), deve-se cingir ao escrito. No entanto, mesmo no âmbito da oralidade, pode-se adotar, mutatis mutandis, a argumentação metodológica daquele historiador francês, que esteve na origem da Escola dos Anais. Sua contribuição é marcante, mas para os que querem buscar abordagem da memória em seu texto, só a encontrará como memória relatada (relatos, testemunhos), que o presente trabalho prefere considerar memória imobilizada, à semelhança da escrita, que é a palavra imobilizada. Bloch filiou a memória à identidade (Nora, 1993), ao afirmar que a identidade da França é sua memória, ou não é.
O positivismo na “escola crítico documental” submete o texto, como se disse a severa crítica, podendo utilizar os testemunhos escritos à luz de rígidos critérios e, como importa o testemunho verdadeiro, não há espaço para a compreensão de significado do documento falso.
Em contrapartida, a Escola dos Anais, ora representada pela Apologia de História, para criticar o testemunho vai além do texto, e para conhecer a história indaga o porquê do falso testemunho, para a compreensão do dado histórico. Em razão desses aspectos, e outros apontados, termina, por exceder qualitativamente à crítica documental dos positivistas.
Não há entre as duas primeiras gerações dos Anais discrepância. O livro que reúne os textos teóricos de Braudel, não vai além de Bloch, quanto ao método.
No entanto, não há espaço, em ambas as “escolas” (até a morte de Braudel, à frente dos Anais) para a memória coletiva como contributo ao ofício do historiador. Somente após a saída de Braudel da direção da Revista Anais (1971) é que se pode, no âmbito dessa Escola, falar de Memória, sua valorização para a história, sob diversos aspectos. No entanto, pode-se indagar se após Braudel existe mesmo uma Escola dos Anais, ou se a chamada terceira geração dos Anais não é outra orientação, ou melhor, se não expressa diversas orientações.
         Para que a memória apareça imbricada na história, em Bloch, tem-se que partir da noção de documento como memória imobilizada. Introduzindo-se o conceito para a leitura de Bloch, a memória estará contida na História sem com esta confundir-se.

3.3.4. A terceira geração dos Anais e memória.

É certo que a leitura dos textos dos autores da chamada terceira geração dos Anais indica que há um esfacelamento dos avanços alcançados no campo da História pelas duas gerações anteriores em relação aos pressupostos do conhecimento histórico. Assim, tem sentido a expressão, que ganhou mundo, cunhada por François Dosse, que é título de seu livro: História em Migalhas (2003).
Na apreciação de Aróstegui (2000, p. 149),

Seguramente com a saída de Braudel da atividade direta no começo dos anos 70, a escola deixa definitivamente de ser um movimento com coesão básica em todos os sentidos possíveis do termo, do acadêmico ao social, e afloram as divergências, fecundas, sem dúvida, que já haviam nascido nos anos 60 e que tinham dado lugar nos 70 e 80 a uma grande quantidade de derivações que tem sua origem nas posições clássicas da “escola”.

Com a “terceira” geração dos Anais, a memória coletiva passa a ser considerada, reestuda-se Halbwachs, procura-se entendê-la, busca-se distinguir seu alcance e delimitar seu campo em relação ao campo historiográfico. E em 1988 e 1989, Bernard Lepetit, à frente da Revista Anais, dá o tom do momento ao indicar a necessidade de uma virada crítica (tournant critique) em relação às ciências sociais e de experimentar o contato e contribuições dessas. Com efeito, no editorial de 1988 o diretor da revista, dentre outras coisas, diz:

[...] Chegou o momento de misturar do novo as cartas – Não se trata de levantar o inventário interrompido de uma situação que não cessa de mudar sob os nossos olhos, muito menos de fazer a constatação global de um fracasso. Trata-se de tentar, a partir de experiências adquiridas e daquelas que estão em curso, livrar alguns pontos de referência, de traçar algumas linhas de conduta para práticas vigorosas e inovadoras em tempo de incerteza.
[...]
Nem balanço, nem exame de consciência. O momento não nos parece decorrer de uma crise da história cuja hipótese alguns aceitam comodamente. Nós temos, em compensação, a convicção de participar de uma nova situação, ainda confusa, e que se trata de definir, para que se possa exercer amanhã o ofício de historiador. Nós temos ambição de assumir, com muito vigor, uma virada crítica[1].

E, em 1989, o editorial dos Anais concita a:

Desenhar o campo de uma confrontação frutífera das investigações em curso, cristalizar os novos questionamentos e as novas maneiras de fazer com que os canteiros numerosos, mas dispersos, vejam-se definir, estabelecer as bases renovadas sobre as quais fundar o ofício do historiador e o diálogo com as ciências sociais: nossas ambições serão enormes se elas não encontrarem um eco e um apoio na reflexão e no trabalho coletivos. É preciso, portanto, desde agora delinear os primeiros eixos ao longo dos quais avançamos em conjunto. Eles constituem os elementos de uma política redacional. Eles se apresentam como conclamação a uma obra comum.
[...]
Por outro lado, a inovação supõe, no âmbito intelectual como em outros, a diferença. Como escapar do peso das tradições acumuladas, como esquecer as categorias mentais recebidas, ‘as prisões de longa duração’, para produzir um saber novo? A interdisciplinaridade, por que ela multiplica os olhares, assegura o distanciamento crítico em relação a cada uma das maneiras de representação do real, permite quiçá não ficar prisioneiro de ninguém. Ela deve nos ajudar a pensar de outro modo.[2]


Ora, a Escola que se debatera entre a posição de Bloch, que entendia a história como ciência (ciência dos homens no tempo) e Febvre, que mencionava a história como “estudo cientificamente elaborado”, respectivamente em Apologia da História (2001) e Faire de l’Histoire, unira-se em torno de questões fundamentais, como a defesa da história problema em relação ao relato, a fuga da superficialidade, do acontecimento, a crítica à noção de fato histórico, dos acontecimentos, a utilização de múltiplas fontes, etc. Mas, no inicio dos anos 70, especialmente com a saída de Braudel (se se pretender data aproximada), já se nota a fissura entre suas orientações e mesmo em torno de conceitos que vinham sendo criados.
No momento do editorial de março-abril de 1988 dos Anais, sobre a virada crítica, seus historiadores já vinham efetivamente buscando diversos caminhos, como comprova a leitura de História: novos objetos, novos métodos, novas abordagens, de 1974, de Le Goff e Nora.
Não é mesmo licito, partindo-se do aspecto doutrinário que marcou as fases anteriores do Anais, falar em terceira geração – terceira geração da “Escola dos Anais”, com o que se entende por primeira geração (Febvre, Bloch...) e com a segunda (Braudel, Ferro...). É inafastável considerar uma concepção da história e unidade do objeto. Aí, centra-se a ideia de história global. E isso é incompatível com a afirmativa de que não há História, mas sim histórias.
Ora, com a chamada terceira geração, não há continuidade das formas de abordar o histórico e da concepção da história que se desenvolvera nos diversos artigos da Revista Anais.
Daix (1999) demostra que não houve uma sucessão tranquila na direção da revista e toma o testemunho de Ferro: “o resultado de uma crise com o grupo que já dirigia a VI seção, o grupo dos antigos comunistas que se tornaram anticomunistas, Le Roy Ladurie, Furet, Besançon. Eles queriam minha cabeça, sobretudo por causa da minha atitude em 1968 (Daix, 1999, p. 515)”.
É ainda Daix que transcreve trecho da carta de Braudel ao historiador soviético Dalin, na qual se lê que os novos dirigentes da revista deveriam ser criticados,

[...] por se preocuparem com a moda. Quando isso acontece, corremos atrás, ao invés de ir na frente. Por outro lado os novos Annales romperam com algo que fora essencial desde sua criação, uma espécie de desejo de globalidade na história, tentar constituir, a propósito desta ou daquela questão, o conjunto das realidades sociais que constituíram e que são as únicas capazes de explicá-las. (DAIX, 1989: 515).

Fontana caracteriza a fase dos Anais, geralmente conhecida como terceira geração, como fuga à reflexão teórica e sua substituição por procedimentos metodológicos,

[...] da mais reluzente novidade como garantia de cientificismo”, e acentua que “seus traços mais visíveis são o ecletismo (característica habitual do pensamento acadêmico), uma vontade globalizadora, que se justifica pela necessidade de superar a limitação tradicional dos cultuadores da História politica (porém que é, na realidade, o resultado do uso de um instrumento metodológico heterogêneo e nem sempre coerente), e um esforço pela modernização formal que cumpre a função de desviar a atenção para o meramente instrumental, encobrindo a ausência de um pensamento teórico propriamente dito. (FONTANA: 1998, 203-204).

É ainda Fontana quem denuncia a falta de rigor daquela revista após a saída de Braudel:

Não se estranha que a escola haja caído por uns dois anos depois que Braudel abandonou a direção efetiva da revista, fato esse, como já se disse, que refletiria numa queda do mínimo rigor que se tinha mantido até então – sob o feitiço do estruturalismo levistraussiano, que pelo menos, oferecia pautas para a construção de explicações globais.(FONTANA, 1998: 211).


A situação descrita já é indicativa de que não se trata mais exatamente de uma “escola” (Escola dos Anais), mas de uma “geração” que passou a controlar a revista, sem necessária identidade geral de concepção, métodos e objetivo primordial.
O tratamento da memória, pelos historiadores dos Anais, após a saída de Braudel da direção da revista, reflete a situação denunciada por esse e, mais, por Ferro e Fontana. Não se pode buscar, na chamada terceira geração dos Anais, um pensamento único sobre a memória e sua relação com a história.
Com efeito, pode-se tomar como fundamentação da assertiva acima dois posicionamentos, respectivamente de Le Goff (2003) e Nora (1984).
Le Goff, como já foi dito na introdução do presente trabalho, giza e caracteriza os tipos predominantes da memória no decorrer do tempo histórico, inspirado em Leroi–Gourhan. Assim, aponta: a memória étnica (nas sociedades ágrafas), desenvolvimento da oralidade à escrita (correspondentes ao período da Pré-História à Antiguidade), os progressos da memória escrita (do século XVI aos dias atuais), e os desenvolvimentos contemporâneos da memória.
A par de caracterizar bem cada fase de predominância de um dos tipos de memória, há objeções que devem ser opostas ao texto Memória, de Le Goff. Certamente, a primeira daquelas é o caráter bastante eurocêntrico do ensaio (apesar de algumas referências ao oriente). As considerações sobre a memória na época feudal, com seu caráter religioso cristão aplica-se, por evidente, à Europa. A segunda objeção refere-se ao fato de não perceber o entrecruzamento entre diversas memórias, no momento do choque colonial – isto é, a memória letrada dos fins da Idade Média e do Renascimento e a memória étnica dos “colonizados”. Não se pode esquecer, se utilizarmos o quadro da memória na história, proposto por Le Goff, que a colonização encontra os colonizandos grandemente ágrafos (na América, sobretudo), e quando não os encontra assim, as tradições escritas são diferentes (basta pensar nas civilizações Asteca e Maia). Há para a cultura dos povos consequências sérias, inclusive a escravidão ou a substituição de modo de produção com correspondente impacto sobre a memória. Outra objeção, a terceira, que se pode enunciar é certo distanciamento teórico entre o que deve ser dito como memória coletiva e o próprio registro do dado. Não há duvida que, como diz o autor,

[...] a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças sociais do poder. Tornar-se senhores de memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas (Le Goff, 2003, p.422).


Mas, cumpre distinguir aí o que se entende por memória, pois uma coisa é a memória étnica, que remete à tradição, à oralidade, em que o exercício para lembrar é e deve ser contínuo. Coisa bem diferente é o registro daquilo de que se lembra ou que é lembrado num substrato escrito. Essa distinção – o que é mantido na lembrança e o que é registrado num suporte para ser lembrado – tem sérias consequências, inclusive quando se pensa em memória função psíquica e se atribui ao registro o conceito de memória. Não se pode tratar genericamente como memória (sem especificar distinções, ou adjetivar) a lembrança que se perpetua, independentemente do registro por escrito, e o registro em pergaminho ou em outro tipo de suporte. Trata-se do necessário apuro teórico, que – nesse aspecto – não é visível em Le Goff, apesar de constante em suas produções.
Importa, no entanto, dizer que Le Goff (2003, p. 470) tem o mérito de não entender a memória coletiva como algo politicamente neutro. Em mais de um momento de Memória esse historiador deixa evidente que a memória coletiva serve a interesses de grupos, no sentido de que se trata de “uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder”.
Le Goff não faz uma contraposição absoluta entre memória e história, pois:
A memória na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens (Le Goff, 2003, p. 471).

Não se vê em Le Goff uma delimitação entre memória e história, embora possa ser percebido que a memória é algo diverso da história. Mas em quê? – Não ajuda muito a construção “memória na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta”, para distinguir campos do saber, apesar de expressar algo que corresponde ao real, não há delimitação de campos. Aliás, esforço maior não diria que a história cresce na memória, pois inverteria os termos, fazendo da historia algo sempre inclusivo e de memória coisa incluída: memória historiada. Há quem aceite a construção pela correspondência ao concreto. Mas pode-se defender um concreto pensado de forma diferente, delimitando campos. Observe-se que, no geral, Le Goff historia a memória, tornando-a objeto da História.
Dentro da denominada Terceira Geração, encontra-se posicionamento diferente, como é o caso de Pierre Nora, naquilo que se refere à memória.  Ao contrário de Le Goff, Nora quer a demarcação da História face à memória.
Pierre Nora celebra o fim da Historia-memória. Aponta diversos fatores que condicionaram o sepultamento desse tipo de história. Veja-se: fim da Memória como fim de História, se concebida esta como memória. Em seu texto Entre Memória e História – A problemática dos lugares (1984), o autor entende que há um sentimento de ruptura com o passado, já definitivamente morto, e que o interesse pelos museus, arquivos, celebrações, etc., ao invés de significar a prevalência da memória, indica seu esfacelamento. Refugia-se nesses lugares da memória exatamente porque essa se esvaiu. Mas, apesar disso, o interesse por aqueles lugares indica que, apesar do esfacelamento da memória, esta ainda mantém algum vigor que permite o interesse quanto às formas de sua manifestação (encarnação).
O esfacelamento da memória (História-memória) está ligado ao processo de mundialização, democratização, massificação, mediatização e descolonização. As ideologias memoriais, entendidas como aquelas que conservavam e permitiam a transmissão de valores desaparecem, como desaparecem comunidades, como as camponesas de molde tradicional. Aí já não persiste o sentimento de um trânsito sem maior alteração daquilo que se deve reter para preparar o futuro. As nações que emergiram da luta anticolonial defrontam-se com a necessária historicidade e é o mesmo movimento de descolonização que as levou à troca da memória pela História.
A história-memória estava vinculada ao Estado-nação, mas à medida que o estado social se estabelece, passa a viger a relação Estado-sociedade e, com isso, a busca da sociedade pelo saber sobre si. Com a democratização, com a ocupação do lugar e espaço da nação pela sociedade, já não se trata de buscar a legitimação do Estado “pelo passado, mas sim pelo futuro”. Diz Nora (1984, p. 12): “O passado só seria possível conhecê-lo e venerá-lo, e à Nação servi-la, o futuro é preciso prepará-lo”, os três termos recuperaram sua autonomia. A nação não é mais um combate, mas um dado; a história tornou-se uma ciência social, e a memória um fenômeno puramente privado. A nação-memória terá sido a última encarnação da história-memória.
A memória transformou-se igualmente. Não há como não perceber a diferença entre a memória encontradiça nos gestos, nos ofícios, hábitos, as memórias impregnadas, da História, marcada esta pelo voluntarismo e deliberação e entendida como um dever. Não se trata de algo espontâneo como a memória. Deixa a memória de ser gestual, da transmissão de saberes dos ofícios e práticas do trabalho, da continuidade dos hábitos, para transformar-se em memória arquivística.
Ocorre, no novo contexto, a assimilação do termo memória pelo acúmulo de documentos, imagens, etc.: “o que nos chamamos de memória é, de fato, a constituição gigantesca e vertiginosa do estoque material daquilo que nos é impossível lembrar, repertório insondável daquilo de que poderíamos ter necessidade de nos lembrar” (p.15). A memória se expande, desacelera, descentraliza e se democratiza, à medida de sua materialização em diversos suportes (papel, filme, etc.).
Mas, enquanto cresce a memória arquivística e a História substituí a História-memória, os indivíduos são tomados pela coerção da memória coletiva, que se revitaliza em cada um, de forma atomizada.
Nas palavras do autor:

Porque a coerção da memória pesa definitivamente sobre o individuo e somente sobre o individuo, como sua revitalização possível repousa sobre sua relação pessoal com seu próprio passado. A atomização de uma memória geral em memória privada dá à lei da lembrança um mesmo poder de coerção interior. Ele obriga a cada um a se relembrar e a reencontrar o pertencimento, princípio e segredo da identidade. Quando a memória não está mais em todo lugar, ela não estaria em lugar nenhum se uma consciência individual, numa decisão solitária, não decidisse dela se encarregar (Nora, 1984, p.18).

Nas circunstâncias em que o modelo ou a concepção da história-memória são substituídos pela História, o ofício do historiador se modifica:

Seu papel era simples antigamente e seu lugar inscrito na sociedade: se fazer a palavra do passado e barqueiro do futuro. Nesse sentido, sua pessoa contava menos do que seu serviço: cabia-lhe ser apenas uma transparência erudita, um vínculo de transmissão, um traço de união o mais leve possível entre a materialidade bruta da documentação e a inscrição da memória. Em última instância, uma ausência obsessiva de objetividade. Da explosão da história-memória emerge um novo personagem, pronto a confessar, diferentemente de seus predecessores, a ligação estreita, intima e pessoal que ele mantem com seu sujeito. Ou melhor, a proclamá-lo a aprofundá-lo e a fazer, não o obstáculo, mas a alavanca de sua compreensão. Porque esse sujeito deve tudo a subjetividade: sua criação, sua recriação. É ele o instrumento do metabolismo, que dá sentido e vida a quem, em si e sem ele, não teria nem sentido nem vida (Nora, 1984, p. 20-21).

A historiografia (história da História), que indica exatamente o distanciamento e a aniquilação da história-memória pela história, termina por destruir a identidade entre uma e outra, e em lugar do homem-memória surgem lugares de memória. Existe a memória, mas a história memória deixa de existir. Assim pensa Nora.
Nora, portanto, entende que a anterior história-memória foi destruída por fatores presentes na sociedade e pelo desenvolvimento da própria disciplina história, à medida que a própria memória dita verdadeira (gestos, hábitos, prática e transmissão de ofícios) subsiste, mas a memória coletiva se atomiza nos indivíduos e apenas nesses se revitaliza. Mas essa memória não pode ser entendida como história, e se encontra superada a história-memória. Agora, não é a relação Estado-nação, que cobra fidelidade, combate, etc., e que pressupunha um tipo de história como sua memória, que prevalece. Trata-se hoje de a predominância da relação Estado-sociedade a exigir o estudo deliberado com vistas ao futuro. Não se trata de presentificar o passado, estabelecendo sua continuidade com o presente. O historiador não é um agente do Estado-nação com os combates deste, mas um cientista dentro da sociedade, no momento em que a relação, nas novas configurações do Estado democrático, é aquela expressa no binômio Estado-Sociedade, substitutiva de Estado-nação.
Autores da Terceira Geração dos Anais, Le Goff e Nora, como visto, têm posições diferentes, mesmo um método de abordar o tema que apresenta distanciamento,
Um deles, Le Goff, faz a história conviver com a memória coletiva e historia a memória; o outro, Nora, decreta (impiedosamente?) o fim da memória, sepultada pelo avanço da história e materializada de diversas formas nos lugares de memória.
Ambos se distanciam das gerações anteriores dos Anais, mas há tênue semelhança, quanto ao papel do historiador, com algumas assertivas de Bloch, no escrito de Nora.
Nora avança com o seu conceito de lugares da memória e quando os classifica por seus aspectos - material, simbólico e funcional, em sua coexistência, e acentua que o que os constitui é um jogo de memória e história, uma interação dos dois fatores que conduz à sobredeterminação recíproca. Entende que a  memória é sempre viva, sustentada pelos grupos que vivem, sujeita à lembrança e ao esquecimento, é sempre atual, encontra-se enraizada no concreto, no lugar, no gesto, em imagens e objetos, e é absoluta, mas a história repõe aquilo que não mais existe; representa o passado, que recupera, com analise e critica; é universalizante, vincula-se a continuidades temporais, às evoluções, às relações entre as coisas e nega, com o relativo, o absoluto da memória.

3.3.5. A História oral e a memória

A memória apresenta momento de vitória com o boom da História Oral, tendência que se vincula a mais de uma diretriz. A história oral serve ao nacionalismo, ou pretende alimentar a “história vinda de baixo”. Ora quer preencher lacunas diante da ausência de outras fontes, ora declara-se preservacionista dos dados do passado.
Precisamente, é com a História Oral que a memória é recepcionada, com pretensão de definitividade, pela História, ingenuamente ou não. O movimento que leva a esse estágio tem seus condicionamentos econômicos, políticos e culturais evidentes. A ideologia o permeia amplamente. 
É interessante notar que, quanto à diferença entre memória e história, Pierre Nora reitera Maurice Halbwachs e, no entanto, o segundo vincula-se à tradição do realismo sociológico que não é a diretriz do primeiro; o sociólogo durkheimiano retrata a memória como fato social e a entende transmissível entre gerações e, por isso, não a dissolveria entre lugares. Estes certamente sempre existiram, mas como locus de suporte de exteriorização da memória, ou melhor, da memória imobilizada, enquanto que a memória coletiva é animada. Estabelecer a separação entre história e memória coletiva significa reconhecer a existência desta e daquela.
Embora a rigor não exista propriamente História oral, pois a História é una e única, deve-se entender por aquela denominação a utilização de depoimentos  orais, procedimento que foi facilitado com a tecnologia da gravação de som. No entanto, a denominação História oral encontra-se já incorporada no uso dos historiadores.
O fato de a história, elaborada como memória de um povo ou de um grupo, ser descredenciada pela comunidade científica não significa a inexistência de um lembrar junto, isto é, coletivamente, em outras palavras – memórias compartilhadas. O fim do modelo de história-memória e o reconhecimento dessa em lugares é algo diferente de memória compartilhada por muitos com a sua respectiva transmissibilidade.
         A História oral é diretriz que concebe a memória na História, mas essa igualmente naquela.
          Não deixa de ser historiograficamente irônico o fato de Entre Memória e História – A problemática dos lugares (1984) de Nora, haver sido publicado no momento de expansão da “História Oral”, com todas as justificativas dessa quanto à realidade das lembranças pessoais para construção da história social. Em 1978 é publicada a obra clássica de Paul Thompson, reditada em 1988 e traduzida para diversos idiomas (entre 1992 e 2000 houve, no Brasil, três edições da obra). Também J. Vansina, um dos mais proeminentes teóricos da História Oral já estava em atividade: Oral Tradition: a study in historical methodology é de 1965, seu artigo Once Upon a time: Oral Traditions as History é de 1971 e sua Oral Traditions as History data de 1985 (PRINS, 1992). Independentemente de expressões teóricas como as de Paul Thompson, Jan Vansina e Gwyn Prins, o movimento de História Oral já vinha se expandindo. No final dos anos 60 do século passado, os Estados Unidos presenciaram um grande movimento em torno da História Oral: em 1978 foi criada a Oral History Association, que anualmente passou a publicar a Oral History Review, e universidades adotaram programas de História Oral. Em várias partes do mundo atividades e instituições passaram a cuidar das lembranças (memórias) como fontes legitimas da história, inclusive no Brasil (Museu da Imagem e do Som, Museu do Arquivo Histórico da Universidade Estadual de Londrina, Universidade Federal de Santa Catarina, e o setor de História Oral do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea da Fundação Getúlio Vargas). Boa resenha da expansão da História Oral no mundo pode ser vista no “Prefácio à Edição Brasileira” que Sônia Maria de Freitas redigiu para o livro de Thompsom, mas, sobretudo no capítulo 2 de A Voz do Passado – História Oral, do próprio Thompson (2002).
          Todo o movimento da História Oral redundou em obras. Isso significa que a fonte oral, que ocupa posição inferior na hierarquia de fontes no modelo rankeano, estava em ampla expansão quando Nora escreveu o mencionado artigo que tanto impacto causou (e ainda causa). Veja: História oral em suas vertentes – ou por que faltam outras fontes e deve-se servir da oralidade (memória retentiva e evocação), ou por que se deve dar voz aos de baixo.
         Se se entender que o movimento da História Oral justifica a memória animada e seu uso para o oficio do historiador, utilizando e comparando reminiscências (dentre outros procedimentos), Nora não é amparo tão seguro para os que querem decretar o fim da História-memória. A velha história já vinha há muito tempo sendo abandonada, mas isso não significa (como demostra a História Oral) o seccionamento entre a memória animada e a história, pois vertente da história social reencontra a memória, tal é a difícil dialética do sepultamento.
          Concede-se que a utilização da fonte não se confunde com a disciplina que a utiliza. Mas, é necessário reafirmar que a fonte é memória, e longe de poder-se afirmar que todos os esforços de construção de lugares de memória significa que essa estaria morrendo, embora tendo força para resistir ainda, historiograficamente o movimento intelectual estava dando-se, diferentemente daquilo que Nora afirmava, sob seus olhos. Os historiadores pediam que pessoas e grupos lembrassem e a essas lembranças era dado tratamento metódico e sistemático, evitando-se a simples narrativa e verificando-se o impacto das mudanças na consciência dos depoentes.
         A História Oral não significa a acriticidade ou a mera reconstrução de acontecimentos a partir de entrevistas. A tradição é posta em questão, podendo ser confirmada ou não, e analisados móveis de sua invenção.
         No entanto, a partir de fontes orais, retoma-se o reencontro entre história e memória. Gwyn Prins (1992, p. 195) esclarece que:

[...] a reminiscência pessoal permite ao historiador fazer duas coisas. Primeiro, obviamente, ser um historiador no sentido amplo: um historiador que pode extrair matérias de depoentes adequadas para estudar toda a variação de escalas e problemas na história contemporânea. Nenhum historiador da alta política moderna, tendo base nos registros públicos pode esperar ser lido com confiança, se as fontes orais (e, pode-se acrescentar as fontes fotográficas e de filme) não tiveram sido empregadas, de algum modo mais do que poderia esperar um historiador social dos ciganos. Como declara Vansina, os dados orais servem para confirmar outras fontes, assim como as outras fontes servem para confirmá-los. Eles também podem proporcionar detalhes insignificantes que de outra forma são inacessíveis e, por isso, estimular o historiador a realizar outros dados da memoria.

         Não se trata de confundir a extensiva utilização da reminiscência com a própria História, mas não se pode desconhecer que o forte uso das reminiscências introduz uma orientação para os historiadores (inclusive a chamada História vinda de Baixo) em que, apesar de reelaboração imposta pelo ofício, a História aparece junto à memória, como a demonstrar que a imbricação entre ambas exige esforço crítico capaz de elucidar relações tão complexas.
Castanho (2009, p. 12), que insiste na distinção entre memória e história (a cujo pensamento sobre o tema este texto em parte retoma), reconhece a “profunda imbricação, e diria indissociabilidade, que os dois temas possuem notadamente quando observados do ponto de vista mais organizativo que é o da história”.
Não se pode olvidar que as diversas tendências historiográficas tendem a tratar o tema, como foi visto, de forma diferente. Isso torna mais urgente delimitar objetos dos campos do saber: memória e História, ou da substância de ambos.

3.3.6. Materialismo histórico e memória.

É possível uma abordagem da memória a partir do materialismo histórico? Embora Marx e Engels não tenham tratado diretamente da memória, é possível, a partir de seus escritos, formular pensamento sobre aquela, ou oferecer contribuição para seu entendimento.
Eric Hobsbawm tratou de um dos aspectos da memória sob viés marxista, em introdução e capítulo de obra coletiva (HobsbawM e Ranger, 2008). Trata-se de tradições inventadas. Hobsbawm (2008, p. 9) diz o que se entende por tradição inventada.

Por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas de natureza ritual ou simbólica visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado. Exemplo notável é a escolha deliberada, de um estilo gótico quando da reconstrução da sede do Parlamento britânico no século XIX, assim como a decisão igualmente deliberada, após a II guerra, de reconstituir o prédio da Câmara partindo exatamente do mesmo plano básico anterior.

O referido autor esclarece que a “invenção das tradições é essencialmente um processo de formalização e ritualização, caracterizado por referir-se ao passado” (p.12). Muitas vezes a tradição, que se refere a um passado muito antigo, com aparência de algo cuja origem é tão remota que é difícil de imaginar quando surgiu, possui, em verdade, pouco tempo como é o caso citado por aquele historiador da “pompa que cerca a realeza britânica em quaisquer cerimônias públicas de que participe” (p.9), que tem aparência de algo imemorial, mas que é obra dos séculos XIX e XX.
O autor filia a invenção das tradições, mais frequentemente, ao surgimento de transformações rápidas na sociedade. É que essa transformação as exige tendo em vista que faz-se acompanhar da corrosão de padrões sociais, que condena velhas tradições, e seus agentes não conseguem adaptar essas antigas tradições à nova realidade. Diante de transformações “suficientemente amplas e rápidas” inventam-se tradições, modelando-as de tal maneira que aparecem como vinculadas a um passado distante. Para isso, são utilizados elementos antigos que estavam presentes no passado da sociedade, tais como símbolos, rituais, princípios morais, etc. Mas as novas tradições podem descartar elementos antigos e criarem novos, e embora não tenham antecedentes, colocam-se na perspectiva de que dão continuidade ao passado.
A invenção das tradições acontece, sobretudo, no seio de setores tradicionais da sociedade, porém pode ocorrer fora desses ou apesar desses, como é o caso do 1º de maio, celebrado anualmente pelos trabalhadores, em várias partes do mundo.
Hobsbawm classifica as tradições inventadas surgidas após a Revolução Industrial em categorias, ipsis litteris:

Elas parecem classificar-se em três categorias superpostas: a) aquelas que estabelecem ou simbolizam a coesão social ou as condições de admissão de um grupo ou de comunidades reais ou artificiais; b) aquelas que estabelecem ou legitimam instituições, status ou relações de autoridade, e c) aquelas cujo propósito principal é a socialização, a inculcação de ideias, sistemas de valores e padrões de comportamento. Embora as tradições dos tipos b) e c) tenham sido certamente inventadas (como as que simbolizam a submissão à autoridade na Índia Britânica), pode-se partir do pressuposto de que o tipo a) é que prevaleceu, sendo as outras funções tomadas como implícitas ou derivadas de um sentido de identificação com uma “comunidade” e/ou as instituições que a representam, expressam ou simbolizam, tais como a “nação” (Hobsbawm, 2008, p.17).

As tradições inventadas servem a finalidades de manipulação ou são manipuláveis, especialmente quando “exploram práticas claramente oriundas de uma necessidade sentida – não necessariamente compreendida de todo – por determinados grupos” (Hobsbawm, 2008, p. 315).
As tradições inventadas vivem da memória que estabelecem na sua invenção e a partir daí, e pretendem, com vínculo que afirmam ter com o passado, preservar a memória desse. Hobsbawm insere a invenção das tradições em contexto de mudança social, luta política, conflitos sociais e percebe o caráter ideológico das tradições inventadas.
Há bases para a compreensão da memória sob ótica do marxismo:
Algumas contribuições de Marx e Engels são adequadas para a compreensão da memória, especialmente da memória compartilhada (coletiva), apesar de o tema não estar expressamente presente na vasta obra de ambos.
Com efeito, da síntese com que Marx e Engels (2007) caracterizam a história pode-se incluir a memória. Os autores concebem a história como o suceder de gerações. As gerações exploram materiais, capitais e forças de produção, transmitindo-as para as subsequentes, as quais continuam a atividade das anteriores em novas condições. Isso significa que uma geração continua a atividade anterior, porém de forma diferente daquela como ocorria antes. Nova atividade se estabelece, modificando as antigas condições.
Ora esse suceder de gerações explorando materiais, capitais e forças de produção, pressupõe memória, pois há sempre junto com isso, a memorização de práticas, processos, uso e combinação de materiais e das condições em que isso ocorre ou ocorreu, definindo-se, por outro lado, que atividades novas (a partir das anteriores) podem ser estabelecidas e quais as condições para a sua transmissão subsequente.
Considerando-se que a dialética que opõe desenvolvimento das forças produtivas às relações de produção é um dos núcleos do pensamento de Marx, não se pode pensar no desenvolvimento dessas forças sem a memória que transmite o saber correspondente às mesmas.
Pode-se encontrar aí o papel da memória, acompanhando o suceder de gerações, e a transmissão sempre do saber e formas de exploração.
Essa possibilidade de entender a memória a partir da caracterização que Marx e Engels fazem da história como suceder de gerações (fato que não impede rompimentos revolucionários), é dado fundamental, pois importa em dizer que as gerações vinculam-se a uma base produtiva que necessita de memória.
         A noção marxista de ideologia apresenta-se igualmente como contributo para a compreensão da memória. Não faltam autores que indicam o caráter ideológico da memória coletiva, fazendo-o com inspiração (declarada, ou não) em Marx.
         A ideologia é componente que só um saber exigente pode espancar. Marx e Engels a entendem como representação falsa que os homens têm de si e da realidade, num momento, mas também uma representação que a consciência faz dessa realidade para desenvolver a práxis humana. A memória não é infensa a essa problemática da ideologia. Ao contrário disso, abraça-a fortemente. Ao entender a realidade de forma falsa, a memória também será marcada pela falsificação. Veja-se igualmente que há interesse em criar memória para manipulação como ocorre na invenção das tradições.
Outro aspecto relevante é a vinculação (“entrelaçamento”) feita entre consciência, falsa consciência, e realidade, e a dependência daquela a essa, na fórmula que recebeu daqueles autores a síntese: “Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (Marx e Engels, 2007, p.94). Também a memória segue essa asserção. Lembre-se, como dito anteriormente, que Bloch filiou a maior ou menor memorização às épocas, afirmando mesmo que há aquelas que apresentam maiores níveis de possibilidade e de expansão da memória.
Ademais, para aqueles pensadores, “A produção de ideias e representações, da consciência, está, em princípio, imediatamente entrelaçada com a atividade material e com o intercambio material dos homens com a linguagem da vida real”. (Marx e Engels, 2007, p. 93). Não há como pensar em idéias e representações sem memória fundada nas mesmas bases dessas: a atividade material.
Ainda dentro da obra supracitada, há que considerar a preponderância das idéias da classe dominante: “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força ‘espiritual’ dominante (Marx, E ENGELS, 2007, p.47)”.
A memória não é apenas memória de imagens, sensações, ditos, escritos etc. Normalmente vem acompanhada de ideias, ângulo de visão sobre as coisas, opiniões, etc. Um temporal pode vir acompanhado da lembrança do castigo de Deus, punidor dos homens, que destruiu bens da vida, ou em razão de condições atmosféricas específicas.
De grande operacionalidade para a compreensão da memória é o entendimento de Marx quanto à alienação, tratada de forma diferente daquela dada por Hegel, e quanto à reificação. Há memória reificada, há memória alienada. O fato de homens estarem sob condição dominada, tendo de vender sua força de trabalho, sem o controle de seus próprios meios de subsistência, faz emergir a memória de homens sob situação alienante. Sua experiência fundamental é a do trabalho que se objetiva para outrem, que controla seu horário, seu modo de vestir, sua ração, etc., e essa experiência limita ou aliena a sua memória, até que emerja a consciência de classe para si.
Também a reificação opera efeitos sobre a memória: o entender relações entre pessoas como relações entre coisas impacta a memória. Na burocracia, por exemplo, pessoas que são tratadas como peças de u’a máquina (“peça indispensável”, “peça certa”, “peça adequada”, etc.), a memória, em muitos casos, especialmente aquela autobiográfica, será a de componente de uma estrutura que funciona como modelo de máquina. A pessoa lembra-se de como era peça decisiva, no retrospecto autobiográfico, e não como homem, esse “conjunto de relações sociais” (Marx, 2006). Nas ditaduras, sobretudo, a reificação tem espaço alargado: homens e mulheres, tratados sem observância do conjunto de seus atributos, mas sentidos pelos ditadores como inimigos internos, as pessoas lembram-se do terror do Estado que ocupa grande parte de suas lembranças. Para os que resistem, a memória reificada será menor, porque a resistência supõe tomada de posição contra o status quo. Mas há os passivos e os colaboradores, com sua memória reificada, instrumentos para ser acionados, insumos para a tortura e a morte.
Essas antecipações não devem esquecer que a concepção que Marx e Engels têm da história serve para demarcação de campos entre essa e a memória. É que a história o é como condição de ser feita por homens concretos em situações dadas, com suas relações de produção, e forças produtivas que são modificadas (pelos próprios homens), e seu avanço é o avanço dessas e de seu entrelaçamento com as relações de produção, as quais serão alteradas aquando não puderem mais corresponder aos meios de produção. A memória aparecerá neste contexto, como dependente da materialidade do processo histórico, e ao mesmo tempo será componente desse processo tal como percebido pelos historiadores, a História – saber cientificamente elaborado.
O processo histórico desenvolvido a partir do crescimento de forças produtivas e das relações que os homens travam entre si e com a natureza, os conflitos e lutas de classe, as crises, podem ser lembradas, mas podem ser apreendidas pela consciência e escrita como História.
Sérgio Castanho (2009, 12) evidencia a possibilidade de apreensão da memória a partir de um tratamento materialista. Em passagem já citada, tomando o sentido mais corrente e mais estabelecido de memória, considera-a o principal nutriente da história, e acentua sua substantividade, “tanto do ponto de vista do objeto quanto do sujeito” (página 11). Importa notar que esse autor contrapõe o caráter mais substantivo da memória ao sentido mais adjetivo da história, esclarecendo que o termo adjetivo, como o emprega, quer significar que o material utilizado pelo historiador e o conhecimento “organizado e sistemático” de fatos e processos, “implicam uma seleção, uma atribuição de qualidade, o que é próprio do adjetivo”. Mas, essa seleção não é apenas aquela feita pelo historiador, porque se reveste igualmente de escolha da própria sociedade: “A seleção começa pelos fatos que a sociedade considera “dignos de memória” [...] e se completa pela nova organização que lhe faz o historiador” (p.12).
Ora, isso importa em dizer que há uma seleção difusa, feita pela sociedade, e um tratamento organizado e centrado no historiador. Mas com isso, Castanho não deixa de acentuar que a distinção entre história e memória (que ele faz) não conduz à conclusão de que ambas não estejam imbricadas, possuídas pela indissociabilidade que as solda.
É de ser ressaltada a compreensão do autor quanto a u’a memória situada historicamente e aí desenvolvida, e uma história que se aperfeiçoa:

A memória, desenvolvida durante a longa história da sociedade humana, mediante o aperfeiçoamento dos processos e procedimentos mnemônicos e mnemotécnicos, é bem mais confiável e objetiva de que se poderia supor. E a história, tendo progredido teórica e metodologicamente, de forma epistemológica, e não ontológica, apresenta-se hoje como uma ciência da qual é justo esperar resultados bem mais significativos para o indivíduo e sociedade que o historicismo relativista faria crer. Mas isso não significa que não haja os lapsos da memória – individual ou coletiva – nem que a memória deixe de se ajustar aos contingenciamentos de existência individual e grupal, que levam às amnésias parciais ou totais, em que os mecanismos do poder não são nem um pouco negligenciáveis (CASTANHO, 2009: 13).

A existência social, onde vige a luta de interesses contraditórios, molda fatos históricos, assim recepcionados pela memória social. O positivismo, no entanto, não leva em conta essa realidade diversa e conflitual.
Castanho anota ainda, citando Viñao Frago, o caráter seletivo da memória, do esquecimento e da aprendizagem, e o papel fundamental, porque organizador da memória, para estruturar o tempo, entendido este socialmente como rede de relações.
Em perspectiva materialista e desnudante, aquele autor entende (e constata) que a sociedade se lembra, mas também esquece, e que geralmente a voz que nos chega do passado, como memória social, é aquela da classe dominante. Em mais de um passo de seu texto, Sérgio Castanho detecta a memória coletiva em sua função de instrumento do poder e não se esquece de relacioná-la, a partir de critério de identidade, com a memória individual.
A leitura do texto, dentro de seu propósito, que alcança ainda considerações sobre o presente e o futuro, é indicativa de que o approach marxista serve à elucidação desse campo complexo que é a memória.
No entanto, e não era seguramente objetivo do autor ir além dos marcos que ele delineou com segurança, em seu artigo, outras considerações podem (e devem) ser feitas a partir do materialismo.
Certas questões tratadas por Marx e pelo materialismo histórico podem ser chamadas à colação quanto ao tema, como a alienação, por exemplo.
É de ressaltar que, apesar das diferentes tradições da escrita da História, todos os historiadores utilizam-se da memória, que se encontra objetivada, ou que, como na oralidade, após gravada recebe um suporte.



4.  AS BASES MATERIAIS DA MEMÓRIA SOCIAL OU COMPARTILHADA.


4.1. Memória, trabalho e modo de produção.


         Os Homens tiveram de memorizar a melhor (ou a possível) maneira de caçar, pescar, modificar e conservar alimentos, abrigar-se, plantar, colher, ver o tempo propício ao plantio e escolher a terra adequada, etc.
         A memória ao mesmo tempo em que era (é) memória aprendizagem, era (é) aprendizagem memória: aprender e lembrar, lembrar o aprendido ou o que foi experimentado, inclusive o erro. Mas sobretudo lembrar-aprender, aprender-lembrar no processo necessário à sobrevivência. E isso significa dizer igualmente trabalhar.
         Não se pode conceber a memória sem o trabalho. E sem as mãos, por consequência. E essa memória é, assim, memória daquilo de que as mãos são capazes de fazer (ou de virem fazer), especialmente quando a postura ereta do hominídeo se impôs.
Mas se trata igualmente da memória dos pés.
         O aprendizado é deambulatório: é necessário ir atrás da casa, do lugar, do abrigo provisório, etc. É necessário lembrar-se do lugar, do ir e do vir. E, quando a consciência vai-se formando e desenvolvendo-se, cuidam os homens de ampliar as mãos e de aprender lembrar de como ampliá-la com seus artefatos e, no correr dos séculos, com instrumentos cada vez mais sofisticados: trata-se de potencializar as virtudes das mãos para sobreviver.
         Foi dito em capítulo anterior que o trabalho foi indispensável à criação da consciência. Inicialmente, trabalho-labor, advirta-se. Não se pode conceber, na evolução do homem, a memória sem o trabalho. E sem as mãos, por consequência. Aprender e lembrar, lembrar e aprender: o fazer antecedente ao lembrar, ou o lembrar para fazer- são binômios que se encontram no cerne da formação da consciência.
         É complexo o processo que vincula o trabalho à memória (ou vice-versa) e aos instrumentos com que se trabalha.
         A memória de uma técnica ou de artefatos, antes tão disseminada, pode deixar de existir para muitos e ficar adstrita a um grupo de pessoas – artesãos ou lavradores, por exemplo. Para quem deseja utilizar-se da técnica ou dos artefatos há o caminho do treino, da transmissão de conhecimento, ensino ou aprendizagem.
         Envolvido no trabalho pela sobrevivência, o gênero humano ambienta-se, agrupa-se de várias maneiras, aprende, memoriza e evoca suas experiências. Esse dado fundamental expresso no binômio aprender-lembrar (ou lembrar-aprender, depende do momento) encontra-se no cerne da consciência, fundamental para sua lenta formação.
         Apesar da complexidade do dado fundamental de aprender-lembrar, articulado á imaginação, pode-se obter a síntese nas palavras de neurocientista contemporâneo:

A capacidade de manobrar o complexo mundo à nossa volta depende dessa faculdade de aprender e evocar- reconhecemos pessoas e lugares  só porque fazemos registros de sua aparência. e trazemos parte desses registros de volta no momento certo. Nossa faculdade de imaginar possíveis eventos também depende de aprendizagem e evocação e é  o alicerce que nos permite raciocinar e planejar para o futuro e, de modo mais geral, criar soluções inovadoras para um problema. (DAMÁSIO, 2011: 168).


         Dizer que mãos, pés, artefatos, movimento, luta pela sobrevivência, etc, criaram consciência e que o fato de aprender, guardar (registrar) e evocar são ínsitas nessa importa igualmente em afirmar que, formada a consciência, a faculdade da memória ganha grande espaço de autonomia, permitindo aos que não laboram (crianças, por exemplo) lembrem, tenham memória retentiva e memória evocativa.
         Mas a autonomia conquistada não excluiu o fato de o trabalho, o lugar, artefatos, técnicas, etc, serem alguns dos condicionantes da memória em seu duplo aspecto de registrar e evocar, especialmente quando se trata de memória compartilhada por toda a sociedade ou por parte dessa.
         A memória tem sua vigência adstrita a condições sócio–materiais, ou a instituições que a reproduzem. A vinculação da memória ao processo de produzir especialmente, e ao modo de produção como um todo, quanto ao seu compartilhamento entre os membros da sociedade, sua permanência (vigência) e seu esvaimento não se dão como na fórmula – dado que é A será B. Muitos fatores encontram-se em jogo dentro da moldura do vasto quadro que é a formação econômico-social: a persistência de processos antigos em novo modo de produção, a existência de classes sociais e seus interesses (inclusive interesses ideológicos ou simbólicos), conflitos, formas de compartilhamento dos frutos da produção, luta pelo poder, etc. Assim, dado que é A, será B a depender de múltiplas circunstâncias.
         O modo de produção cria a memória compartilhada e a destrói. Não se precisa lembrar de algo que já não mais serve na luta pela sobrevivência. Essa afirmativa se apenas referir-se ao modo de produção pelos seus aspectos mais dominantes pode não ser precisa: ao lado de novas técnicas de construção civil, com seus novos materiais, na zona rural e na periferia de cidades, ainda se preserva e se compartilha: a memória de como fazer a armação rustica de madeira, entrecruzar varas e, entre essas e esteios, colar a argila bem amassada. É a casa de barro batido, ou de sopapo, por exemplo. Pode ser a casa pouco mais evoluída com esteios e vigas de madeira rusticamente preparados e paredes de adobes de argila crus. Mas que mestre-de-obras novo terá necessidade dessa memória de edificações e de pessoas que a compartilhem? Seu saber seguirá a lógica da produção atual. Não precisa da memória dos velhos pedreiros, ou artífices, que viveram em alguns espaços rurais ou na periferia das cidades. A indústria da nova construção civil impõe nova memória compartilhada de conhecimentos e de hábitos (repetição de procedimentos, de movimentos, de manejo de instrumentos, às vezes mecânica, ou quase mecânica).
         Não há um condicionamento estrito: dentro do contexto mais amplo, há condicionamentos variados pelo fato de que o crescimento não se faz por igual na formação econômico-social. Os ritmos da mudança são diferenciados. Percebem-se as mudanças, e mesmo se sabe que essas não seguem padrões de mudanças anteriores, mas há ainda memórias cuja conservação é necessária e, por isso, convivem com a desnecessidade de outras. Dito de outro modo, a memória compartilhada de uma técnica ou de artefatos antes tão disseminada pode deixar de existir para muitos e ficar restrita a grupos de artesãos, lavradores ou criadores. Para quem estiver fora do grupo e desejar tardiamente utilizá-la há o caminho do treino, da transmissão de conhecimento e aprendizagem. Nesse caso, na sociedade dividida, a memória, transformada em saber, ou em saber fazer, não é memória de todos. A sociedade de classes tem memória divida e conflitiva e mesmo na sociedade estamental ha vivências diversas do mesmo, expressando memórias diferenciadas.
         A par da memória já imediatamente desnecessária por força de inovações e que tende por isso a desvanecer e mesmo ser substituída pelo esquecimento (porque já não é operacional dentro do modo de produção e por isso deixa de ser viva) surge outra. Mas contraditoriamente a memória anterior já imediatamente desnecessária sobreviveu de outra forma: como saber do passado, em diversas formas de conservação e de expressão. Interessa agora à História, não ao modo de produção (exceto em aspectos restritos), e à memória institucionalizada de um estado nação, por exemplo.
         Assim, apesar do caráter destrutivo que as mudanças sociais exercem sobre a memória compartilhada, essas mesmas mudanças cuidam de preservá-la para outras necessidades. A história-memória é uma dessas.
         Não se trata, no entanto, apenas de questões técnicas, pois quando se fala de modo de produção, processos de produção, etc, não se pode olvidar que isso pressupõe um conjunto de concretizações. Para isso, os homens travam relações, se organizam ou são compulsoriamente organizados.
         Tome-se o exemplo de uma sociedade camponesa tradicional. Nessa, a família é grupo de produção. A inserção de seus membros na prática de produzir se faz cedo. Sob o aspecto do custo, isso significa dizer que se trata de mão-de-obra sem grande dispêndio e mais solidária, porque os filhos que desde cedo laboram, inseridos na família, são igualmente responsáveis por sua subsistência e dos outros, o mesmo ocorrendo com pais e parentes próximos.
         Ao mesmo tempo, porque o custo de ter filhos não é grande (ainda criança o filho trabalha), pode o casal que nucleia a família ter mais filhos, que serão responsáveis pelo amparo dos pais na velhice, como ocorre nas sociedades tradicionais com suas famílias camponesas. A casa da família tradicional (grupo de produção) é efetivamente local de morada, não é lugar de mero encontro (como ocorre nas sociedades em que a família é formada apenas por consumidores). É família extensa, que trabalha com o conjunto de seus membros, mais estável que a família moderna, com experiências mais fortemente compartilhadas.
        Naquele tipo de sociedade tradicional a memória individual é muito aproximada da memória do grupo: é que, no caso, a experiência é comum a todos, restando o resíduo daquilo que é eminentemente pessoal ­– individual.
         Várias famílias, nas comunidades camponesas tradicionais, trocam experiências, fazem empréstimo de ferramentas ou de utensílios, casam os filhos entre si, compartilham saber fazer, ajudam-se (fazem mutirões, adjutórios), etc.                 Nessa situação há condições propícias à maior memorização: grupo maior tem condições de guardar a memória e transmiti-la. Embora bem integrada, é memória restrita.
        Nora assinala que a comunidade rural “é coletividade-memória por excelência.” (NORA, 1993: 7).
         Numa contraposição entre a família tradicional referida e a família conjugal moderna, em que esse grupo é primordialmente de consumo, observa-se que a segunda é pequena, o filho custa caro, a casa é local de encontro, cada um busca fora do grupo a sua subsistência, etc. Nesse caso, as condições de preservação da memória compartilhada são diferenciadas. Seus membros compartilham, é verdade, de experiências comuns, porém a memória que vagueia por toda a sociedade lhes atinge mais: memória das ocorrências e dos eventos que direta ou indiretamente chega ao grupo, ou que esse experimenta.
         A memória é atributo ativo da consciência, por isso ela própria pressupõe o desenvolvimento de capacidades. Aristóteles (1980) sentiu a necessidade de distinguir entre memória e intelecto; é que, tendo estabelecido que havia memória retentiva (o registro) e memória evocativa, além de deixar esclarecida a diferença entre a coisa representada e o caráter da representação, o Estagirita disse que a intelecção não pode ser subsumida em memórias. Entender, raciocinar, exigiria mais que memória. Sim, mas sem memória não se pode falar em intelecto.
         Em razão do caráter ativo da memória, e mesmo de seus enganos, a relação entre ela e a formação social onde ocorre não é linear. Há condicionantes diversos e diversas formas de reter informações e de evocá-las, trata-se da preconceituação da memória:

Nossas memórias são preconceituadas, no sentido estrito do termo, pela nossa história e crenças prévias. A memória perfeitamente fiel é um mito, aplicável tão somente a objetos triviais. A idéia de que o cérebro retém alguma coisa parecida com uma “memoria do objeto” isolada parece insustentável. O cérebro retém uma memória do que ocorreu durante uma interação, e essa interação inclui fundamentalmente, nosso passado, e até muitas vezes, o passado de nossa espécie biológica e de nossa cultura. (DAMÁSIO, 2011: 169, 170).

         Pode-se concluir que existe u’a materialidade responsável pela formação e preservação da memória compartilhada até quando essa for necessária para o funcionamento/ reprodução do modo de produção, em extensão e duração variáveis. Mas igualmente pode-se concluir que a memória ali formada e compartilhada “é o alicerce que nos permite raciocinar e, de modo mais geral, criar soluções inovadoras para um problema”, como diz Damásio (2011: 168). Não se sabe mais manejar a Jenny (maquina de fiar algodão cuja concepção é de James Hargreaves), nem esta precisa mais de quem a maneje. Sequer ela existe mais, exceto em museus. Mas uma história da sociedade a repõe na memória por meio de seus livros, suas escolas, museus, etc.
         A memória, tal como o saber técnico transmissível, sobrevive enquanto for necessária à reprodução do modo de produção. Ai estão as técnicas, expertise, modelos de organização da força de trabalho e formas específicas de reprimi-la, adestramento das mãos, etc. Como fabricar u’a  máquina a partir do conhecimento de que se pode dar efeito duplo ao vapor era problema posto nos séculos XVIII e XIX, mas esse problema já não se põe no momento em que a energia elétrica já é a força motriz. A memória envolvida na construção de máquina a vapor, seu acionamento, uso e reparos, esvaiu-se enquanto memória viva, agora é memória imobilizada em escritos, desenhos, etc., cujo conhecimento é exigido dos estudantes e professores.
         Necessária para cada pessoa na sua inserção na realidade social, quanto ao aspecto de sua sobrevivência, a memória é compartilhada para que o próprio grupo social sobreviva.

4.2. Memória e  transformação social

         Insistiu-se em objetos, técnicas, máquinas, ferramentas, mas o dado que a elas se refere quanto à memoria pressupõe igualmente produção (para isso elas existem), mas os homens quando produzem mantém relações entre si, subordinadas ou não. Essas relações e seu contexto ­– inclusive modos e estilos de vida – moldam a memória. Não é, por exemplo apenas memória da máquina e de como acioná-la que o operário lembra, lembra sim da sua sobrevivência, do cotidiano quase uniforme, dos controles sobre sua pessoa e sua classe, das dificuldades das greves, do desemprego junto a outros tantos desempregados, dentre outras coisas, e da mudança. Lista incompleta certamente, porque ele se reproduz e vive diante e/ou participando de múltiplas experiências. Não se trata apenas da memória áspera da máquina que engole Carlitos, mas da vida levada (até mesmo às situações limites, ao extremo e ao salto no escuro).
         Memória da mudança, dentre outras acima ditas: a consciência do passado e do movimento. Ai se localiza o cerne da relação história-memória. Os oleiros que sucumbem com suas memórias; arreieiros e seleiros que desaparecem; ferreiros que são substituídos por empresas; marmoristas autônomos que envultam diante das máquinas, etc. Grupos enfim que deixam de existir e cujas memórias espatifam-se. Vivem de início em pequenas ilhas na sociedade. As migalhas de memórias dos respectivos grupos de ofícios, ou grupos especializados, das respectivas famílias de seus integrantes, em razão de conviverem entre si, necessitam de u’a memória comum e criam-na. A dependência recíproca precisa da costura da memória de todos, a qual vai além da memória de cada pessoa, de seus ofícios respectivos, de seu grupo específico: u’a memória comum a todos e de seus trajetos.
         Numa sociedade de classe, a separação da memória do oficio em relação a seus oficiais, possibilita moldar a memória do grupo a partir daqueles que exploram e, portanto criar a memória­ – história. Agora, com a cisão entre trabalhadores e seus instrumentos de trabalho, a memória comum a todos não são meras lembranças de grupos com seus ofícios e de suas relações na sociedade, inclusive as necessárias relações com a natureza. Espatifam-se grupos e suas memórias. Novos meios surgem na forma de produzir e os dominadores destroem os meios anteriores de produção, para levar a cabo a exploração, inclusive destruir ofícios e seu produtos, opor indústria a artesanato, e, perpassando essa materialidade, aqueles dominadores requerem de si a tarefa de justificar, explicar e esclarecer o conteúdo da vida em comum. Para isso servem a história, a religião, muitas lendas, relatos de redivivos griôs desfocados, de certa crítica à realidade, literatura, tradições inventadas, etc. E memória.
         Quanto mais a sociedade simplifica conflitos e, contraditoriamente se encontra mais cindida e complexa (a simplificação não vem acompanhada da moderação da divisão social), a memória esmigalhada entre múltiplos grupos necessita de outra que a unifique e que tente conformar memórias individuais (objetivo não completamente alcançável).
         A sociedade de exploração carece desesperadamente de u’a memória que objetive a um só tempo celebrar a unidade, distinguir a identidade e evidenciar a igualdade da espécie humana (a custo de embotar a cisão entre mulheres/mulheres, homens/homens, homens/mulheres, dominantes e dominados). Tendo servido à sobrevivência do homem, a memória serve à persistência da exploração de classe, mas continua necessária à liberdade, no âmbito da contradição em que está enredada, tal como os homens para sobreviver, desgastam a sua vida mais rapidamente no trabalho sempre penoso.
         Afirmou-se pouco antes que a sociedade necessita de criar (e de recriar, para ser mais preciso - criar e recriar) memória para celebrar a unidade e distinguir a identidade de um povo, mas nem a nação é unidade (salvo que se entenda que o estado a unifique, coisa discutível), nem o povo tem qualquer identidade diante da irrevogável divisão social, até que a revolução destrua a barreira que opõe o homem à (sua) sociedade.
         É que, mesmo com o risco da simplificação (adiante desfeita), pode-se afirmar da memória que se compartilha: dela os explorados necessitam para sobreviver; dela os exploradores precisam para viver, para continuar explorando aqueles. Unindo-os, acrescente-se, mas os dividindo igualmente.
         Assim, não é escandaloso que Jaques Le Goff (2010) em sua súmula de história da memória tenha firmado a memória–religião como memória do medievo europeu: diante da dispersão enorme dos núcleos de poder, a religião cumpriu o papel de ser a memória que unificou (ideologicamente) as tantas memórias dos feudos e suas gentes dispersas e dispersadas. A falta do chamado estado-nação não permitia ainda o surgimento da memória–história (ou história–memória). Mas quando a memória pode ser história essa deixa de perceber como no palco se desenvolvem conflitos que a desacreditam. Mas ela persiste – essa memória que pretende ser memória de um povo.
         É preciso um retorno na leitura: mantém-se a assertiva que relaciona a memória (individual ou compartilhada) às condições materiais vigentes na sociedade e seu descarte. Mas a memória pode sobreviver descolada daquelas, no domínio do acontecimento, e deixando de ser memória viva, ou lembranças, evocação na vida cotidiana, a todo momento, ser memória institucionalizada e, assim, compartilhada.
         A memória compartilhada ou social tem sua vigência enquanto memória compartilhada viva, como se disse, relacionada ao modo de produção e por esse condicionada e, à medida que se desenvolvem as forças produtivas com as suas exigências complementares, os meios de imobilização (objetivação da memória) sofrem mudanças, mesmo que sejam acréscimos. Nesse sentido, falar em memória oral (étnica), memória escrita, tipográfica, etc, tem sentido. Mas isso não significa desconhecer mediações e formas de coletivização da memória. Às vezes, como no mito, uma pessoa o cria e, havendo condições propícias à sua permanência, ele se desenvolve, é acrescido, muda de sentido, etc, e permanece, o que ao mesmo tempo significa seu compartilhamento profundo, enraizado. A igreja, a escola a família, a classe social, dentre outros entes ou instituições, fazem mediações entre a utensilagem do modo de produção e aquilo que deve ser preservado (vigente) como memória, atualizando-a, reproduzindo-a.
         Imersas em conflitos oriundos da forma diferente como se situam diante do controle dos meios de produção, classes sociais, grupos e instituições, em decorrência de como interpretam eventos e processos, pugnam por coletivizar sua própria memória e mesmo até por torná-la memória dominante e justificadora e, a depender do desenvolvimento da sociedade, memória nacional, na forma mesmo da história-memória com seus heróis, ou grupo fundador, seus movimentos nativistas (se for o caso), suas glórias.
         É que não se pode compreender a existência de u’a memória coletiva, social, ou compartilhada sem a sua contextualização, a imaginação e a necessidade de preservá-la como lição ou justificação (aspectos da realidade que andam tão juntos). Mesmo se a memória, por meio de relato de um personagem foi coletivizada, deve-se acentuar que personagem e relato são viáveis em determinado meio social.
         Pode-se objetar quanto à natureza e, dentro dessa, a paisagem, mas u’a memória coletivizada a partir daí, dependerá da relação possível e do momento – relação contemplativa ou relação de alteração do meio, de seus estudos, etc. Relatos sobre o meio natural e relatos da conquista ou alteração desse meio terão mediações e formas de compartilhamento (ou não) diferenciados, até mesmo para justificação, como no prêmio pela descoberta ou conquista da terra.
         Considerando que a memória não é isolada de compreensão (mesmo que em nível imediato, empírico) e de imaginação, essas dificultam o entendimento da relação com o meio de produção, fato que ocorre com outros aspectos da auto-atividade do cérebro. Assim é que, como Le Goff, (2010), pode-se falar numa memória religiosa, mas, como em toda alienação, é sempre problemático distinguir os elementos mediadores entre aquela e o meio de produção, quando se define (corretamente) que religião é inventada a partir de relações que os homens travam entre si e / ou diante da natureza.
         O domínio do acontecimento pode sê-lo em relação a um invento (a máquina a vapor, por exemplo), que é memória e imaginação, com seu impacto. Já não temos uma memória vivenciada por nós de u’a máquina da qual precisamos saber como por em movimento e por isso lembrar como acioná-la. Mas sabemos que ela foi inventada e a história da indústria, a história econômica, etc., preservam sua lembrança. Mas o acontecimento pode consistir numa revolta, numa greve, numa conspiração, etc. Tais eventos decorrem da forma como os homens estão organizados, da formação econômica.
         As mais das vezes não é o acontecimento que é lembrado, mas a sua versão ou o modo de considerá-lo é que é objeto de memoralização. Numa sociedade de classes, cada uma dessas oferece a sua versão. A contradição entre elas faz com que o evento não seja considerado uniformemente em suas linhas gerais. Superar a mera versão, que molda a lembrança, será questão da História.
         Mas e o invento, não será acontecimento? Ele é produto da memória e da imaginação. Os fatos vinculados àquele serão lembrados - memória viva, corrente, no processo de existência humana, porém, quando é possível registrá-lo de maneira descritiva (ou de outra maneira, como a fotografia) será ao mesmo tempo memória viva e memória imobilizada, ou objetivada. Enquanto for necessária à reprodução do modo de produção ela existirá e será estimulada, até mesmo como matéria de ensino. Quando for desnecessária, será objeto da história recente e, com o correr do tempo, da história não recente.
         A sociedade pode não necessitar mais do procedimento técnico que viabiliza o efeito duplo do vapor, mas a História incluirá esse invento tão relevante para o capitalismo e mesmo em razão de suas consequências abrirá extenso capítulo sobre a revolução industrial ou sobre a questão social. Não é aquele invento/descoberta do efeito duplo do vapor algo que importe mais à memória, porém importará à História –a todo tipo de História, inclusive àquele não concebido como história–memória. Pode-se objetar que alguns inventos não teriam maior impacto na vida social e por isso não interessam à memória nem à História registrá-los. Depende de que história: risíveis inventos podem ser objeto da história desses próprios inventos ou de uma história do humor. Sempre haverá quem disponha de tempo para se dedicar a essa forma de diversão ou de diversionismo, às vezes necessária à dominação, pois parafraseando Brecht (Aos que virão) isso é um despropósito, pois implica em calar sobre muitas coisas.


4.3. Memória e conservação atual do passado

         Memória implica passado – é memória do passado (retenção e evocação). Isso dito há tanto tempo, não questionado por muitos na forma como é enunciado, deve ser posto em termos: é passado, porém com a condição de firmar-se que se projeta para o futuro e mesmo pretende moldá-lo. Evoca-se no presente, mas esse é futuro em relação ao passado. A memória assim deseja dominar o futuro – estar presente nesse revela seu totalitarismo. A forma figurativa de narrar a projeção da memória para frente, como se faz aqui, a coloca como mestra da vida, o confiar no mais experiente, o temer a mudança, tentar fazer o passado não passar, a custo elevado de construir pirâmides colossais ou monumentos para a eternidade, se preciso for à custa de manipulações.
         O fazer o futuro lembrar de nós nem sempre é desejo poético: é o reforço agora de mecanismos de dominação indutor de que essa é para sempre. Não se passa exatamente como arte:

De narradora no passado, e do presente que me tomava a mão nos trechos conturbados, aqui está, ó futuro, saltei na sela de seu cavalo. Quais estandartes novos você me traz dos mastros das torres de cidades ainda não fundadas? Quais fumaças de devastações dos castelos e dos jardins que amava? Quais imprevistas idades de ouro prepara, você, malgovernado, você, precursor de tesouros que custam muito caro, você, meu reino a ser conquistado, futuro... (CALVINO, 2014:115).


         Poder e domínio gerados no modo de produção provocam desejo social de permanência. A memória projeta-se como memória objetivada: em textos, em fatos, em monumentos, etc. O que está feito, não apenas o está; conservado para o futuro será evocado, dissipando memórias vivas que não puderam ser imobilizadas (objetivadas), ou que foram destruídas por não interessar àqueles que detêm o poder.
         A projeção da memória imobilizada para o futuro, mesmo da memória compartilhada, pode em linhas gerais assemelhar-se à preservação de dados que o cérebro faz (retenção) individualmente: “O cérebro faz registros de entidades, da aparência que elas têm, de com agem e soam, e as preserva para evocações futuras.” (DAMÁSIO, 2011:168).
         Apenas assemelham: são registros. A forma de evocação é diferente. Num caso o registro encontra-se no cérebro, noutro caso o registro lhe é exterior. Com essa matéria registrada pode-se fazer ficção ou ciência. Mas isso se faz num contexto dado; socialmente a realização ocorre no modo de produção e nas formas como os homens  lutam pela subsistência, pela liberdade, pela arte ou por tudo que as contraria, dominados e dominadores que memorizam–aprendem, aprendem–memorizam.
        Permanecer é projetar para o futuro, no caso da memória.
         O historiador só trabalha com a memória objetivada, mesmo que seja ele a imobilizá-la, e com a sua própria memória viva, como ocorre, a exemplo, com a chamada História oral. Mas mesmo nessa, memória objetivada, não a toma como verdade, confronta com outras, contextualiza, vê sua possibilidade.
         Para explorados e exploradores o compartilhamento da memória, ou memória coletiva, memória compartilhada, se impõe: é atributo da consciência apreendê-la, na forma como é operacionalizada pelas pessoas. Mas não se trata apenas de reflexos, meras apreensões de dados, etc. É preciso perpetuá-la quando se torna impossível vivenciá-la concretamente numa sociedade dada porque ela já não é operacional: os trabalhadores não precisam lembrar como operar telex ou teletipo, porque agora esses já não existem. Assim também ocorre com o acontecimento que se esvai, não repetitivo que é, dado em determinado momento. Mesmo que as condições materiais que correspondem à memória não estejam mais presentes, essa sobrevive, ou pode sobreviver, em registros, tradições, etc.
         A situação material que guardou a memória de Tiradentes e da conspiração de que ele participara já não está presente, mas teimosamente nos lembramos dele (a falsa imagem pessoal, inclusive, como foi fixada por Agostini), por meio de memória imobilizada, objetivada, em documentos e relatos. Compartilhamos como (membros da) nação de sua história. A cada dia 21 de abril, a folhinha, a agenda, os meios de comunicação, etc, falam do mártir. A Polícia Militar rememora seu patrono: o Alferes que deu a vida pela liberdade da nação, como ensina a história.
         Essa imposição de uma memória para todos os membros da sociedade, na forma de um tipo de história (de fatos isolados, encadeados ou como eventos de um processo), decorre igualmente de condições materiais (contradição gerada materialmente entre colônia e metrópole, no caso acima do protomártir de nossa independência) e se perpetua colonizadamente para manter a unidade sob outras formas de coerção do poder, diluir ou postergar conflitos, especialmente quando a pátria está em perigo.
         A essa unidade, para a qual a memória compartilhada é fundamental, costuma-se dar nome de identidade: sentimento de pertencimento. Ser e sentir-se brasileiro, por exemplo.
         Como são deixados de lado os fatores de coerção, ou esses não são apropriados ao momento, cria-se a ideia de identidade, que se sobrepõe às diferenças. A unidade contraditória aparece como identidade. A identidade pode, sim, referir-se à nossa espécie humana, a essa pertencemos. O estar juntos coercitivamente e contraditoriamente só pode ser uma identidade por força de artifícios ou de aspectos passageiros. Um desses artifícios é o culto à memória comum tão a gosto de patriotas.
         As sociedades primitivas buscaram soldar sua unidade (identidade para um pensamento que se detém na aparência das coisas) em um ancestral epônimo. Mas a evolução cuidou de substituí-lo por um passado comum, povoado de símbolos, ditos, heróis e inimigos comuns: ao invés do jabuti e seu clã – clã do jabuti – filia ao presente uma história comum de uma sociedade, ou de um povo: os clãs identificavam-se por um ancestral que lhes dava o nome. A nação cuidou de encontrar um passado comum.
         Para a exploração social e para a dominação, descola-se a memória das condições imediatas que a criaram e se a utiliza para preservar a união, transformada em aparente identidade: fica-se sabendo que se pertence a um povo, tem-se um só passado e sobretudo inimigos efetivos e potenciais comuns. É como dizer: são todos iguais pois são brasileiros. Ou franceses, na França ou em suas colônias. Ou portugueses, em Portugal e em suas colônias. Mas esses tais iguais quando o conflito se faz aberto podem tomar o lado oposto e se porem contra a terra mãe na colônia ensanguentada.
         Essa busca da unificação na contradição, pela memória compartilhada, ou que se quer compartilhada, desde muito tempo operacionaliza-se com a ideia de pátria, ou de nação: comunidade imaginada como quer Anderson Benedict.
         Da pátria – esse ente imaginado e imaginoso – quer-se a memória, ou ela mesma é a memória, como se encontra em texto que gerações escolarizadas nas décadas de 40, 50 ou 60 do século passado certamente leram (apareceu em inúmeros textos para o ensino da língua portuguesa), da pena de Ruy Barbosa:

A pátria não é um sistema, nem uma seita, nem um monopólio, nem uma forma de governo: é o céu, o solo, o povo, a tradição, a consciência, o lar, o berço dos filhos e túmulo dos antepassados, a comunhão da lei, da língua e da liberdade. (BARBOSA, 1961: 15).


         A memória coletiva permanece até que a geração viva, e logo que essa vai saindo do palco sente necessidade de registrá-la diz, em outras palavras, Halbwachs (2006). O processo geral do fenômeno deve ser esse quanto a acontecimentos, modos e estilos de vida. No entanto uma experiência comum pode ir além de uma geração e mais de uma delas pode carregar a memória coletiva como na experiência de sofrer a exploração social, em seus traços repetidos, constantes. O dado do registro é realmente essencial, pois diante da mudança o que era memória viva deverá ser memória imobilizada, ou objetivada.
         Há memória que perpassa gerações independente de sua imobilização, como ocorre com o mito. Criado, aceito, complementado, o mito segue seu curso. Poderá ser registrado (e o será provavelmente em algum dia), mas pode continuar vivo na memória do grupo, transmitido geração após geração.
         Reveste-se de diversas formas a memória para compartilhar (além da história pensada e escrita como memória), como comemorações e tradições inventadas. Essas últimas – tradições inventadas – partindo geralmente (não necessariamente) de um evento que realmente existiu, sobrevive mesmo se contrariar, em muitos aspectos, a História: é o caso do 2 de Julho na Bahia. O desfile dessa data pretendeu ser uma réplica da entrada do exército libertador em Salvador, capital da província. Vencido o exército de Madeira de Melo, firmada a rendição desse, um exército penetrou em Salvador para marcar a libertação da Bahia. Nos anos seguintes a data foi comemorada e o é até hoje. Logo a Igreja Católica a considerou feriado.
         Apareceram depois no desfile imagens de caboclo e cabocla, expressando a nacionalidade; homens vestidos com roupas de couro, como vaqueiros, que lembram os Encourados do Pedrão, pelotão organizado para lutar pela independência pelo padre Brayner, quando dos conflitos no recôncavo da Bahia, alegorias, etc. A comunidade lembra do 2 de Julho. Inventou-se a tradição, fundada no fato real da luta pela independência do Brasil na Bahia.


5. MEMÓRIA COMPARTILHADA, ALIENAÇÃO, REIFICAÇÃO E IDEOLOGIA

5.1. Memória e alienação

         As relações travadas pelos homens entre si, com a natureza e com o produto de seu trabalho não se revestem pura e simplesmente como expressão de sua humanidade, mas de uma redução dessa ou do não exercício de possiblidades, isto é, de realizações: o homem cria e não domina a sua criatura, como ocorre na fantasmagoria religiosa ­­– logo após criar seu deus, a este submete-se temeroso. Isso corresponde a uma realidade, não como reflexo dessa, mas como situação em que o homem se encontra.
         Com a memória compartilhada também: corresponde a uma realidade desumanizada pelos próprios humanos.
         Desprovidos de humanidade, os conteúdos da memória são assim transmitidos: a desumanização é ínsita nesses conteúdos.
         A desumanização da memória compartilhada ou a adoção da memória do dominador pelo dominado, que implica dissociação – lembrar a lembrança dos outros e não a sua própria –, é possível em razão da alienação e da reificação. Esses dois fenômenos, que possuem sua origem na realidade social, moldam memórias compartilhadas. São memórias alienadas ou reificadas que necessitam ser memórias desnudadas.
         A memória, algo profundamente humano, desumaniza-se, por que se aliena ou se reifica. Ou por que é utilizada contra o homem. Ou por que é retirada do homem a possibilidade e o direito de externá-la. Ou mesmo na situação de não lembrar para que a lembrança não se volte contra quem lembra. São exemplos de despojamento de uma faculdade do homem: a memória evocação, ou o seccionamento dessa faculdade: imposição de uma evocação que não corresponde à retenção. Não lembrar de acordo com suas próprias lembranças, por imposição alheia ou por força de inautenticidade.
         O impacto da situação até aqui entrevista exige a verificação da alienação e da reificação e de sua relação com a memória compartilhada; mas também com a História e seus cultores.
         Ponto de partida generalizante (com as dificuldades e críticas que são opostas à generalização inicial) pode indicar em que consiste a relação entre a alienação e a reificação (entendida essa como forma especial da anterior) face à memória: a memória compartilhada para o detentor dos meios de produção é a memória da acumulação e de sua redução a acumulador, situando-o aquém de sua possibilidade humana. A memória compartilhada do trabalhador é a memória da exploração e de sua redução a objeto, da redução de sua atividade a mercadoria.
         A realidade desnuda que referida generalização expressa, na sua forma total como existe é enfumaçada pela alienação/reificação, ou vista por multiplicados óculos de Pangloss.
         Assim é que concretamente, na sociedade, histórias de vida compartilhadas celebram o enriquecimento do self made man, sua astúcia, seu discernimento e sua coragem. Ora o golpe de sorte, ora a herança bem empregada, ora o esforço do trabalho (que não aparece como capacidade para explorar e propriedade de meios de produção), evitando-se, em muitos casos, os pecados da sua acumulação primitiva. Disso não se ausentam histórias memórias da indústria com seus industriais, do comércio com seus comerciantes, dos banqueiros com seus bancos; todos com seus feitos e seus trabalhos em prol do desenvolvimento da sociedade, criando empregos, fundações, obras pias, etc., e marcando paisagens urbana e rural com suas construções e invenções.
        De permeio a tudo aquilo vem a glorificação.
         E precisamente, nas escolas, comemorações, estudos em memória de, as glorias dos feitos, dos heróis (ou equiparados), etc., são lembradas e mandadas lembrar. Aqui, um André Rebouças, ali um 2 de Julho, acolá um general, mais além um monumento para a vaidade, a glorificação que impõe respeito, símbolo do poder: as memórias gloriosas, de que fala Camões:

E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando;
E aqueles que por obras valorosas
Se vão da lei da Morte libertando
– Cantando espalharei por toda a parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte. (LUSÍADAS, 1, II).


         Esses arcabouços da justificação do poder do Estado e da classe ao qual este serve, não deixam perceber o fruto de tudo isso: a exploração do capital sobre não apenas os que vivem de seu trabalho, mas de toda a sociedade. Há nisso tudo a aparência de coisas feitas por verdadeiros homens, a idéia de que esses buscavam bem estar de todos, o sentimento de que eram gênios da humanidade, ou de seu país. A memória se compartilha nessa admiração e fica objetivada em livros, revistas, monumentos, hinos, etc. Rende-se o culto aos poderosos e disso não está ausente a alienação, pois se trata de objetivação.
         No entanto, as possibilidades não relacionadas à exploração, aquelas que revelariam a viabilidade do fim da contradição do indivíduo face à sociedade não estão presentes em referida glorificação dos homens e das coisas glorificadas e, por isso mesmo, lembradas.
         Esse descolar das possibilidades humanas (esse viver para acumular riquezas e ser dessas um servo) marca pesadamente os representantes da classe dominante com a cicatriz de sua alienação e de suas memórias compartilhadas, que introjetam nas consciências como memória compartilhada por toda a sociedade. De outra perspectiva são memórias igualmente partilhadas da exploração que realizam e, por isso, sobre o trabalho alienado.
         Enquanto a sociedade já dispõe de tudo o que é necessário para reorganizar-se diferentemente da forma em como se encontra estruturada, a memória compartilhada é a memória da conservação: evoca o passado, dele retém significados (ou mesmo o relê), perpetua-lhe as características que ainda sejam funcionais. É paralisante diante das múltiplas possibilidades do presente. Nesse sentido também conduz a marca da alienação: a desatualização histórica.
         Não se dissocia a memória compartilhada da lógica do capital: a lógica de acumular e reproduzir. Memória surgida da exploração, a sua arqueologia revela, quando escavadas as camadas inferiores do terreno, a alienação, a redução do trabalho humano a mercadoria, a obra de todos considerada como obra de alguns: trata-se, num lugar, do monumento feito por um poderoso (não decorrente da exploração deste); noutro, de uma batalha vencida pelo general x (nunca vencida por homens reduzidos à condição de máquina de matar com consciências introjetadas de memórias gloriosas e de promessas).
         Quando a história é escrita no modelo de história – memória, a nação é chamada a conhecê-la como História, a mera memória dos dominadores ensinada para ser compartilhada por toda a sociedade.
         A não evocação de oprimidos sequer como força de trabalho (trabalho alienado), ou máquina mortífera (é verdade, concede-se às vezes um monumento ao soldado desconhecido) é memória alienada em relação àqueles porque não é sua memória.
         Pode-se falar numa memória situada do outro lado. Le Goff generosamente fala da necessidade de a memória servir à liberdade:

Cabe, com efeito, aos profissionais científicos da memória, antropólogos, historiadores, jornalistas, sociólogos, fazer da luta pela democratização da memória social um dos imperativos prioritários de sua objetividade científica.
(...)
Devemos trabalhar de forma que a memória sirva para a libertação e não para a servidão dos homens. (LE GOFF, 2010:471).


         Há, no entanto, que considerar-se, em primeiro lugar, que essa memória encontra-se inicialmente contida na memória compartilhada, vigente ou objetivada: não há guerra sem soldados e sem trabalhadores em indústria de guerra; não há monumento sem trabalhadores que o construam ou que tenham produzido argamassa ou recortado o granito. Está oculta, estando presente. Mais oculta de que a personagem Wally na profusão de desenhos e cenas. É preciso rebuscar as paredes para dizer com Brecht:

Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia várias vezes destruída ­–
Quem a reconstruiu tantas vezes? Em que casas
Da Lima dourada moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China
ficou pronta?
A grande Roma está cheia de arcos do triunfo.
Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A decantada Bizâncio
Tinha somente palácios para seus habitantes? Mesmo na lendária
                    Atlântida
Os que se afogavam gritaram por seus escravos
Na noite em que o mar a tragou. (BRECHT, 2001: 166).


         Importa tanto quanto isso, dizer que a memória compartilhada do oprimido tem sido a memória de sua redução a objeto (reificação) ou a redução de sua atividade a mercadoria. A história do capital é igualmente a história do trabalho assalariado que o cria e reproduz. As relações de produção são reproduzidas cotidianamente, em condições de alienação ou de reificação. Os modelos de organização de seu trabalho (Taylorismo, Fordismo, Toyotismo) são modelos reificantes em que o trabalhador é parte da máquina, ou da estrutura em que esta se encontra inserida.
         A memória do homem com a sua exploração é compartilhada a partir do outro, ou a partir daquilo que pertence ao outro. Essa memória tem prevalecido, mesmo quando se fala em revolta, greve, revolução, pois essa é a memória do homem desumanizado (desominizado), que luta contra sua objetivação para ser senhor de sua história e (embora apenas em certos momentos) findar o secionamento individuo/sociedade. Mas mesmo em alguns dos episódios em que o oprimido descoisifica-se, só tenuamente tem consciência de suas possibilidades humanas, ou de sua humanidade. A memória da revolta ou revolução só aparece como memória das possibilidades exploradas para romper a servidão e dissipar o homem objeto, quando ela se nega para revelar-se História. Porque enquanto permanecer no âmbito da alienação, será memória individual de cada um, ou compartilhada por todos os envolvidos no evento. Será a memória alienada, ou reificada, porque se trata da memória a partir do outro ou do objeto.
         O esquecimento também. E é possível a história dos esquecidos, muitas vezes só arqueologicamente encontrada na análise das fontes. Nesse âmbito de considerações, insinua-se a diferença, diferença sob múltiplos aspectos, especialmente a diferença de classes sociais, interesses e conflitos por ela criados: sem a consciência disso não é possível a compreensão de esquecimentos, omissões ou apagamento de memória compartilhada ou que ficou na simples virtualidade de sê-la.
         A memória da situação alienada, quando compartilhada enquanto tal, tem como companheiros de jornada a falta de projeto de liberdade e o operário padrão; a memória das limitações ou do conformismo. Essas se compartilham amplamente, especialmente diante do predomínio da memória de compartilhamento compulsório nas salas de aula, nos museus, no exército, etc, isto é, da memória do outro imposta como memória de todos, logo como nossa memória. Mais uma vez: memória compartilhada a partir da alienação, memória alienada.
         Importa à História denunciar a memória; se aquela não cumprir o desvelamento dessa, ficará aquém daquilo que se pode esperar do saber dos historiadores, que é desnudador, e desnudar todo aspecto alienante ou reificador da memória é uma de suas tarefas: na demarcação de campos do saber e na interpretação dos dados da memória imobilizada (objetivada). Diante do monumento da celebração de uma vitória, ou de uma personagem está a memória imobilizada (objetivada) como condição de projetar-se para o futuro (viver, mobilizar-se no futuro), por isso que é memória para evocação. Toda a composição do monumento está cheia de elementos da alienação. Na sua aparência guarda a memória urbe et orbe, e a preserva (quer preservá-la). Mas, realmente, seu préstimo para o historiador dependerá de crítica/interpretação, o que significa não circunscrever a fonte a mera representação. Aquela fonte certamente está cheia de argamassa, granito, etc, e da memória que se quer transmitir e compartilhar, mas ainda se encontra vazia de conteúdos histórico–significativos, tal como os entende o historiador. A crítica/interpretação irá preencher o monumento de conteúdo historicamente significativo: a vitória que o monumento ou a personagem que ele glorifica será o sangue ou a dominação, já não será memória.
         Em outras palavras: recepcionar a memória e negá-la é a dialética que preside as relações entre memória e História. Não se recusa a memória imobilizada, ao revés disso se a recepciona para, num segundo momento negá-la, porque: ela é tomada como fonte, conteúdos diferentes daqueles pretendidos por aquele que a herdou são descobertos e, no lugar da glória que o testador deixou em herança para que fosse evocado compartilhadamente, o historiador poderá encontrar o crime: tantos são os conquistadores, os heróis, os nossos guerreiros, os pacificadores, que se moveram entre homens transformados em coisa de matar, reificados, e dos quais se transmitem a memória alienada, para alienar.
         O tratamento desalienante e desreificante da memória é campo do historiador, que nega a história-memória e que, tomando a memória imobilizada como fonte confere-lhe outros conteúdos- não necessariamente aqueles desejados pelo autor da memória.
         No tratamento da fonte, a memória do historiador é outra, a memória para o historiador é outra: aquele sal lágrima de Portugal pessoano, pode ser lágrima da África, dos navios negreiros: “Ó mar salgado, quanto do teu sal / São lagrimas de Portugal!” (PESSOA, 1995).
         A afirmativa radical sobre o desfazimento dos conteúdos de alienação e reificação da memória compartilhada pode ser expressa da seguinte maneira: a memória existe em relação ao esquecimento, por isso se cultiva e se preserva a memória, inclusive a memória compartilhada. Para o historiador a memória existe apesar do esquecimento ou de seu encobrimento. Ele encontrará em cada objetivação da memória, outras memórias, aliás, mesmo em objetos e marcas não memórias, pode-se encontrar informação a partir de um dado simples, como diz Björn Kurtén, em outra área do saber:

Em vez de ser parte do próprio organismo, o fóssil pode ser uma espécie de registro da sua presença, como uma pegada ou uma toca fossilizada... Estes fósseis nos proporcionam uma chance única de ver os animais extintos em ação e de estudar o comportamento deles, embora só seja possível realizar uma identificação confiável no caso de o animal ter caído morto e ter-se fossilizado alí mesmo. (BJORN KURTÉN apud ATWOOD, 2005 s/n).


         É que a História não é autopoiesis da memória. Os criadores do oficio do historiador, os positivistas, desejando ou não, assim o fizeram e por isso criaram a História-memória. U’a memória que se autocria, portanto uma memória autopoiética,
na tentativa de criá-la ao contrário. Não estavam isentos da alienação. A memória imobilizada nos documentos tornava-se História, porém história–memória, o que significa uma autocriação da memória no afã dos historiadores de construírem a memória da nação.
         Também não está livre da alienação a noção de identidade tomada a partir de conteúdos da memória, pois isso implica em desconhecer memórias que se contradizem, o caráter contraditório da sociedade e o poder que faz prevalecer a memória dos dominantes como memória de todos, utilizando as instituições, e a inversão da convivência e de mecanismos de compulsão (às vezes violência simbólica) com objetivo de mascarar aquela convivência marcada por contradições.
         Mas a alienação pode tomar aspectos mais graves: na reificação que conforma memórias.

5.2. Memória e reificação


         A reificação ora é tomada como caso de alienação (tipo especial dessa), sua forma superior, ora é tida como fenômeno próprio, embora relacionado àquela. Em outras palavras: reificação é tipo de alienação ou existe ao lado dessa, como conceito próprio que corresponde a determinada situação.
         A teoria materialista da alienação encontra-se nos Manuscritos econômico­–filosóficos (Marx, 2004), enquanto considerações sobre a reificação aparecem em obras mais maduras: O capital e Grundrisse.
         No modo de produção de mercadorias, relações e ações humanas veem-se transformadas em relações entre coisas produzidas pelos próprios homens, as quais tomaram vida independente. Esse é o fenômeno da reificação.
         Em Marx encontram-se os fundamentos para a teoria da reificação quando afirma que:

O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre objetos. Por meio desse quiproquó os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas físicas, metafísicas ou sociais. Assim, a impressão luminosa de uma coisa sobre o nervo ótico não se apresenta como uma excitação subjetiva do próprio nervo, mais como forma objetiva de uma coisa fora do olho. Mas, no ato de ver, a luz se projeta realmente a partir de uma coisa, o objeto externo, para outra, o olho. É uma relação física entre coisas físicas. Porém, a forma mercadoria e a relação de valor dos produtos de trabalho, na qual ele se representa, não tem que ver absolutamente nada com sua natureza física e com as relações materiais que daí se originam. Não é mais nada que determinada relação social entre os próprios homens que para eles aqui assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. (MARX, 1985, I: 71).


         Coube a G. Lukács desenvolver, na década de 20 do século passado, uma teoria marxista da alienação. Embora tenha depois, em 1967, feito crítica ao ensaio que trata da reificação, estas foram no sentido de admitir forte hegelianismo em certas partes e a não observância com que a natureza aparece no marxismo. É certo, de qualquer forma, que a posterior publicação dos Grundrisse e dos Manuscritos econômico–filosóficos de Marx deu suporte ao ensaio A reificação e a consciência do proletariado (LUKÁCS, 1989), e agregou prestígio ao texto, que foi traduzido em várias línguas e continua citado.
        Lukács assim caracteriza, de forma ampla, o fenômeno da reificação:

Já muitas vezes se realçou a essência da estrutura mercantil, que assenta no facto de uma ligação, uma relação entre pessoas, tomar o caráter de uma coisa, e ser, por isso, de uma objetividade ilusória que, pelo seu sistema de leis próprio, aparentemente rigoroso, inteiramente fechado e racional, dissimula todo e qualquer traço da sua essência fundamental: a relação entre homens. (LUKÁCS, 1989: 97).

         O autor insiste que o retalhamento do processo do trabalho em muitas operações parciais “destrói a relação entre trabalhador e o produto como totalidade e reduz o seu trabalho a uma função especial que se repete mecanicamente” (p. 102) e afirma:

(...) pela racionalização e em consequência desta, o tempo de trabalho socialmente necessário, fundamento do cálculo racional, começa por ser produzido como tempo de trabalho médio, apreensível de modo     simplesmente empírico. Para depois, graças a uma mecanização e a uma racionalização cada vez mais adiantadas do processo de trabalho, passar a ser produzido como uma quantidade de trabalho objetivamente calculável que se opõe ao trabalhador qual objetividades consumadas e fechadas (LUKÁCS, 1989. 102).

         O fato de o processo de trabalho apresentar grande fragmentação (o trabalhador realiza apenas uma das muitas fases do processo), ser cada vez mais possível a previsão, medido o tempo necessário para a produção e o trabalho abstrato ser cada vez mais dominante, determina que “as particularidades humanas do trabalhador apareçam cada vez mais como simples fonte de erro, racionalmente calculado de antemão.” (LUKÁCS, 1989: 103).
         Examinando o capitalismo de seu tempo, marcado por forte mecanização, fragmentação no processo do trabalho, predominância do trabalho abstrato, referido autor diz:

O homem não aparece nem objetivamente, nem no seu comportamento, em relação ao processo do trabalho como verdadeiro portador deste processo, está incorporado como parte mecanizada num sistema mecânico que encontra pela frente, acabado e a funcionar em total independência relativamente a ele, a cujas leis tem de se submeter. (LUKÁCS, 1989,103).

 À submissão do trabalhador deve ser acrescido o fato de que quanto mais a racionalização e a mecanização do processo de trabalho aumentam, mais a atividade do trabalhador perde o seu caráter de atividade para se tornar numa atitude contemplativa. (LUKÁCS, 1989:194).

         De toda a situação decorre o fato já assinalado de que relação entre pessoas assume o caráter de uma coisa, adquire com isso uma objetividade, ou autonomia, que parece racional e disfarça a sua natureza de ser relação entre pessoas. Nessa conclusão, está presente o que Marx já observara em O capital.
         Lukács, enfatizando a situação reificante que permeia o capitalismo, admite que:
A mecanização racional penetra até a alma do trabalhador: até as suas propriedades psicológicas são separadas do conjunto da sua personalidade e objetivadas em relação a esta para poderem ser integradas em sistemas racionais especiais e reduzidas ao conceito calculador. (LUKÁCS, 1989: 102).

         O autor, no entanto, acredita que o trabalhador com o conhecimento de si atinja o conhecimento da essência da sociedade, ponto de partida para sua ação transformadora e, portanto, de rompimento da realidade reificante.
         Mesmo admitindo-se a dificuldade de tratar separadamente alienação e reificação, pode-se dizer que na primeira a ênfase está em os produtos do homem assumirem objetividade e aparecerem como algo que os dominem, enquanto que na reificação  são relações sociais que tomam para o homem a feição de relações entre coisas. Isso significa que não podem ser tratadas isoladamente.
         Há quem diga que “coincidem bastante a reificação lukacsiana e o conceito de alienação usado pelo próprio Marx” (KONDER,1965: 25).
         Embora aqui o tratamento da alienação e da reificação tenha se fixado sobretudo, mas não só, no aspecto do trabalho assalariado, da objetivação, um exame que decorre dos escritos de Marx é complexo, como acentua Meszáros:

tem quatro aspectos principais: a) o homem está alienado da natureza; b) está alienado de si mesmo (de sua própria atividade); c) de seu ser genérico (de seu ser como membro da espécie humana); d) o homem está alienado do homem (dos outros homens), (MESZÁROS, 2006: 20-21).

         Para a finalidade da presente estudo, importam esses aspectos, mas a alienação do homem em relação à natureza expressa igualmente sua relação com o produto de seu trabalho, como disse Marx:

O trabalhador nada pode criar sem a natureza, sem o mundo exterior sensível (sinnlich). Ela é a matéria no qual o seu trabalho se efetiva, no qual [o trabalho] é ativo, [e] a partir da qual e por meio da qual [o trabalho] produz.
Mas como a natureza oferece os meios de vida, no sentido de que o trabalhador não pode viver sem objetos nos quais se exerça, assim também oferece, por outro lado os meios de vida no sentido mais estrito, isto é, o meio de subsistência física do trabalhador mesmo. Quanto mais, portanto, o trabalhador se apropria do mundo externo, da natureza sensível, por meio do seu trabalho, tanto mais ele se priva dos meios de vida segundo um duplo sentido: primeiro, que sempre mais o mundo exterior sensível deixa de ser um objeto pertencente a seu trabalho, um meio de vida de seu trabalho; segundo, que [o mundo exterior sensível]  cessa, cada vez no sentido imediato, meio para subsistência física do trabalhador  (2008: 81).

         Os demais aspectos foram vistos, en passant : a alienação do trabalhador de sua atividade – o trabalho que se torna mercadoria, que não lhe pertence, pois continuamente tem que a vender para subsistir. Também, da mesma forma, a desumanização do homem (desominização) foi mencionada: à medida que o trabalhador sofre desgaste, o mundo objetivo se torna mais poderoso e o seu mundo interior se torna mais pobre e cada vez mais deixa de lhe pertencer, mas o faz pertencer ao objeto. Igualmente, o homem passa a considerar o outro homem “segundo o critério e a relação na qual ele mesmo se encontra como trabalhador” (MARX, 2008: 86).
         A situação apresentada supõe limitações, mas igualmente tomada de posições (compreensão do estado alienado/reificado, conflito em relação às condições de vida, etc, que importam, como será visto, em limitação à própria memória compartilhada).
         Mas tudo isso não atinge apenas o trabalhador. A reificação perpassa toda a sociedade, assim como a alienação (concede-se espaço aos que entendem que se tratam de conceitos, que correspondem ao concreto, diferentes). Muitos aprenderam em compêndios iniciais de matemática financeira que juro é remuneração do capital, afirmativa que transforma uma relação social em relação entre coisas; a burocracia trata geralmente os que nela estão envolvidos como peças de uma engrenagem; as ditaduras despojam, ou pretendem despojar, o homem de suas capacidades, coisificando-os, etc. Por isso, também o capitalista segue a lógica do sistema do capital.

        Com efeito, o capitalista,

Ele mesmo se transforma em máquina que se move com a “energia” do capital, que o transforma por sua vez em coisa, uma outra engrenagem do mesmo sistema.
Para que a situação perdure–situação que ele não mais comanda e que segue seu próprio curso–deve ele comprar não apenas forças de trabalho, mas consciências. E, no ato de comprar consciências ele anula sua própria consciência. No ato de desominizar, ele próprio se desominiza. Não é mais um ser humano. É o centro do mundo. Transformando os outros homens em coisa, ele mesmo se coisifica. No ato de ter, ele deixa de ser.
(...) como dono, ele não mais se pertence, pertence ao capital que passa a estimular e a motivar os seu atos. É um instrumento do sistema. Em troca dessa alienação, ele goza a vida.
Mas perdeu para sempre sua alma e sua consciência (BASBAUM: 1977: 36-37).

         A ideologia acresce um componente, que interessa ao estudo da memória especialmente da memória compartilhada.
  


5.3. Memória e Ideologia

         Algo encontra-se subjacente quanto à relação entre ideologia e memória na digressão feita entre alienação, reificação e memória, quanto à gênese e manifestação daquela: o seu fundamento em determinada realidade material (social e natural) é basicamente o mesmo, pois as ocorrências na sociedade têm nascimento determinado pelo seu próprio ser social.
         Igualmente, como foi dito, é acertado mencionar que a memória é necessária em relação a toda produção humana, material ou imaterial. A própria denominação das coisas, tão importante para a sobrevivência da espécie humana e para a interação social, exige memória em seu duplo aspecto de registro e evocação e é integrante da imaginação. Até mesmo quando se cria uma nova palavra, a memória está presente, se não fosse pelo motivo da utilização de meios existentes de que se vale o código linguístico, ali ela estaria pois é ínsita à consciência.
         A relação entre memória e as condições materiais que envolvem as pessoas permite que aquela (memória) se destaque e adquira autonomia, opondo-se aos sujeitos, e o seu cultivo pelos homens tem o mesmo aspecto que Marx apresenta para o cultivo da arte por integrantes de outro momento histórico e de outro entorno econômico-social:

Sabe-se que a mitologia grega foi não apenas o arsenal da arte grega, mas seu solo. A concepção da natureza e das relações sociais, que é a base da imaginação grega e, por isso da [mitologia] grega, é possível com máquinas de fiar automáticas, ferrovias, locomotivas e telégrafos elétricos? Como fica Vulcano diante de Roberts etc., o, Jupiter diante do para-raios e Hermes diante do Crédit Mobilier? Toda mitologia supera, domina e plasma as forças da natureza na imaginação e pela imaginação; desaparece, por conseguinte, com o domínio efetivo daquelas forças. Em que se converte a Fama ao lado da Printing House Square? A arte grega pressupõe a mitologia grega i. é., a natureza e as próprias formas sociais já elaboradas pela imaginação popular de maneira inconscientemente artística (...)
De outro lado: é possível Aquiles com pólvora e chumbo? Ou mesmo a Ilíada com a imprensa ou, mais ainda, com a máquina de imprimir? Com a alavanca da prensa, não desaparecem necessariamente a canção, as lendas e a musa, não desaparecem, portanto, as condições necessárias da poesia épica?
Mas a dificuldade não está em compreender que a arte e o epos gregos estão ligados a certas formas de desenvolvimento social. A dificuldade é que ainda proporcionam prazer artístico e, em certo sentido, valem como norma e modelo inalcançável. (MARX, 2011: 63).  


         Trata-se do fato de que a imaginação, por meio de suas mediações diante da realidade, cria formas capazes de fazer perpetuar sua produção material ou imaterial, como arte, religião, etc.
         Tal como ocorre com a mitologia que, vinculada a formas de leitura do mundo, mediou a arte, também mediando a memória compartilhada encontram-se ideologias. Uma vez que estas se encontrem estabelecidas, influenciam a maneira de construir lembranças compartilhadas.
         A ideologia (como qualquer construção humano-social) só é possível com a memória e se encontra referenciada em determinada realidade econômico social, isto é, em determinada formação econômica. Assim, as condições gerais dadas para a memória compartilhada são adequadas à ideologia, e à memória autonomizada desta que a acompanha. Como a memória é dado necessário para a ideologia, poder-se-ia imaginar uma relação apenas interior, ou subjetiva, mas isso não seria o bastante: a ideologia informa, com outros fatores, a memória e esta a lança tempo adiante, atualizando-a ou dessa  fazendo (já quando não é mais operacional) objeto da história dos homens e de seu ideário. E poderá auxiliar a entender contornos de outras realidades, como é o caso de sua influência na obra de arte. A memória ideologizada do combate socialista e suas ideias repercute na literatura, escultura, cinema, mesmo em suas expressões atuais ou para sua compreensão, quanto a uma vasta produção. O mesmo pode-se dizer de outros combates.
         A ideologia pressupõe memória, num primeiro momento, e num segundo momento a memória é ideologizada.
         Pode-se objetar a ampla generalização que marca o raciocínio anterior. Afinal reitera-se, de outra forma, um dado: a inevitabilidade da memória compartilhada para a elaboração ideológica e sua vinculação concreta à realidade material da sociedade (e à natureza tendo em vista a necessária relação do homem com a natureza). Mas como isso ocorre é um dado ausente que necessita de esclarecimento, pois não se trata apenas de lembrar junto (os homens não lembram sozinhos, estão juntos). O fato envolve mediações e estas são informadas pela compreensão que os homens têm de seu momento histórico e de como projetam o seu devir na sociedade ou o devir que eles entendem dever construir; em síntese: envolve um por teleológico: põe-se uma antecipação. Imagina-se finalidade e o meio de alcançá-la. Mas isso é feito com determinada compreensão da realidade ou com um guia (às vezes fantástico) da interpretação dessa, como se percebe em teorias contratualistas da/ para construção do Estado; dentre outras, a formulada por Jean Jacques Rousseau. Pode-se perguntar, em nível de crítica histórica: em que data, em que lugar, e quem firmou o Contrato Social de que fala Rousseau? Evidentemente vê-se que aquela realidade política descrita/imaginada por Rousseau é algo tão abstrato que não se tem resposta para as perguntas formuladas. No entanto, seu ideário integra na ideologia liberal e com ele o absolutismo foi percebido e lembrado. Sequer seria possível a Rousseau (com a concepção de seu Estado artefato) fazer afirmações categóricas como aquelas que o Exodus faz quanto à legislação (portanto quanto à criação do Estado). Em contexto abstrato (por que religioso), o Exodus fala do dia (terceiro dia da saída dos israelitas do Egito), local (Monte Sinai) e quem (Deus) e por intermédio de quem (Moisés) transmitira a legislação inicial (fundante) do estado dos israelitas. São indicações concretas, porém de uma fantasia de caráter religioso. Em Rousseau há abstração sem o referencial concreto determinado (lugar, onde, quem), pois estado de natureza, superação desse e necessário contrato social não têm concretude: são dados imaginados, uma fantasia política necessária ao combate contra o absolutismo.
         Diferentes entre si, a constituição do Estado (à medida que se constitui seu ordenamento jurídico) por um contrato social ou por uma outorga divina (os dez mandamentos) são maneiras justificadoras para a constituição de uma ordem laica ou religiosa respectivamente. Ambas as construções estão ai na memória de uma democracia burguesa contratada (regida por uma constituição) ou de um estado com motivações religiosas. Apesar da abstração de ambos, uma por força da ausência de lugar, data, atores; outra por conter esses dados como invenção religiosa, não se deve olvidar que decorrem de realidades postas e possuem finalidade: constituir uma relação de mando historicamente possível e espelhada nos conflitos e necessidades existentes.
         Não apenas tem-se memória da ideologia que se professa, como se a tem daquela que se combate. Mas igualmente têm-se memória por meio da ideologia que conduz à compreensão da realidade em muitas situações. Como a memória compartilhada tem fundamento nas diversas determinações da sociedade e a ideologia também, a memória compartilhada encontra-se eivada da ideologia; a compreensão da realidade nem sempre é científica, as mais das vezes é ideológica, e por isso a memória compartilhada apreende a realidade ideologicamente, incluindo sentido finalístico: lutar contra um antigo regime e deixar-se guiar pela liberdade para construir um novo regime pode dar a dimensão do porquê a memória compartilhada está eivada de ideologia, uma realidade dada, uma compreensão dessa como algo injusto (ou disfuncional), uma possibilidade de mudança. A luta contra aquele regime é vista como luta conduzida ideologicamente e, no caso, a leitura da realidade é reduzida grosso modo à falta de liberdade, e as ideias são aquelas de liberdades públicas que devem ser reconhecidas constitucionalmente, da divisão de poderes para evitar o arbítrio governamental, da livre iniciativa, da liberdade contratual, da igualdade perante a lei. A memória não é compartilhada ai como conflito de grupos sociais ou, mesmo que o seja, o compartilhamento dar-se-á como conflitos de grupos conduzidos por ideias. Lembra-se da luta contra o regime anterior e se a celebra com as marselhesas, as bandeiras tricolores, ou mesmo fortes alegorias como o quadro de Delacroix – A liberdade guiando o povo.
         Alfred de Musset em A Confissão de Um Filho do Século, misto de memória, ensaio e romance, evoca sentimentos da juventude e idéias que a motivavam, lembra-se a partir de sentimento dominante, que entendia comum aos jovens, – do mal do século – vivenciado de forma diferente: a partir de respectivas condições econômicas, e lembra-se como as falas revelavam formas diferenciadas de ver a realidade no momento de crise (o livro abrange a realidade de 1814, fazendo recuos a datação anterior, até 1836). A juventude lembrava-se e interpretava a realidade de forma diferente e o mal que a vitimava segundo o autor decorria de uma crise:

Três elementos contribuíam para a vida que então se oferecia aos moços: atrás deles, um passado jamais destruído, agitando-se ainda sobre suas próprias ruínas com todos os fósseis dos séculos de absolutismo; diante deles a aurora de um imenso horizonte, os primeiros clarões do futuro; e, e entre esses dois mundos, algo de semelhante ao oceano que separa o velho continente da jovem América, um não sei que de vago e indeciso, um mar agitado e cheio de naufrágio, atravessado de raro em raro por uma longínqua vela branca – ou por um navio soltando densa fumaça – numa palavra, o século presente, que separa o passado do futuro, sem ser nem um nem outro, não se sabe se se marcha sobre uma semente ou sobre uma ruína. (MUSSET, sd: 12).


         Musset percebia a face exterior da crise, sempre apresentando o novo que não possui ainda tônus suficiente para firmar-se e o velho que teima em permanecer. Em suas palavras: “Toda doença do século presente provém de duas causas, o povo que passou por 93 e por 1814 traz no coração duas feridas: Tudo o que era deixou de ser; tudo o que será não é ainda. Não busqueis fora dai o segredo dos nossos males.” (p.18). Mas isso não o impedia de ver diferenciações de riqueza e comportamentos diferenciados face à crise. A sua visão é aquela do progresso, que Napoleão houvera encarnado. Uma ideologia que permeava a sociedade.
         A memória compartilhada não sofre o impacto da ideologia de forma uniforme, mas de acordo com a posição dos grupos que respectivamente a compartilham diante e em relação aos meios de produção: de diversas ideologias.
         O nacionalismo, por exemplo, é campo fértil de mediação entre a realidade e  memória. Muito daquilo que se escreveu ou que ainda se escreve tem a marca nacionalista. Dispensável é citar a história do Brasil com seus mártires, seus movimentos nativistas, etc. Alain Dieckhoff, que analisa o papel da cultura na formulação da ideologia nacionalista, sintetiza sua função:

A cultura assim sedimentada possui dupla função estratégica: Ela deve, em primeiro lugar, provara existência do povo ao conferir-lhe uma aparência de unidade primordial. Apesar de sua sujeição política, o povo em questão vê-se dotado de uma especificidade própria. Paralelamente, a cultura permite também contestar a ordem política à qual o povo se encontra submetido. Ela serve, então, de fundamento ideal a qualquer diligência tribunícia ao opor-se às pretensões universalistas dos impérios ou dos Estados em nome de particularismos reivindicados. O apelo à cultura deve facilitar a longo prazo a rejeição da subordinação política. (DIECKHOFF; 200: 43-44).


        O autor, em verdade cuida de nacionalismo e de estado nacional.
         Ora, a prova da existência de um povo pressupõe u’a memória, a idéia de um passado comum, compartilhado pelos ancestrais, e o nacionalismo (que mobiliza a cultura) não menos pressupõem a ideologia. E tanto mais forte será a ideologia nacionalista, mais intensa será sua influência no lembrar: lembrar opressões, tratamentos diferenciados, etc. A ótica da memória será nacionalista, pois não só a idéia nacional estará presente na memorização, como também a memória será convocada para construir um estado nação.
         Raciocínios dispendidos até então e situações declaradas deixam implícito o marco conceitual de ideologia até então empregado. Não se trata de outro que não aquele que decorre das construções teóricas de Marx, isto é, trata-se de um fenômeno superestrutural, mas não individual, como esclarece György Lukács (2013). Importa, assim, em considerar ideologia tanto uma forma de compreensão, ou leitura, da realidade ao avesso dessa, em seu aspecto dito pejorativo, portanto, quanto na forma de meios que auxiliam a compreensão da realidade, tornando-a entendida, para dirigir a atuação dos agentes sociais.
        Lukács compreende que:

A ideologia é sobretudo forma de elaboração ideal da realidade que serve para tornar a práxis social humana consciente e capaz de agir. Desse modo, surgem a necessidade e a universalidade de concepções para dar conta dos conflitos do ser social; nesse sentido, toda ideologia possui o seu ser-propriamente-assim social: ela tem sua origem imediata e necessariamente no hic et nunc social dos homens que agem socialmente em sociedade. Essa determinabilidade de todos os modos de exteriorização [ÄuBerungswiesen] humanos pelo hic et nunc do ser-propriamente-assim histórico-social de seu surgimento tem como consequência necessária que toda reação humana ao seu meio ambiente sócio-econômico, sob certas circunstâncias, pode se tornar ideologia. (LUCÁKS, 2013: 465).


         No sentido de forma de elaboração da realidade para a práxis humana consciente, a ideologia pode apresentar-se em defesa do status quo ou contra esse. O nível de conflitos e os projetos das classes sociais e a consciência de classe definirão seu caráter reacionário ou progressista, ou mesmo sua transposição, ou releitura para contextos diferenciados. O evolucionismo de Charles Darwin, no mundo da natureza, projeta-se em expressão avançada, no mundo da ciência, estabelecendo ruptura com a compreensão anterior do mundo dos seres vivos, mas o mesmo não ocorre com o darwinismo social (transposição do darwinismo para compreensão e análise da sociedade), o qual justifica o status quo e induz a práxis da dominação. Lukács acentua que “os adeptos liberais de Herbert Spencer transformaram o darwinismo em ideologia do mesmo modo que fez o séquito reacionário do darwinismo social no período imperialista” (LUKÁCS, 2013: 468).
         A memória não é pura, nem é neutra, mas contaminada, preconceituada, como diz Damásio (2011). Não decorre apenas da sensação imediata do ver, ouvir, tocar, cheirar, mas igualmente do observar com todo o fundo cultural que pessoa ou grupo possuem. E isso é mais aplicável quando se trata de algo social, compartilhado, referenciado a uma realidade humana, como é o caso da memória compartilhada. Aqui a experiência humana de agir e reagir, os interesses de classe, o nível de contradições, etc, impõem seu condicionamento, que conviverá com as reações da memória individual.
         A ideologia é componente do ser social e por isso a memória a carrega em seu caráter compartilhado. Mesmo individualmente isso ocorre, mas de forma diferente, pois a memória individual não é ideologia, por que esta pressupõe atributo superestrutural. Em relação ao caráter igualmente ideológico da memória compartilhada (elementos ideológicos dessa), pode-se afirmar o que em relação às formas de elaboração ideal da realidade disse Lukács: “no âmbito do ser social nada pode ocorrer cujo nascimento não seja decisivamente determinado por esse mesmo ser social” (2013: 466).
         A História tradicional, escrita para ser a memória de determinada sociedade, hipostasia o caráter ideológico da memória dita coletiva, ou da memória nacional: os feitos dos grandes homens motivados pela idéia. Nas celebrações (lugares de memória?) aparece o motriz ideológico com o que se faz a leitura, ou se interpretam, os eventos memoráveis, como ocorre com o nacionalismo:

Insistindo nas especificidades culturais, quando não mesmo acentuando-as, os dirigentes nacionalistas procuram, em primeiro lugar, demarcar o mais possível o seu povo dos outros a fim de conferir uma plena legitimidade às suas veleidades de independência política. A promoção da cultura da Ucrânia, da Bulgária e da Letônia inscreve-se assim numa lógica de modelação identitária e de protesto contra a ordem imperial dos Habsburgos, dos Osmanlis e dos Romanov. Do mesmo modo, a exaltação da cultura negra, árabe ou hindu tinha como objetivo reatar com um passado frequentemente denegrido pelo colonialismo, ao mesmo tempo que criava simultaneamente um distanciamento em relação ao Ocidente, indispensável ao sucesso político dos movimentos de libertação nacional no Terceiro Mundo. (DIECKHOFF, 2000: 44).


         A memória compartilhada, enquanto viva na consciência dos contemporâneos, não exclui o conflito, as lutas de classe, aquilo que da língua disse Bahktin: ser não um presídio, mas uma arena de combate. Em torno de que memória será legada aos que vão nascer, trava-se o combate ideológico para seu estabelecimento. Que memória deve ser legada aos pósteros importa em dizer que memória foi legada à geração presente para que esta a compartilhe e que memória esta legará para que os que vão nascer compartilhem. Esse quefazer será traduzido em livros, imagens, invenção de tradições, dentre outros meios.
         A memória que se quer legar para compartilhamento entre os membros da sociedade pode ser imposta pela história oficial ou pelos modelos de comemorações, dentre outros meios. As comemorações do Sete de Setembro legadas pelo Estado Novo aos estudantes, no modelo marcial pensado pelo ministro Capanema, tinha conteúdo e forma inevitavelmente do nacionalismo armado, e bania qualquer menção a tudo que não conduzisse à uniformidade definida previamente da maneira de encarar o evento: “o pedido para que o Príncipe ficasse, a decisão deste de ficar e de proclamar a independência”, com suas alegorizações, e figurações de grupos étnicos que viviam harmoniosamente. O oficialismo, desmentindo a realidade do processo, ingressava nas escolas com suas razões comemorativas e nessa com a memória que queria compartilhada nacionalmente.
         Mas a memória que se quer compartilhada pelas gerações futuras, na moldagem de tradições construídas, pode ser negociada por grupos com seus interesses.
         É o que ocorre nas comemorações iniciais de eventos marcantes. Foi o que ocorreu com a data magna da Bahia.
        E, com efeito:
         Expulsas que foram as forças portuguesas de Madeira de Melo, desfile dos diversos exércitos ocupou as ruas da cidade do Salvador e depois, anos após anos, tratou-se de organizar o desfile do Dois de Julho, que lembra o 2 de julho de 1823, a chamada Independência da Bahia:

Logo no ano imediato, os patriotas resolveram festejar a data gloriosa com brilhantismo.
Para isso lançaram mão de uma carreta tomada aos lusitanos, nos combates de Pirajá, enfeitaram-na de rama de café, fumo, canas, folha brasileira (cróton), etc e sobre a carreta colocaram um velho mestiço, descendente de indígenas.
E assim conduziram do Largo da Lapinha ao Terreiro de jesus o carro e emblema da ocasião, juntamente com o inolvidável carro de bagagem, ao som de pandeiros, violas, aclamações delirantes, fanfarras, etc. Em 1825, repetiu-se o festejo do ano anterior. Em 1826, porém, encomendaram os patriotas ao escultor Manuel Ignácio da Costa, um carro alegórico ao assunto.
O artista desempenhou-se da incumbência, apresentando o carro atual, cujas rodas são as mesmas tomadas aos lusitanos para levarem a efeito os festejos anuais do triunfo. O esbelto Caboclo ornado de penas, aljava e setas, simboliza o Brasil livre, esmagando a tirania, representada pela serpente, que arfa e se estorce sob os pés do indígena, que, com a mão direita crava no animal ervada taquara e com a esquerda empenha galhardamente o estandarte nacional. (QUERINO, 2009: 57-58).


         O autor, Manuel Querino, descreve o restante alegórico e os desfiles, com o mesmo carro, nos anos seguintes. No entanto dá relevo às negociações entre comissão dos festejos e o governador (comandantes das armas da Província) quanto aos preparativos do 2 de julho de 1849: é que houve proposta para que fosse  retirada a estátua do caboclo, considerada humilhante para os portugueses, e em seu lugar fosse entronizada Catarina Paraguassu, proposta partida do comandante das armas da província, português naturalizado. O caboclo não devia sair no desfile, em seu lugar sairia uma cabocla. A comissão dos festejos não aceitou a proposta e manteve a alegoria do caboclo, embora depois o fizesse acompanhar de uma cabocla.
         As alegorias, o desfile de um grupo de soldados vestidos como vaqueiros (representa um pelotão de voluntários armados e mantidos durante a guerra de independência pelo Pe. Brayner – os Encourados do Pedrão), etc, continuam, mas parte da população de Salvador e visitantes exercem a criatividade em cartazes, palavras de ordem e cantos políticos.
         A tradição do 2 de Julho, em sua forma inventada, sempre esteve acompanhada de conteúdo político – ideológico.
         Nas tradições inventadas, memórias compartilhadas mantêm algum núcleo inicial, mas atualizam-se de acordo com interesses ideológicos daqueles que controlam as respectivas comemorações. Nelas emerge com força a ideologia que permeia a memória compartilhada, seja o aspecto tradicional das pompas, da posse de um Presidente da República ou a entronização de um soberano.
         O lembrar compartilhadamente por parte da sociedade ou de grupos dessa espelha suas condições econômico-sociais com os conflitos decorrentes das diferenciações dos agentes quanto à posição que ocupam em relação aos meios de produção, e dela não se encontram ausentes: alienação, reificação e ideologia. Quando um grupo entende que a evocação é necessária para fortalecer o status quo, mesmo em nível simbólico, e para justificar determinado tipo de mando, lança-a para o futuro como memória que irá explicá-lo.
        É a vontade de história.
         Vontade de historia que permeia a sociedade, quer vontade de lembrar, quer vontade fazer-se lembrada: uma historia- memória que abre contradição – é aquela realmente vivenciada com a visita aos museus, com as datas memoráveis, com os festejos, as pompas da celebração, mas que  preenche campo de representações, não o campo da ciência abrangente da sociedade: o estudo dos homens contextualizadas nos meios e  no tempo. Mas quando é possível fazer das representações História, essa já não será memória compartilhada, pois deverá desnudar-se das explicações meramente ideológicas, alienadas ou reificadas e será contextualizada sócio-economicamente.
         Não se trata de decretar a morte da memória com a emergência da História, mas de entender que: é inevitável para o historiador a memória objetivada; com seus produtos ele trabalha. A própria memória pode ter a sua crítica e a sua História.





6. COMPARTILHAMENTO DA MEMÓRIA USO IDEOLÓGICO DA MEMÓRIA COMPARTILHADA


6.1. Compartilhamento da memória


         A memória, em sua inevitabilidade quanto à consciência, porque é atributo desta, serve à contradição. Sem ela seria impossível a retenção e a evocação de dados indispensáveis à ciência, à aproximação da verdade, ao raciocínio lógico e mesmo à feitura da obra de arte. Uma vez imobilizada, será utilizada de forma contraditória com aquela desejada por aquele que a gravou: uma carta documentará forma de escrever, o estágio da língua, um fato, uma proposta, etc., contrariando aquilo que foi desejado pelo autor, e outros sentidos lhe serão atribuídos.
         Guardamos na memória as palavras e seus sentidos, as experiências certas e as erradas, os ensaios, fórmulas, etc., ou os criamos para evocá-los e usá-los na construção desde o texto ficcional à mitologia, até sistemas filosóficos e ciência. É inesgotável a operação da consciência para inventar, reinventar, modificar, opor remendos, contraditar e contradizer, e tudo isso se realiza com a inafastável memória.
         Há mesmo quanto à obra de arte quem entenda, como Pierre Francastel (1973), que há, ao lado de outros raciocínios, o raciocínio estético, a exigir a memória em sua operacionalização. E muitas vezes é a obra de arte que a guarda. Aristóteles (1980) avisou que memória e intelecto são coisas diversas, mas não advertiu a nenhum de seus possíveis leitores que um não encontrasse na outra pressuposto. Não há possibilidade para a compartimentação entre eles, exceto, como fez o Estagirita, do ponto de vista lógico-conceitual.
         Assim é, porém contraditoriamente: a mente evocará fantasmas com os fantasmas de sua fantasia, mas construirá o conhecimento científico. Utilizar-se-á do código comum para expressar suas evocações e para melhor reter os dados do mundo sensível, no entanto debruçar-se-á para interpretar dados dos quais julgava haver apreendido o sentido.
         E mesmo poderá, na fantasia dos alquimistas, por acaso chegar a uma descoberta. A mente curiosa guarda e evoca sempre.
         Quando a memória se imobiliza em suportes, ou se objetiva, está aberto o espaço para múltiplos usos diferenciados daqueles que estiveram em sua origem; não só usos diferenciados, mas finalidades divergentes. U’a memória forte, como ocorre com Guernica, a lembrar a atrocidade da guerra civil em cidade basca, poderá causar efeito diverso daquele pensado por Picasso e seus comitentes.
         Em relação ao registro e à evocação há um negar constante, na vida da sociedade. A memória individual pode tornar-se coletiva, mas há lembranças que originariamente já o são, isto é, memórias que decorrem de vivência do grupo: qualquer tipo de vivência, participando de eventos, sendo espectador, tomando conhecimento de algo, participando de um mundo do trabalho, vivendo igual cotidiano. São muitas as possibilidades de memorizar coletivamente, ou de compartilhar memória. E de qualquer forma, a memória individual é histórico-condicionada. O homem não escapa de ser um “conjunto de relações sociais” (MARX, 2007: 534). Vê-se que não há u’a memória totalmente individual, pois o homem encontra-se situado numa cadeia de interações e sua memória tem uma função que só pode desenvolver-se em razão de sua vida em sociedade.
         Importa, para a finalidade deste texto, ver a aventura da memória compartilhada, seu sentido, seu uso abusivo ou não.
         Há memórias intensamente compartilhadas, que já são vivenciadas como rotina ou como hábito. Decorrem de experiências correspondentes a ocupações, modos de vida, estilos de vida, trabalho, espaço doméstico, etc. Mas há outros que não possuem essa estrutura de compartilhamento. Há experiências sentidas e lembradas por todos, pelas quais todos passam, como a morte de um próximo, ou muitos passam, como o casamento, o nascimento do filho, etc., que não podem ter a estrutura da memória incorporada com hábito ou rotina. A participação em projetos comuns ou em situações de risco geram memórias bastante coletivas.
         Num estudo da relação memória-história podem esses tipos de memória galgarem primeiro plano, como numa história do cotidiano ou das rotinas do mundo do trabalho. Mas há memórias compartilhadas que, sem excluir a vigência do compartilhamento das memórias já incorporadas como hábitos e rotinas, têm outra estrutura, como é o caso da memória compartilhada de uma greve, uma revolta, uma guerra, uma barricada, etc. Se fosse o caso de utilizar-se o conceito de fato histórico com o seu caráter individual, poder-se-ia dizer que esses eventos geram memórias compartilhadas em momentos que são únicos, porém pertencentes a um processo histórico-social bastante envolvente e os registros desses serão objeto de múltiplas interpretações, de divergência, de lembranças diferenciadas. Aquilo que é evento evocado como movimento de vândalos, pode ser lembrado como revolta contra o capital ou como movimento que expressa a crise.
         O compartilhamento ocorre de forma diferenciada nos modos de produção onde ele é dado: não se pode esperar exceto na fantasmagoria, u’a memória predominantemente étnica compartilhada no modo de produção capitalista, especialmente em seu momento globalizado, quando uma rede mundial de computadores nos faz partícipes de comunidades virtuais ou testemunha em tempo real de fatos, imagens, falas, etc.
         A forma extensiva de enunciar a diferença de compartilhamento da memória a partir da diferença de modos de produção e, nesses, de formações econômicas, não pode excluir consideração meios, processos e lugares onde estes ocorrem. A comunicação direta entre pessoas, a imprensa, as formas abertas e clandestinas, as mensagens na internet, os livros, etc, são meios, dentre outros, de compartilhamento. Mas há lugares como os locais de trabalho, a família, a comunidade, a escola, o sindicato, o partido político, o templo religioso, etc., onde o compartilhamento ocorre de acordo com os meios disponíveis e o estágio de desenvolvimento histórico. As formas e mediações são grandemente abertas, ou são quase únicas, porém eficazes. Não se pode olvidar u’a memória étnica institucionalizada e transmitida pelos sacos de palavras (griôs), oralmente como o são, porém registrados para uso de estudo no mundo.
         No entanto, o compartilhamento trará as cicatrizes ou, mais profundamente, as contaminações da origem das respectivas memórias e, quando institucionalizadas, essas podem tomar o lugar mais alto no podium: pode-se pensar nas genealogias que mantêm status, justificam poder, garantem títulos de proprietários, etc, ou nas histórias oficiais, todas com os profundos sinais da alienação, reificação, ideologia: é que esse compartilhamento não é de u’a memória neutra, mas preconceituada, e abre o espaço para contestações e releituras pelas pessoas envolvidas, ou não, no compartilhamento, as quais também a contestarão de acordo com sua alienação, reificação e ideologia, se permanecerem no campo da memória, ou da ficção, ou com os instrumentais da ciência, se buscarem a História-não-memória.
         A história oficial e as diversas formas da história-memória (crônica, fatos-em-fila, cronologia, etc), institucionalizam u’a memória compartilhada ou para compartilhamento presente ou futuro. Nessa tarefa, as idéias dominantes no tempo deixam suas marcas indeléveis : Euclides da Cunha, ao escrever Os Sertões, obra que considerava cientifica e esboçada “ ante o olhar de futuros historiadores”, e em que caracterizou a campanha militar de Canudos “na significação integral da palavra, um crime”, encontra-se eivado de darwinismo social, no entanto: “A civilização avançará nos sertões impelida por essa implacável força motriz da história que Gumplowicz, maior do que Hobbes, lobrigou, num lance genial, no esmagamento inevitável de raças fracas pelas raças fortes”. (CUNHA, 1985:86). O autor, para compreender o fato de a luta ter ocorrido entre filhos do mesmo solo, diz que o grupo que exterminou os sertanejos de Canudos teve “na ação um papel singular de mercenários inconscientes”, “armados pela indústria alemã” (p.86).
         J. B. Sá, cientista baiano, que nas páginas de A guerra do fim do mundo, obra de Mario Vargas Llosa, aparece como personagem, fez estudo sobre os indígenas camacãs da Bahia, declarando-lhe grande simpatia, mas entendia debalde os esforços para salvá-los do extermínio. Ele diz: “Triste espetáculo, que confrange todos os corações com as dores e os gritos das vitimas; só o filósofo contempla-o da serenidade de sua consciência, sine odio, nec amore, como movimentos imprescritíveis da dinâmica biológica!” (SÁ, 1894: 219).
         Toda a memória feita será marcada para ser compartilhada, ou a memória compartilhada, na forma como foi relatada por um contemporâneo, será marcada pelas idéias dominantes do tempo. Euclides da Cunha, quanto aos sertanejos de Monte Santo, e J.B. Sá quanto aos indígenas camacãs da Bahia, pretenderam, além de deixar registro para o futuro, e o efetuaram contaminados pelo darwinismo social, fazer ciência. Que a memória de Canudos ou a dos camacãs que, por meio de leituras, foram compartilhadas por leitores, especialmente os contemporâneos dos autores mencionados, tenham sido acompanhadas de ideologia dominante parece não merecer contestação. Com muitos textos desse tipo foi conformada u’a memória regional ou nacional.
         Os cientistas, eles próprios, curvam-se às idéias e doutrinas de seu tempo. A memória social não se encontra alheia a esse evocar dos eventos e situações à luz da ideologia, mediação que oculta e justifica ações e interesses.
         Ora, mesmo os estudos que pretendem estar vinculados à cientificidade transmitem u’a memória fortemente ideologizada. Certamente que os Sertões é o grande memorial de Canudos e continuará a sê-lo por um conjunto de qualidades que possui, mas a denúncia que ele faz do crime é realizada justamente com a ideologia (darwinismo social) que justificou tantos crimes. João Batista de Sá, por sua vez, fazendo visita científica aos camacãs, cheio de idéias da nefrologia e do darwinismo social, relata a situação de abandono e decadência daqueles indígenas, mas ao invés de perceber os fatores socioeconômicos que os conduziram àquele estado miserável expõe visão comprometida vinda da Europa: Roma locuta, causa finita est.
         A memória compartilhada a partir daqueles textos, posta em curso nos centros do saber como parte de memória nacional, está embotada ideologicamente.

6.2. Institucionalização da memória compartilhada

         A memória compartilhada, uma vez institucionalizada, hipostasia a ideologia. Reproduzida em monumentos artísticos, em livros adotados na escola e cujo conhecimento é objeto de avaliação, em artigos e discursos, relatada em cada comemoração, etc., a memória compartilhada, quer local, quer regional, ou nacional, circula amplamente, apaga outras memórias, ou, alterada a ordem, já não servindo a novos fiadores dessa, é substituída. Os currículos escolares com seus respectivos programas e ementas estão ai para serem atualizados diante de novos interesses, da grita dos dominados, ou para a formação daquilo que se convencionou chamar de consenso civilizado. A memória compartilhada simbólica pode ser legalmente banida se um novo poder mais alto se alevanta. Lê-se num livro de História do Brasil para a 4°série ginasial, que foi bastante adotado nas escolas:

Várias medidas tendentes a fortalecer a unidade nacional foram introduzidas em 1937. Entre elas, a centralização do poder. Os governos dos estados voltaram às mãos dos interventores nomeados pelo Presidente da República. Por outro lado, a nomeação dos prefeitos ficou a cargo dos interventores.
A bandeira, hino e demais símbolos da República passaram a ser os únicos permitidos oficialmente, abolindo-se as antigas bandeiras e emblemas de caráter regional. Um decreto-lei regularizou, ainda, o uso dos símbolos nacionais. (PEDROSO, 1956: 302).


         A linguagem do texto é reveladora: atos ditatoriais passam a ser medidas tendentes a fortalecer a unidade nacional. Fim da autonomia do corpo eleitoral para eleger governadores é considerado volta a uma situação anterior (de quando, do Império?): os governos dos estados voltaram às mãos dos interventores (figura surgida pós 1930, abolida em 1934, reintroduzida em 1937).
         Não é definitiva u’a memória compartilhada, mesmo quando institucionalizada. Mas deixa raízes. Sobre isso, a memória dos professores de História têm muito a dizer: pense-se naqueles que viveram 1937, 1945, 1964, e que acompanharam os textos disponíveis ou mesmo os escreveram, ou, em outro contexto, na fala de Musset:
Morto Napoleão, as potências divinas e humanas estavam de fato bem estabelecidas, mas as crenças nas mesmas deixou de existir. Há um perigo terrível em saber o que é possível, porque o espírito vai sempre mais longe. Uma coisa é dizer-se: isso poderia ser. Outra: isso foi. (MUSSET, sd: 13).


         A lembrança daquilo que poderia ter sido, já não conta mais. É um projeto vencido. Mas o impulso destrutivo / construtivo de uma revolução finca raízes.
         Compartilhar a História é difícil, exceto quando se trata de história-memória. Compartilhar a memória é algo quase que espontâneo, quando não é imposta nas escolas, igrejas, etc.
        A memória compartilhada e institucionalizada resiste. É combatida pela História, mas resiste. Conta com governos e classe dominante para continuar seu império e justifica-se com a necessidade de manter a unidade nacional, preservar a identidade, ou cultivar os valores de um povo. O Estado pode dar-se ares de neutralidade ou de consenso civilizado e prometer ensino ministrado com observância do pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, porque sabe que há todo um aparato representado por meios de comunicação, editoras, conselhos editoriais, ou seja, uma potência econômica capaz de, sobre o discurso e desprezando-o, dizer o verdadeiro desejo do poder.
E a memória compartilhada da classe dominada é esmagada.
Mesmo academicamente, a memória, que se quer compartilhada, veste-se de armadura, lança em riste, derrota a adversária. Assim, u’a memória criacionista, fortemente estabelecida, sagrada, sobrevive em centros do saber-poder diante dos ataques, ou justificada pelo pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, num discurso que não aparta a ciência do mito, nem faz a ciência do mito para desmitificá-lo. Os exemplos do combate da memória contra a História, ou da história-memória contra a História são muitos. Um exemplo bem disponível é o caso que envolve Nelson Werneck Sodré e Joel Rufino dos Santos em face de Américo Jacobina Lacombe: o caso da História Nova, no Brasil: dessa diz Lacombe, dentre outras coisas:
Além de deformar a mentalidade juvenil com conceitos errôneos e falsos, abomina e despreza tudo quanto aprendemos na maneira de interpretar a História. Amesquinha o culto cívico e deslustra os mais memoráveis fatos da nacionalidade (LACOMBE apud SODRÉ: 1964: 30).
         
         A perseguição à História Nova e aos seus autores (Nelson Werneck Sodré, Pedro Celso Uchoa Cavalcante Neto, Pedro Alcântara Figueira, Joel Rufino dos Santos), com Inquérito Policial Militar, prisão dos autores e censura da obra, encontra-se relatada em “História da História Nova” (SODRÉ, 1967). A denominação História Nova, neste contexto brasileiro, não tem o mesmo sentido que ficou consagrado na Europa ou nos Estados Unidos, pois aquilo que Werneck e colaboradores buscaram foi a desconstrução da história-memória no Brasil, apresentando alternativas para compreensão do processo histórico brasileiro de forma critica.
         Deixando-se guiar por escrito de Italo Calvino, roubando-o do contexto da ficção em que se encontra, percebe-se u’a memória capaz de retificar a realidade: “Se na memória do mundo não há nada a corrigir, a única coisa que resta fazer é corrigir a realidade alí onde ela não coincide com a memória do mundo.” (CALVINO, 2010: 124).
         A glória dos memoráveis bandeirantes que empurraram nossas fronteiras ainda além da linha do Tratado de Tordesilhas é a memória que absolve o bandeirante da escravização ou do extermínio dos guaranis das missões, e que apaga motivações da expansão fronteiriça.

6.3. Uso ideológico da memória compartilhada

         Desempenha função ideológica a memória compartilhada, especialmente quando se institucionaliza.
         A idéia de nação tem como pressuposto a memória compartilhada, institucionalizada na memória-história para continuar a ser compartilhada. A idéia de nação, como um construto ideológico, ou como “comunidade imaginada” (ANDERSON BENEDICT), traz em si a memória comum do povo, o seu passado comum e, geralmente, a vinculação com a continuidade. Quando não há um passado comum, se o inventa com o mito capaz de vincular o passado conhecido com aquele que se desconhece, podendo ser a fundação de Roma por Rômulo e Remo, a criação de Lisboa por Ulisses, a origem troiana do povo francês, etc. A partir daí desenrolam-se fatos, que são historiados.
         Uma das primeiras preocupações para o estado nacional é a preservação de sua memória e a escrita de sua história no modelo de memória. É necessário dizer que há uma história própria, um passado comum, um povo bem definido. Se esse povo não está bem definido, ou se ele decorre de várias origens, ou etnias, isso não é um problema: são raças que formaram a nacionalidade e uniram-se nos diversos momentos para proteger o solo, a exemplo dos liderados por Felipe Camarão e Poty na expulsão dos holandeses do Brasil. Essa manipulação aprofunda-se nos livros escolares e nas escolas. Se antes falava-se em grupos ou raças formadoras da nacionalidade, agora fala-se na proteção às “manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório Nacional.” (BRASIL, 2008). Em outro modo de dizer: um país mestiço com sua história branca cuja cultura dos não brancos precisa ser protegida pelo estado nacional.
         Com a idéia da nacionalidade a política elabora e desenvolve o nacionalismo, mesmo que tenha que inventar um povo: algo a que é conferida uma unidade sobre divergências, algo a que se atribui a capacidade de forjar um destino: um nós, esse povo. A matéria que, junto ao Território e à Soberania, no entender dos clássicos da teoria política, cria o Estado. O nós, profundamente cindido que, formando contraditória unidade, exige uma história, na verdade u’a memória: uma história-memória. Marx acentuou o fato de a História encontrar-se intimamente ligada à existência do Estado.
         A memória compartilhada tão importante para a idéia da nacionalidade, e para a noção de uma unidade primordial humana (povo) num território, soma-se à lei, à religião, à escola, à família, às instituições, enfim, para reforçar o poder e sublinhar a identidade, a diferença diante do estrangeiro: o que faz do brasileiro, do alemão, do argentino, serem o que são: algo dotado de identidade própria, da especificidade, mas: do esquecimento daquilo que seria uma identidade de todos: a humanidade, a essência, que caracteriza o ser humano. A memória compartilhada entre integrantes da população do estado nacional é o componente que a justifica. A memória fundaria a identidade do povo.
        Ora, isso remete à justificação da guerra.
        É inevitável dizê-lo.
         A memória compartilhada, nascida pelo simples fato da convivência e dos diversos modos de interação social, ao ganhar institucionalização, por meio da política justifica a guerra. Essa, nascida de interesses econômicos, precisa de nuvens de fumaça para justificar-se ou para não revelar reais motivos. Aqui, é o uti possidetis memorizado para justificar a tomada de um território, acolá um direito histórico – um legado de antepassados ou mesmo de um deus, um “sai da tua terra, e de tua parentela e da casa de teu pai, e vem para a terra que te mostrarei”.
         No entanto, é inevitável que exista a memória compartilhada e essa, integrante que é da consciência, encontra-se no limite mesmo da sobrevivência do grupo. Como sobreviver sem que todos se lembrem de como resolveram desafios? Mas, à medida que se torna um culto, à medida que se institucionaliza com conteúdo autônomo, a memória compartilhada desenvolve potencial de uso justificador de ações de classes dominantes e do Estado. Sua função unificadora e identitária não está revestida de qualquer neutralidade. A identidade nacional | regional esquece a diferença. Importa falar sobre “berço dos filhos e o túmulo dos antepassados” (BARBOSA, 1961: 15).
         Acompanhada de seus símbolos, dísticos, hinos, cores e efígies, a memória compartilhada institucionalizada é armazém provido de bens da nacionalidade e da identidade, que se encontram à mão para lembrar o alienado pertencimento a um solo, um povo, um percurso: o primeiro – mal distribuído, concentrado; o segundo – dividido; o terceiro – glorioso, apesar do sangue. Enfim, uma comunhão, mesmo que ao preço do apagamento de outras memórias.
         A exclusão se estabelece contraditoriamente: o que é divergente é esquecido ou subsumido em uma finalidade. Então aquilo que identifica ou representa a unidade sobrepõe-se à razão do conflito e de seus cadáveres, pois era necessário combater o separatismo; eram necessários meios vigorosos para evitar o esfacelamento da pátria; a reação foi indispensável para repor o equilíbrio entre forças centrífugas e centrípetas; a civilização se sobrepôs à barbárie, etc. A explicação justificadora e unitária | identitária não revela os “segredos internos” (MARX) dos eventos e dos processos. Em certo sentido, é a continuação da epopeia que, desaparecida da literatura, mantêm sua forma geral de compartilhar a saga de um povo.
         A exclusão ou o esquecimento cumprem a função esperada da institucionalização de u’a memória compartilhada ou preparada para ser compartilhada. O que o inimigo é para a política, a exclusão é para a memória. Ambos levam em conta o outro, porém o fazem para reforçar instâncias de poder.
         Envolvida com os aspectos imediatos e aparências, fenômeno, por que não se trata de um saber analítico, a memória compartilhada não se liberta da ideologia, da alienação e da reificação, por isso exige o culto. Mesmo que ela se refira aos oprimidos: é que a não penetração no âmago das coisas não lhe permite aprofundar no conhecimento de suas diversas determinações. Pode haver um saber científico para tratar da memória compartilhada e de sua institucionalização, mas essa em si mesma reside no campo da aparência. E, enquanto aparência, é apenas um dado inicial sobre a realidade. Mas isso não exclui o fato da inevitabilidade da memória para a ciência, ou de adotar-se um ponto de vista cientifico para a memória compartilhada tomada como objeto.
         A memória compartilhada em si, mesmo que surpreendentemente seja entendida como síntese (não soma) de memórias individuais, sempre esteve pronta para permanecer e ser utilizada para reforçar a ordem, ou quando é compartilhada em grupo contrário à ordem, esta opõe-se a esse e o sufoca com o discurso da unidade (que pode ser lido como justificador da ordem legal da exploração de uma classe social por outra), ou com a institucionalização. As várias memórias compartilhadas, na arena de combate da sociedade, cedem a u’a delas que estará nas salas de aula, nas comemorações, etc, e poderá moldar mesmo as formas de evocação da memória, considerada tradição inventada, como ocorre com muitas celebrações do 1°de Maio, entre sorteios e música-mercadoria, em alguns lugares, e falas de mudança em outros.
         No entanto, como a luta de classes é continuamente alimentada à medida que são reproduzidas as relações de produção, deve-se entender que u’a memória compartilhada por explorados estará presente, também para ser utilizada ideologicamente como instrumento de mobilização e combate, até que surja a História que considere os oprimidos.
         Alguma coisa fica para revelar que debaixo da espessa bruma da identidade, unidade, pátria, nação, etc, encontram-se o conflito real e suas memórias.
         A permanência e o culto à memória podem ser garantidos por uma das formas de sua imobilização para evocação no presente e no futuro. Howard Fast conta que, entre as páginas de cada revista e jornal de um clube aristocrático de Boston, o Atheneum, no dia 23 de agosto de 1927, encontravam-se volantes com o seguinte texto:

Neste dia, Nicola Saco e Bartolomeo Vanzetti, sonhadores da fraternidade do homem, que esperavam poder encontrar na América, foram levados a uma cruel morte pelos filhos daqueles que há muito tempo fugiram para esta terra de esperança e de liberdade. (FAST, 2009: 235).


        É a memória.
         É imediatamente a memória e quem a imobilizou, nos inúmeros exemplares de volantes, deseja compartilhá-la mesmo com inimigos.
        Inimigos americanos.
         Compartilha-se a memória como se compartilha saber e cultura. No entanto, há memória vigente, como foi dito, de saberes necessários à sobrevivência, de práticas, hábitos, etc., com correspondentes modos e estilos de vida. É memoria compartilhada que se vivencia continuamente numa formação econômico-social, enquanto servir aos objetivos dessa, ou for operacional quanto a suas necessidades. Mas, na história há que se distinguir as evocações da longa duração daquelas que têm sua origem em espasmos, como revoltas, revoluções, golpes de estado, eventos abrangentes, ou mesmo de um processo que se consegue encadear. São lembranças diferentes. Não se trata de vivenciar no dia a dia de uma unidade produtiva, por exemplo, aquilo que se lembra e é necessário para reproduzir capital, pois um  evento de que se pode vivenciar terá sua especificidade. A história positivista falava no fato histórico e na sua individualidade, irrepetibilidade, em oposição ao geral e repetível fato social. Embora não se possa centrar a História em a noção de fato histórico e seu liame de causa e efeito, toma-se aqui essa idéia como simples topo (lugar) para consignar que é diferente u’a memória cotidiana daquela do evento. Uma se repete, a outra não, cada evento é diferente do outro.
         Um evento pode até marcar e conformar certos aspectos da realidade para um período longo: uma ditadura poderá deixar marcas no direito (o entulho autoritário), traços ideológicos na memória que ela projeta para ser compartilhada (comemoração marcial nas escolas do Dia da Independência, por exemplo). Há aquela parte do passado que não quer ser sepultado: aquilo que Musset caracterizou como “um passado jamais destruído, agitando-se ainda sobre as próprias ruínas com todos os fósseis...” (MUSSET, sd: 12). Há portanto, diferença entre o necessário compartilhamento de memória, como saber, hábito, comportamento, etc, e a memória do evento. No entanto, pode-se dizer que ambos têm utilidade para o capital, ou em linguagem canhestra porém direta: servem para ganhar dinheiro. A memória compartilhada não traz em si somente valor simbólico. Aqui não se está a referir-se apenas a dinheiro ganho com os livros best-sellers de história-memória, mas também à função econômica que a carga ideológica da memória desenvolve, justificando status quo. No primeiro caso, trata-se da memória que se tornou mercadoria: nos livros mais vendidos de história, nas revistas de história, etc. No segundo caso, a memória dos massacres, dos projetos que não deram certo (rebeliões, etc) e a mobilização da ordem. Mas um dos aspectos econômicos desse uso da memória compartilhada encontra-se na expropriação: memórias expropriadas.
         Há memórias compartilhadas que são abafadas, são perigosas, não podem vir a lume. Vivem na clandestinidade. São caladas. Sua possível objetivação em escrito incidiria no campo do pensamento perigoso. Não são esquecidas. São vivenciadas no silêncio, ou não saem de um grupo, que as transmite. O grupo, ele mesmo, não pode expressá-las. No entanto, como que a reviver a prática dos antropólogos de varanda, alguém consegue, em proveito seu, de meios de comunicação ou de editores, falar por aqueles que não puderam fazê-lo, ou que temem fazê-lo. U’a memória que era vivenciada compartilhadamente, mas que não podia vir à tona na voz de seus próprios memorialistas, é retirada dai, expropriada, tornada mercadoria com algum rótulo que faça referência a: revelação de um fato desconhecido; relato proibido de....; segredos revelados etc. A vivência da memória que não podia extrapolar fronteiras, uma vez devidamente expropriada de seu grupo, vira mercadoria, na forma de ficção-história, história-memória.
        É que à memória objetivada não é estranha à economia.
         A memória escrita para ser compartilhada possui por diversas vezes o motivo frio do cálculo e do lucro. Mas não se pode olvidar que por idênticas vezes conduz o conteúdo estético: a emoção. Aqui os sacrifícios e feitos audazes de Anita Garibaldi; acolá, um dragão negro do mar (João Cândido) que diz não à chibata; ou um Lopez derrotado bradando epicamente: “Morro com minha pátria e com a espada na mão”.
         A memória compartilhada é ficcionável e (como tudo) a ficção a torna ainda mais compartilhável. Essa ficção não poucas vezes é que a fixou, como foi dito quando se tratou do texto ficcional em relação à memória. E isso também demonstra o caráter contraditório que a memória compartilhada possui: o uso da ficção para construí-la ou mantê-la. Uma não-assim memória. Ela é acessível: pode ser comprada. É como a reação da personagem de Margareth Atwood diante do cartaz do planetário: “Elisabeth acha consolador o fato de que mesmo as belezas eternas custem dinheiro”. (ATWOOD, 2005: 86).
        E como custam.
         Há obras monumentais que são construídas para manter a memória. Verdadeiros locais para o seu culto, imponentes e caros, como a mostrar (para induzir) a pequenez dos oprimidos diante dos canhões simbólicos do poder: as armas dos barões assinalados. 
























7. registros da memória.
7.1. Fontes e memória – o escrito.
         As diversas escritas da História, dentre as quais aquelas mencionadas em capítulo anterior, trabalham com memória objetivada em fontes.
         O historiador (a obviedade é desculpável porque é necessária) trabalha a partir das fontes. Afirma-se e assim é certo desde que se acrescente: com conhecimentos acumulados e métodos. Dentre as inúmeras fontes que ele utiliza, há algo comum: todas veiculam memória (s). Todas objetivam a memória. São memórias objetivadas, imobilizadas.
        Aqui apenas um tipo é utilizado para efeito de demonstração: o escrito.
         O escrito é aqui expresso como manifestação da memória – memória imobilizada. A assertiva não deve conduzir à idéia puramente de memória. Advertido desde Aristóteles, que distinguiu memória de intelecto (1980), há no escrito muitas vezes mera narrativa, mas os textos produzidos com finalidade, que não apenas de assentar para lembrar, são pejados de memória, ou dos quais podem-se abstrair memórias. Em outras palavras, textos que pretendem ir além do registro ou da reminiscência, porque apelam ao raciocínio e à construção de um saber determinado, estão entranhados de memória.
Textos filosóficos ou científicos existem com a condição de existir memória: feitos com linguagem que seus autores aprenderam e da qual se lembram, utilizando as regras da lógica corrente em sua época, da qual se recordam, ou mesmo refutando-as para erigirem outras; não há fuga da memória porque esta é indissociável da consciência que, por sua vez, se expande à medida das transformações das práticas dos homens e de suas buscas, entre si e com a natureza.
Nesse sentido, a memória imobilizada porta diversas memórias além do próprio texto, ou produtos da memória. Muitas vezes isso não é percebido, pois sua apreensão depende de investigação. Quando se leem textos de várias épocas, num idioma determinado (o português, por exemplo), percebe-se alteração na maneira de escrever a palavra, na forma da letra, etc. isso remete à memória de cada tempo, às alterações “espontâneas” ou àquelas impostas por lei, o desparecimento ou a permanência de palavras no texto, que correspondem igualmente à preservação, ou não, de palavras na lembrança. Esse raciocínio pode conduzir a outras memórias, como aquelas relacionadas à produção da tinta, esquecidas ou banidas. Mas não se pode esperar linearidade nesse tipo de consideração porque mesmo as palavras mudam de sentido e há momentos ou contextos em que esses sentidos excluem ou podem conviver e são lembrados em apenas um deles, ou nos dois.
A maneira de como homens e mulheres escreveram é a forma de como se lembram do que deveriam escrever, porque, mesmo que queiram transgredir normas de linguagem aprendidas, precisam das palavras de que se lembram. Para destruir cânones da escrita, necessita-se da escrita lembrada e de suas palavras.
É, assim, inevitável que se encontre sempre a memória no transcurso do trabalho dos homens, aí entranhada até que o fruto desse trabalho desapareça da sociedade e só possa ser buscado com a pesquisa e essa, no entanto, dirá que aqueles seres possuíam meios de reter na memória e de reproduzir, por essa via da lembrança, os processos com os quais produziram. Por isso que o entrelaçamento entre memória e História é mais complexo de que as formulações produzidas por muitos autores. E, aqui, pode-se ainda advertir: história considerada como o suceder de gerações com suas técnicas e suas relações produtivas (ciência do homem no tempo, diria Bloch), ou história considerada como conhecimento do homem no tempo: história saber e história vivência; História e história.
É a memória da substância da história, a partir da materialidade das fontes e da vida concreta que não dispensa reter e evocar.
Pouco importa que os historiadores falem, para efeito da construção de seu saber, em fontes da história, pois sempre encontrarão a memória, num dos sentidos de que essa se reveste. E mesmo que, elaborando cientificamente seu conhecimento, os historiadores distingam (como alguns o fazem) História e memória, como campos do saber, não evitam a memória: põe-se a questão: apreender com a memória ou/e apreender além da memória.
Isso significa dizer que é da essência do conhecimento, todo ele, a presença da memória, mas é possível a separação de campos do saber, teoricamente, definindo métodos próprios, objeto e leis. O esforço dessa distinção disciplinar pode obscurecer ou não as relações entre História e memória, especialmente quando se trata da memória coletiva. Será válido, no entanto, apurar-se sentidos da palavra e deixar clara a inevitabilidade, na vida concreta, da memória.
Sem pretender conclusão, pode-se dizer que o desdobramento da memória (mesmo da memória imobilizada) em tantas memórias corresponde à estrutura da vida social, não se podendo transgredi-lo quando se estabelecem campos do saber.
A memória imobilizada em textos é pressuposto do desenvolvimento científico. Não o único, mas o é.

7.1.1. O escrito e a História

Afirmou-se, linhas atrás, que o escrito é memória imobilizada (forma de exteriorização da memória, um dos sentidos de que se reveste o vocábulo memória; não está em si mesma). Quando a memória se exterioriza em escrito, ela ganha autonomia em relação à pessoa que memorizou e exteriorizou sua lembrança. E é essa autonomia (por fundamental que seja a pessoa) que mais de perto interessa ao historiador, embora alguns não o percebam. Talvez essa afirmativa possa chocar os que insistem em demonstrar a indissociabilidade entre o que foi lembrado e quem o lembrou. Mas é fato. Ver-se-á.
Quando o rei D. Afonso II de Portugal, em 1214, escreveu seu testamento, o fez, como esclarece, para que, “depois de mia morte mia molier e meus filios e meus vassalos e meu reino e todos aq(ue)llas cousas que Deus mi deu em poder sten em paz e em folgãcia” (in Bagno, 2012:226). Mas a história fará uso do testamento de Afonso II, dizendo sua autoria, de forma impensável para aquele testador. Historiadores do Estado dele utilizarão, dentre outras coisas, para falar da monarquia hereditária. Historiadores da língua, para (além de outras razões), dele utilizarão para demonstrarem que o idioma português deriva do falar e escrever galego. Historiadores do Direito terão razão em utilizá-lo com finalidade de escrever sobre sucessões. A relação seria longa e estender-se-ia para além dos umbrais da história. Aquele rei, no entanto, nem imaginaria essa autonomia de sua vontade, para ser respeitada e lembrada. O decorrer do tempo o traiu e determinou que seu testamento não fixasse “paz e folgança”, pois hoje discutem os sábios se, diante daquele texto, pode-se falar na origem diretamente latina de nossa língua, ou por intermédio do galego, além de outras guerras sobre o assunto.
A autonomia da memória exteriorizada no texto escrito (mesmo se desejada como memória testemunho) alcança não só situações como aquelas acima assinaladas, isto é, utilização para outros fins que não aquele para o qual foi produzido o texto.
Pode-se oferecer outro exemplo.
O acórdão da Relação da Alçada, do Rio de Janeiro, datado de 18 de janeiro de 1792, relatado pelo Chanceler Sebastião Xavier de Vasconcelos Couto, firmado por este, Gomes Ribeiro, Cruz e Silva, Veiga, Figueiredo, Guerreiro, Monteiro e Gasoso, que julgou os “inconfidentes mineiros”, é decisão exarada em processo criminal.
Para o Estado e a lei do tempo, tratava-se de investigar e, provada culpa ou dolo, condenar os “infames réus” pelo crime de conjuração. Os conjurados são criminosos, cometeram o delito de lesa majestade, enquanto Joaquim Silvério dos Reis agira com “fidelidade e lealdade, que devia ter como vassalo” da Rainha Maria I. (Autos da Devassa).
Contra um dos réus, Joaquim José da Silva Xavier, o Mandado de Enforcamento refere-se à “Justiça que a Rainha Nossa Senhora manda fazer a este infame Réu Joaquim José da Silva Xavier pelo horroroso crime de rebelião e alta traição de que se constituiu chefe, e cabeça na capitania de Minas Gerais, com a mais escandalosa temeridade contra a Real Soberana, e Suprema autoridade da mesma Senhora que Deus guarde” (Autos de Devassa). E, a forma de execução reitera o crime imputado e manda que se preserve para o futuro a memória do réu:

Manda que com baraço e pregão seja levado pelas ruas públicas desta cidade ao lugar da forca, e nela morra morte natural para sempre e que separada a cabeça do corpo seja levada a Villa Rica, donde será conservada em poste alto junto ao lugar da sua habitação, até que o tempo a consuma; que seu corpo seja dividido em quartos, e pregado em iguais postes pela entrada de Minas nos lugares mais públicos, principalmente no da Varginha, e Cebolas; que a casa da sua habitação seja arrasada, e salgada, e no meio de suas ruinas levantado um Padrão em que se conserve para a posteridade a memoria de tão abominável Réu, e delito, e que ficando infame para seus filhos, e netos lhe sejam confiscados seus bens para a Coroa e Câmara Real.
Rio de Janeiro, 21 de Abril de 1792. Eu o Desembargador Francisco Luis Alvares da Rocha, Escrivão da Commissão que o escrevi. Seb.ão X.er de Vas.losCout.º  (BRASIL, 1982, 7: 282).

O historiador encontra-se diante de documento que lhe serve de fonte. Esse e outros retratam conflito de interesses, insatisfações, idéias que os acompanham, exploração colonial, crime e criminosos, etc. etc.
Ali, no texto, não está presente o “herói”, nem a justa “inconfidência”. A história do colonizador acentuará o crime de lesa majestade praticado por infames réus. O historiador nacional, tradicional, já de outro tempo, verá movimento nativista e heróis.
Que memória se encontra exteriorizada nas peças mencionadas que, em conjunto com outras, compõem o “Auto da Devassa da Inconfidência Mineira”? – São os condenados em razão da conjura infames réus de crime de lesa majestade, ou “heróis e mártires da Independência do Brasil”?
Há várias possibilidades quanto ao uso de referidos documentos, em razão da autonomia da memória exteriorizada, diferentes dos usos indicados, como exemplos, para o testamento de D. Afonso II. Agora, trata-se do próprio modo de conceber a história, que permite ler as memórias exteriorizadas documentalmente de diversas formas.
Uma das formas de usar o documento (memória exteriorizada, imobilizada) por uma classe de historiadores é aquela assinalada e recusada por Marx (2007, p. 40), dizendo por que consiste em explicar a história anterior pela história posterior (anacronismo):

A história nada mais é que o suceder-se de gerações distintas, em que cada uma delas explora os materiais, os capitais e as forças de produção a elas transmitidas pelas gerações anteriores; portanto, por um lado ela continua a atividade anterior sob condições totalmente alteradas e, por outro, modifica com uma atividade completamente diferente as antigas condições, o que então pode ser especulativamente distorcido, ao converter-se a história posterior na finalidade da anterior, por exemplo, quando se atribui à descoberta da América a finalidade de facilitar a irrupção da Revolução Francesa, com o que a história ganha finalidades à parte e torna-se uma “pessoa ao lado de outras pessoas”.

Essa história que vê nas condições posteriores finalidades de condições anteriores, muitas vezes presentista, anuncia igualmente o autonomizar da memória, sob outro aspecto, que não aqueles mencionados. Os “mártires e heróis da Independência” o são porque sua finalidade é o 7 de setembro, ou Elevação do Brasil a Reino-Unido. Essas ocorrências explicam, pela finalidade, retroativamente, a conjuração e, ao mesmo tempo, por interesse de ter uma “Nação”, constrói-se tradição, comemora-se data (21 de abril), etc.
No entanto, admitindo-se a autonomia da memória exteriorizada para que o estudioso faça sua escrita da História, pode-se chegar a outra forma de sua utilização. Os Autos da Devassa da Conjuração Mineira informam situações geradas de um tempo no qual devem ser contextualizadas: situações da crise do antigo sistema. Não podem ser lidos fora desse contexto que revela que o capitalismo expandia-se, Portugal e Espanha permaneciam grandemente marginais em relação ao novo sistema de produção de mercadorias, o exclusivismo comercial tornava-se insuportável para a população colonial e não atendia interesse da expansão do capital, conflitos internos ocorriam, etc. Mas a perspectiva de sua leitura não será o “sonho dos inconfidentes”, porém as condições reais, o movimento, contradições, interesses de classes, necessidade de construção da idéia, a partir de condições dadas, de rebelião, a razão do sonho e sua desnudação ideológica, (liberdade para quem?). Enfim, uma história não linear, nem presentista (anacrônica).
Partindo-se do pressuposto do uso autônomo da memória imobilizada exteriorizada, independentemente do desejo daquele que a exteriorizou (o testamento, a sentença), é preciso resolver contradições: afirmou-se que a memória é da substância da história (em outras palavras a memória é inevitavelmente da essência do conhecimento histórico e o historiador sempre encontrará memórias em suas fontes); que os positivistas (escola crítico-documental) e Bloch não dão espaço para a memória. Isso merece explicação.
Expressões que tratam a memória evidenciam seu significado para a história: “A memória é o principal nutriente da história” (Castanho, 2009), “A memória na qual cresce a história” (Le Goff, 2003), etc. No entanto, afirmou-se que a memória desejada, ou aquela que se desejou preservar (como no testamento de D. Sancho II, ou na sentença dos inconfidentes) não é necessariamente a memória na forma como interessa aos historiadores. Estes tomarão a memória exteriorizada como fonte e cuidarão de, com ela, cientificamente elaborar conhecimento. Importa que D. Afonso II tenha escrito (ou mandado escrever) seu testamento? É evidente que sim. Que ele deixe de ser testamento para ser fonte da história da língua, não o desloca da memória que se preservou, desejada por aquele rei. A memória está aí presente, mas nutre (considerada fonte) a história da língua, do Estado, etc.
A outra possível contradição entre as considerações aqui feitas sobre a memória e a assertiva segundo a qual os positivistas e Bloch não dão espaço para a memória, deve ser esclarecida: é que ambos autonomizaram tanto as fontes e seu conceito que não as vinculam ao dado primário da memória. Os positivistas dizem que a história se faz com documentos e para, com esses, escrever a história, são necessárias crítica interna e externa, não exatamente tratá-los como expressão inevitável da memória. Bloch, em sua certeira crítica quanto ao testemunho, declaradamente memória, não percebeu que os outros documentos estão próximos daqueles por via da memória (de várias memórias, como se disse da potencialidade do escrito). Sua preocupação em delimitar o ofício do historiador, como o entendia, do mesmo ofício como imaginavam os positivistas, privilegiou os marcos nos quais o debate se desenvolvia (ou deveria desenvolver-se), não cuidando de perceber o que poderia igualmente ser tratado: memória que não fosse pensada como testemunho, depoimento.
Que, como pretende Castanho (2009) a memória é principal nutriente da história, deve-se dizer sim, pois as fontes revelam memórias, além de que escreve-se História para compreender, com os dados da memória, a realidade, mas igualmente para lembrá-la.

7.1.2. O escrito documental – forma de tratamento.

Anteriormente se disse do escrito que é manifestação da memória, ou uma de suas formas de exteriorização. E essa afirmativa conduziu a falar sobre documento. E hoje já é difícil dizer o que ele seja. O saber cada vez mais se orienta para diversas especializações, a realidade se enriquece, o que é velho resiste (Cazuza, jovem cantor e compositor, dizia ver um “museu de grandes novidades”), em novas condições a ciência se expande.
A maneira como vêm-se processando a evolução humano – social faz com que o documento se constitua permanente questão: desde registro rupestre, tabuinhas de argila, papiro, pergaminho, que são suportes materiais, até os meios atuais, a questão da materialidade encontra-se na preocupação daqueles que tratam do escrito, ou daquilo que se acha representado nos diversos suportes. A sua classificação é igualmente tormentosa, assim como o caráter da informação que o documento transmite. Uma legião de estudiosos é convocada para expressar-se sobre ou estudar documentos, tais como arquivistas, historiadores, biblioteconomistas, hermeneutas, juristas, etc.
Aqui não se está a discutir os componentes dos documentos, nem as características desse, inclusive permanência e integridade, ou componentes formais (meios adotados para a representação), nem os componentes conceituais (autoria, conteúdo), e muito menos a tipologia (documento real, analógico, digital, etc).
         Embora para fins de ilustração | exemplificação haja menção expressa a conceitos jurídicos de documento, foi eleito, de forma específica o escrito. Desse não se tomou primariamente como conteúdo a informação, mas a memória. Essa é primordial: submete-se a informação à memória.
         Os indícios, que são objeto de revalorização pelos estudiosos da História, não são contemplados aqui, por conta da eleição de uma fonte (entendida esta como manifestação de algo).
         O tratamento do escrito e de outros registros como manifestação da memória abre espaço para o rompimento com a hermenêutica centrada apenas no autor (ou possível autor) e aquela que considera os enunciados como ocos que devem ser preenchidos (densificados) de acordo com a intenção: normativa, historiográfica, estética, etc. É evidente que considerar o documento a partir da memória não exclui, na busca de seu sentido pelo historiador, contextualização, enquadramento, circunstância de sua reprodução, seriação, quantificação e outros procedimentos que têm sido adotados pelo cientista da História.
Assim, a compreensão daquilo que seja documento, que já vinha sofrendo distinção por motivo do privilegiamento de sua função, ou uso predominante em cada ciência, se alargou e, às vezes, distanciou de seu significado originário.
É o caso do direito: grande distância da noção de documento vai do Código Civil Português de 1867 ao de 1966. No primeiro, documento é escrito: Art. 2420º: Prova documental é a que resulta de documento escrito; no segundo, documento tem sua noção ampliada: Art. 362º. Prova documental é a que resulta de documento; diz-se documento qualquer objeto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou fato. O mesmo pode ser dito daquela noção se forem comparados os artigos 136, III, a 140, do Código Civil Brasileiro de 1916, com os artigos 225 do Código Civil atual (Lei 10.046, de 10 de janeiro de 2002).
         Contraditoriamente, o documento no âmbito jurídico retoma o sentido etimológico: docere (informar, fazer saber, ensinar); mens (memória). Na origem da palavra, se encontra memória. Não é diferente em história; seu tratamento sofreu mudanças sérias, e a sua importância dependerá do tema, inclusive, tratado pelo historiador. Do privilégio do documento oficial e verdadeiro, ao uso expansivo de vários tipos de documento; do documento isoladamente tomado, que outros confirmam, ao documento visto em série, em conjunto, interrelacionado, todo e qualquer documento necessário à inteligibilidade do processo ou de uma determinada duração. Mas ele continuará docere – mens, sujeito a interpretações e muitas vezes distante do objetivo que definiu sua criação.  
         Quanto à forma de tratar o documento, Foucault (2000, p.7), verificando a maneira como passaram a comportar os historiadores, diz:

Ora, por uma mutação que não data de hoje, mas que, sem dúvida, ainda não se concluiu, a história mudou sua posição acerca do documento: ela não considera como sua tarefa primordial, não interpretá-lo, não determinar se diz a verdade nem qual é seu valor expressivo, mas sim trabalhá-lo no interior e elaborá-lo: ela o organiza, recorta, distribui, ordena e reparte em níveis, estabelece séries, distingue o que é pertinente do que não é, identifica elementos, define unidades, descreve relações. O documento, pois não é mais para a história essa matéria inerte da qual ela tenta reconstituir o que os homens fizeram ou disseram, o que é passado e o que deixa apenas rastros: ela procura definir no próprio tecido documental, unidades, séries, conjuntos, relações.

         A síntese Foucaultiana, que será retomada por Le Goff (2003), não implica despojar do documento seu caráter de memória. Foucault (2003) demonstrou que os positivistas se dispuseram a memorizar os monumentos (na concepção de monumentos desse autor) do passado e transformá-los em documentos, enquanto que inversamente os historiadores de seu tempo comportam de acordo com uma história que transmuda os documentos em monumentos. O que aqui se deseja acentuar é que a relação de história/memória, por via do documento, tomado como forma de imobilização (exteriorização) da memória, sempre estará presente, de forma explícita ou implícita, no trabalho do historiador, na escrita da história.
         Do excurso feito, pode-se estabelecer: a) que o documento tem tido tratamento diferenciado pelos historiadores: desde a aceitação total do seu texto até os procedimentos sintetizados, como se viu, por Foucault, passando pela diplomática e pelo positivismo com seus modelos; b) a forma de utilização e tratamento do documento acompanha a doutrina, ou diretriz, dominante no âmbito da história; c) a memória imobilizada no documento poderá coincidir com aquilo que o autor desejou memorizar, ou não; d) os historiadores constroem memória histórica (história-memória) a partir de documentos, inclusive de forma manipuladora; e) documentos, escritos de diversas origens e outras fontes, podem ter seu tratamento ordenado de tal maneira que com eles se escreve história; f) a memória imobilizada no texto ganha autonomia e isso permite ser utilizada para a escrita de uma História que não seja memória, embora com esta imbricada; g) apesar de todas as possibilidades mencionadas, não se pode excluir do documento a memória aí imobilizada (mesmo em escrita de História não concebida como memória).
         As afirmativas foram enunciadas para aquele tipo de fonte que é inafastável da consideração do historiador, e mesmo eco da escola crítico-documental ainda lê e ouve. O. Doumolin ainda escreve, em 1986: “Escreve-se a história com documento, afirma com razão o positivismo triunfante. Mediante os documentos, o historiador volta a encontrar a pista dos fatos, ou pelo menos, testemunhas dos fatos” (in: BURGUIERE, 1986: 242).

7.2. O texto ficcional: romance e História, literatura de viagem, memórias.

7.2.1. Romance e História

         Até aqui a atenção esteve voltada para o documento. Pode-se mesmo dizer documento em sentido estrito: o escrito que reproduz ou representa fato, coisa ou pessoa: escrito que sirva para provar um fato. Mas a ficção tem interesse para a memória, especialmente para a memória compartilhada.
         Há que se considerar que, no âmbito da História, o escrito fantasioso, ficcional, encontra-se presente, às vezes com desdobramentos capazes de impressionar mesmo os leitores exigentes das obras feitas por historiadores. É evidente, no entanto, que o uso do texto ficcional pelo historiador muitas vezes se reveste de certa facilidade como dizer que o acontecimento, ou progresso, é aquele relatado na obra de ficção. Não é difícil de se encontrarem afirmativas que tomam o escrito ficcional como a realidade mesma, como se lê, sobre efeitos da crise de 1929 entre os agricultores estadunidenses, em escrito de Maurice Crouzet:
É o drama destes pequenos lavradores de Oklahoma despojados pelos bancos hipotecários, convertidos em meeiro sem suas próprias terras e depois expulsos quando os bancos fundem suas pequenas explorações, que é descrito em “As Vinhas da Ira” (CROUZET, 1968: 124).

         Certamente que, em As Vinhas da Ira, John Steinbeck não só descreve aquele drama, mas também lutas dos lavradores; porém o faz ficcionalmente. Não se trata de tomar o texto ficcional, que pode ser lido em qualquer tempo, deslocado do fato que o ficcionista tomou como tema, como ponto de partida ou apoio do trabalho do historiador. Mesmo, como no caso citado, quando há grande densidade do real, ainda o texto de ficção é fantasia. É que o que separa a ficção da narrativa histórica é a intenção do autor e a busca de específicos conteúdos estéticos, estes indispensáveis à ficção.
         Com toda a aderência que possa ter ao real, o texto de ficção não é documento para a verificação do processo social tal como entende o historiador, com seus próprios métodos e objetivos, nem pode ser tomado como descrição do real. O objetivo do ficcionista tem preocupação estética, sobreleva o engajamento emotivo, não se trata de análise. Isso marca o seu texto profundamente.
         Não é caso de dizer que não se encontra certidão de nascimento ou de batismo da personagem A ou B de um conto ou romance para desacreditar a ficção que pretende substituir a História ou ser ela própria documento histórico. A questão é que o documento não é ficcional para o historiador, mesmo quando é fraudulento.
         Mas se é verdade que o texto ficcional não é documento, também é verdade que o é, no sentido de fonte escrita, de forma como algo se manifesta.
         A contradição entre o texto ficcional ser e não ser documento resolve-se pela forma ou especialização de seu uso, não pela exclusão ou princípio de identidade. O historiador da literatura ou da cultura terá no texto ficcional seu documento. É evidente, sob esse aspecto – forma de uso e especialização – que todos os textos ficcionais serão fontes de conhecimento da história da literatura ou da história cultural, logo documento. Mas a forma de tratá-lo já é bem distante daquela utilizada para o documento não ficcional. Um problema hermenêutico está posto e pede solução. O ser-não-sendo documento do texto ficcional encontra igualmente um outro problema: o documento falso. É esse uma ficção? Sim, porém com um objetivo diferente daquele buscado pelo ficcionista, romancista ou contista. Nessa ficção – documento falso – não se encontram pressupostos de ordem estética ou de busca da emoção na forma perseguida pelos artistas da ficção. O documento falso serve ao historiador a partir da sua falsidade (objetivos da falsificação, contexto, etc), o texto ficcional do romancista o serve a partir da própria fantasia sobre o homem e a realidade, por isso é que um neo-realista, como Steinbeck, se encontra, quanto ao uso de seu texto pelo historiador, na mesma posição de Kafka que, no sentido atribuído a sua obra, não é exatamente um realista.
         O documento falso não é fantasia, pois pretende provar fato que inexistiu ou que existiu de forma ou com motivação diferentes. Trata-se de fraude. A ficção do romancista pode até conter embrião de uma tese, em seu engajamento, mas não é texto escrito fraudulentamente (exceto o plágio). A ficção não prova aquilo que é ficcionado, prova a sua própria existência e, às vezes, a autoria declarada ou não. Geralmente o texto ficcional propriamente dito (exclusão do documento falso) tem sido utilizado pelo historiador na forma como trabalham os sociólogos, quando demonstram condicionantes, por isso que algumas histórias literárias e culturais apresentam a aparência de textos sociológicos. Obtêm-se, sim, verdades a partir do texto ficcional, mas não exatamente a partir de sua ficção: não se nega seu valor para a história da língua, por exemplo, pois ali estão palavras e construções lexicais e esse dado é uma verdade.
         Ocorre que a relativização vigente em nossos dias alcança patamar que tem permitido assimilar a ficção à própria realidade, mas certamente esse não é o alcance do método dos historiadores (ou não deve sê-lo). A verdade da ficção não é a verdade do historiador.
         Mario Vargas Llosa (2004), em livro crítico, acentuou diferenças entre romance e realidade: a) os romances mentem, mas essa mentira esconde uma realidade – os homens, descontentes, “gostariam de ter uma vida diferente da que vivem. Para aplacar – trapaceiramente –surgiu a ficção. Ela é escrita e lida para que os seres humanos tenham a vida que não se resignam a não ter” (p. 16); b) isso não significa que não possamos identificar nossas experiências com as experiências de personagens construídas em obras de ficção; c) todos  os romances refazem a realidade, dando-lhe beleza ou piorando-a, e nos acréscimos reside sua originalidade; d) o romance expressa uma necessidade e quanto mais profunda for a ficção a expressará mais intensamente, e em maior número serão os leitores que com ela se identificarão; e) o que decide a verdade ou a mentira em uma obra de ficção não é o enredo, mas que “ela seja escrita, não vivida, que seja de palavras e não de experiências concretas” (p. 18); g) os fatos sofrem  profunda modificação “ao traduzirem-se em linguagem, ao serem contados”; h) ao eleger uns sinais e privilegiar outros, o romancista destrói muitas possibilidades; i) além da modificação que o romancista imprime aos fatos, há uma modificação também radical representada pelo tempo, pois a vida não se detém, “cada história se mistura com todas as histórias e por isso mesmo jamais começa nem termina”. (p. 19) enquanto que a “vida da ficção é um simulacro, no qual aquela desordem vertiginosa se transforma em ordem, causa e efeito, fim e princípio” (p. 19) e, se entre a palavra e os fatos existe uma distância, entre o tempo real e o da ficção existe um abismo” (p. 19).
         Pode-se verificar, tomando as considerações feitas por aquele autor em “A verdade das mentiras”, que, apesar da atribuição de semelhança entre as realidades ficcionadas e aquelas sociais, há um fosso amplo, porém há alguma verossimilhança na identificação que o escritor faz com o que viu e aquilo que leu, com personagens, situações e suas angústias. Mas isso não transforma o texto ficcional em verdade e só assumiria o conteúdo de documento (fonte) em história literária e cultural, porque essa busca entre outras coisas, construções fantasiosas, e procura-se fazer ciência também dessa realidade que é a fantasia. A ciência não tem limitação de objeto, inclusive a História como “conhecimento cientificamente elaborado”. Isso tudo não deve cercar o trabalho da escrita da História a ponto de excluir alusões ou analogias.
         Em outras palavras: o texto literário aparece para o historiador como representação de uma realidade, e exige uma crítica específica para ser por esse utilizado no campo da história literária, de representações, etc. A história cultural também pretende a verdade, não do movimento das sociedades ou da realidade factual, mas do mundo simbólico, pois o símbolo tem pretensão de representar o real. A apropriação artística do mundo pelo escritor tem seus próprios pressupostos materiais. Cumpre analisar o texto de ficção, verificar-lhe os pressupostos materiais, situá-lo em sua própria classe de objeto cultural. Como acentua Kosik (1995):

O homem vive em muitos mundos, mas cada mundo tem uma chave diferente, e o homem não pode passar de um mundo para outro sem a chave respectiva, isto é, sem mudar a intencionalidade e o correspondente modo de apropriação da realidade (KOSIK, 1995: 29).

7.2.2. Literatura de viagem

         Há um tipo de texto que pretende retratar a realidade, como o relato, que tem sido bastante utilizado pelos historiadores: trata-se da literatura de viagem, que merece cuidado especial. Geralmente aí está a voz da metrópole, que não consegue captar exatamente estruturas em seu relato e se expressa por meio de um discurso que parte de sua própria vivência, estranhando costumes, objetos, modos de ser em geral, de outra cultura, informando possíveis leitores quanto ao tempo e espaço de sua viagem, adicionando alguma pesquisa. Ele não deve ser excluído pelo historiador e não tem sido excluído como fonte, mas sua crítica apresenta especificidades. Há geralmente uma razão colonial que o preside. Toda a intenção do texto é ditada pelo interesse e pela visão do viajante, naturalista ou não. Termos e conceitos são utilizados de acordo com o discurso formado de fora: encontram-se bárbaros, selvagens, não civilizados, etc, e para esses se propõe um lugar ou uma tarefa, como torná-los civilizados, colonos, “educados”, fiéis, escravos, etc.
         Um dos aspectos da crítica à literatura de viagem é exatamente desnudar a colonialidade que a perpassa. Sem essa tarefa, o uso da literatura de viagem transformará a representação do viajante sobre a realidade em essa própria realidade. O historiador educa-se à medida que introduz na leitura dos relatos de viagem a colonialidade que os envolve, criticando o olhar do viajante, contextualizando-o histórica e ideologicamente.

7.2.3. O Romance Histórico

         Mais relacionado ao tema aqui tratado é o romance histórico, obra de ficção em cujos objetivos encontra-se o de registrar a história e com isso preservar a memória.
         Registrar a história, sem dúvida, mas a ressalva se impõe: registrá-la não na forma do historiador. Lukács, no momento em que trata da mudança da concepção da História após a revolução de 1848 e de sua relação com o romance histórico, define o “histórico” do romance em face do historiador:

...trata-se não de um assunto interno da história como ciência, não de uma disputa metodológica de eruditos, mas da vivência que as massas têm da própria história, de uma vivência compartilhada pelas mais amplas esferas da sociedade burguesa, mesmo aquelas que não têm nenhum interesse pela ciência da história e não fazem nenhuma ideia de que houve uma mudança nessa ciência. (LUKÁCS, 2011:2013).

         Trata-se portanto, no romance histórico, de captar vivências sentidas pelas pessoas diante dos acontecimentos, isto é, de universalizar, a partir de personagens, sentimentos e experiências no transcorrer da história.
         Acentua referido autor que há romances históricos em que a história é legada a mero pano de fundo, funcionando como cenário decorativo; no entanto há romances históricos em que os personagens estão efetivamente vinculados aos problemas da época em que se desenrola o texto ficcional, sofrendo suas consequências, mantendo vivência com eles:

Tanto Scott como Tolstoi criaram homens cujos destinos pessoais e sócio-históricos estão estreitamente ligados um ao outro. De modo que certos aspectos importantes e universais do destino do povo se expressa ‘diretamente na vida pessoal dessas personagens. O espírito autenticamente histórico da composição mostra-se no fato de que essas vivências pessoais estão em contato com todos os problemas da época, ligam-se a eles de modo orgânico e surgem necessariamente a partir deles, mas não perdem seu caráter nem a imediatidade dessa vida. Em ‘Guerra e Paz’, quando Tolstói figura Andrei Bolskonski, Nicolai e Petia Rostov etc., ele cria homens e destinos em que a influência dessa guerra é sentida imediatamente nos destinos humanos privados, na transformação exterior da vida e na alteração do comportamento” (LUKÁCS, 2011:347,348).

         Então há importância do texto ficcional para a história e memória social. Mas a utilização e a forma dessa variam.
        a)   O texto ficcional entra necessariamente como objeto e fonte para a história cultural, geralmente na forma de representação ou como objeto socialmente condicionado para compreensão de um dos componentes da história humana (diversas formas de compreensão, leitura e representação do percurso histórico). Seu tratamento como “texto” não será o mesmo que o historiador dará ao texto-documento;
        b)   O texto ficcional, fora da história cultural (representações, mentalidades, etc), pode ser entendido como vivência compartilhada (como no romance histórico), que expressa a maneira como grupos da sociedade entendem a história que se processa (não a história ciência), de imediato.
         Muitos ficcionistas fizeram pesquisas em documentos para elaboração de seus textos, mas o seu interesse não era exatamente a história como ciência, mas o processo histórico como eles o sentiram para a intenção ficcional. Ao historiador interessa prioritariamente o processo histórico. No entanto, as narrativas bem elaboradas, que muitos conseguiram, terminaram por ser introjetadas como verdade pelos leitores, com o apelo forte do texto bem construído, mantendo uma preocupação com a história e a memória. E muitos leitores conhecem determinados acontecimentos a partir de texto de ficção. Distantes da pesquisa e da ciência, leitores são captados pela ficção e a maioria desses certamente não saberá distinguir, a partir daquele texto do romance, entre o que é verdade e o que não é. Guerra e Paz (Tolstói), A Guerra do Fim do Mundo (Llosa), Subterrâneos da Liberdade (Amado), O Senhor Presidente (Asturias), Eu, o Supremo (Bastos), dentre outros, são obras que inevitavelmente transmitem aos leitores, no mínimo, marcante experiência da história e da memória.
         O escrito ficcional, como visto, é uma das formas de representar. Forma de representar grandemente desconhecida, deve-se acrescentar. É que não estão estabelecidas as mediações entre o ficcionista e a realidade. A imaginação cria um oceano de distância entre o real e o invento. A fórmula que estabelece ser a ficção modo de conceber o real sempre será incompleta, por que fica em aberto o processo de como isso ocorre. Também reduzir esse processo à mímese, para evidenciar a relação com o real, tende a desconhecer a forte carga criativa mobilizada pelo artista da escrita.
         René Welleck e Austin Warren examinaram o problema quanto às visões clássica e a neoclássica:

Qual a relação que há entre a ficção narrativa e a vida? A resposta clássica ou neoclássica seria aquela que apresenta o típico, o universal: o avarento típico (Molière, Balzac), as filhas infiéis típicas (o Rei Lear, Pai Goriot). Mas não são próprios da Sociologia esse conceitos de classe? Ou melhor: que a arte enobrece, ou eleva ou idealiza a vida? Tal espécie de arte existe, certamente, mas é uma espécie, não o essencial da arte. O novelista não apresenta um caso, mas um mundo. Todos os grandes novelistas têm esse mundo suscetível de ser conhecido, que coincide com o mundo empírico, mas que é distinto em sua consequente inteligibilidade (WELLECK e WARREN, apud Brasil, 1979: 180).

7.2.4. Memórias. Romance de não ficção

         Há textos literários que pretendem recuperar o real, representando-o, imobilizando a memória, que certamente não visam à mimese e pretendem expor o real. São as memórias: histórias de uma vida, “sua vida”, relatadas pelo próprio autor.
         As memórias, ou autobiografias (é difícil distinguir umas das outras) não guardam distância (ou assim pretendem) com a ficção. São textos que objetivam extravasar o eu: de Santo Agostinho, no ano 400, com suas Confissões, até as memórias vindas a lume periodicamente nos tempos atuais.
         É possível dizer que as memórias ou autobiografias mantêm distância com a realidade em razão de sua não objetividade quanto aos fatos relatados: são por excelência textos subjetivos; expressam ponto de vista bem pessoal sobre a realidade. Nesse sentido, as autobiografias, embora pretendam representar o real e não a mimese, não se confundem com a História, e não são poucos os exemplos de textos autobiográficos que pretendem ir além da autobiografia e alguns efetivamente a superam.
         Marcadas pela subjetividade (o eu em primeiro plano, ou o que eu vi), aquelas histórias de vida são eminentemente ideológicas. Sua utilização pelo historiador cerca-se de cautelas que já Marc Bloch apontava em seu “O Ofício do Historiador”, antes mencionado.
         Diante da defesa de que a ficção pode ser utilizada pelos historiadores no desempenho de seu ofício (com limitações e cuidados metodológicos), também há que se estender essa convicção aos textos de memórias: curiosos textos que, bem subjetivos, às vezes procuram provar um ponto de vista como, dentre outros, Minha Infância na Prússia, de Marion, Condessa de Donhoff (2002).
         A realidade subjetivada nas “memórias” para ser apreendida exige redobrado esforço de decifração. O que de imediato pode balizar a atividade de sua apreensão e análise é o confronto com fontes do tempo daquelas e o controlado juízo de possibilidade no contexto de sua época.
         O trato metodológico do uso das memórias (memória evocada escrita, autobiografia) guarda grande aproximação com aquele da história oral por força da forte visão pessoal da realidade que se encontra naqueles textos e nos depoimentos orais. Isso não quer dizer que os memorialistas usem completamente óculos de Pangloss, ou seu inverso, pois há certo controle em seus depoimentos: muitos fatos são conhecidos pelos contemporâneos do memorialista e, como podem ser contrariados, sofrem alguma inibição, por certa exigência dos leitores quanto a não ficcionalidade prometida no título memória.
         Para além dos modelos indicados que interessam aos objetivos do presente texto, o romance de não ficção importa. Lodge diz em que esse consiste:

Romance de não ficção é um termo criado por Truman Capote para definir ‘A Sangue frio’: relato verdadeiro de um homicídio múltiplo e suas consequências (1966). Em 1959, quatro pessoas de uma família exemplar do centro-oeste americano foram brutalmente assassinadas, sem nenhum motivo, por dois psicopatas errantes da classe baixa. Capote investigou a história da família e o ambiente social em que viviam, entrevistou os condenados no Corredor da Morte e presenciou as execuções. Então o autor escreveu um relato do crime e das consequências em que fatos minuciosamente investigados integram-se a uma narrativa cativante que, em termos de estilo e de estrutura, é idêntica a um romance. (LODGE, 2011:209).

         Muitos títulos seguiram-se à obra de Capote, como Radical chique, de Tom Wolf; A Canção dos carrascos, de Norman Mailer; A Lista de Schindler, de Thomas Keneally, etc. Mas a prática fora utilizada mesmo antes de Truman Capote. O próprio Lodge (2011), cita e comenta História da Revolução Francesa, publicada em 1837, de autoria de Thomas Carlyle.
         Embora os romances de não ficção não sejam livros de História, contribuem para a formação de u’a memória compartilhada.
         Livros como os Subterrâneos da Liberdade, de Jorge Amado, eram apreendidos como memória do trajeto do Partido Comunista do Brasil durante o Estado Novo (1937-1945) pelos jovens comunistas nas décadas de 1950 e 1960, e assim coletivizada. Os gaúchos têm apreço pelo seu passado tal como relatado/ficcionado em O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo.
         É que a percepção que existe algo além da ficção nos contos e romances por parte dos leitores é inevitável, e esse resíduo é percebido dentro das possibilidades do contexto histórico e do conhecimento daqueles.
         Mas quanto ao texto ficcional, apesar de tudo o que foi dito em sua relação com a memória e a história, nunca é demais lembrar Joseph Conrad, citado por Bernadete Limongi, em introdução que fez a O Coração das Trevas:

Primeiro gostaria de deixar bem claro uma proposição: a de que raramente um trabalho artístico é limitado a um significado único e exclusivo, e não necessariamente tende a uma conclusão definitiva. E isto pela simples razão de que, quanto mais próximo da arte, mais simbólico se torna. Todas as grandes criações literárias são simbólicas, é com isso ganham em complexidade, poder, profundidade e beleza (in CONRAD, 2008:154).

         Há evidentemente um campo aberto à história cultural sobretudo pelas memórias imobilizadas na obra ficcional – como objeto e representação. De qualquer forma, a obra ficcional tem provocado compartilhamento da memória, ou criado fetiche nesta. Em certas circunstancias pode ser entendida como uma mediadora da memória compartilhada, além da própria (a evocação, pelas pessoas, das obras lidas).







8. CONCLUSÕES

         Atribui-se a Políbio a afirmativa segundo a qual o começo é mais que a metade. A profundidade da assertiva conduz a que também se possa perguntar se a conclusão não é igualmente um começo em outro momento da produção escrita do intelecto.
         Os estudos sobre memória hoje têm o seu começo em produções que acompanham o evoluir da humanidade, desde o período que se convencionou chamar de Antiguidade até aquelas vinculadas à Neurociência atual.
         Para além dos estudos de memória, ou memória individual, o Século XX presenciou o surgimento de trabalhos que passaram tratar de memória coletiva, memória social, ou memória compartilhada. A memória social como que suplantou considerações sobre o volksgeist e o zeitgeist, espírito do povo e espírito do tempo, que o espírito romântico pretendeu haver encontrado, ou em certos aspectos, o de cultura, naquilo que diz respeito à transmissão do saber-lembrança: saber por que lembra, ou compartilha memória e, como saber transmitido ou compartilhado, dado da cultura.
         A existência de uma memória coletiva, tal como consciência coletiva (do realismo sociológico), imaginário (de uma derivação do freudismo e utilização por historiadores), ideologia (no sentido utilizado pelo marxismo), representação, identidade, dentre outros que ocupam espaço distribuídos em profusão entre textos de diversos approaches, passou a ser investigada e objeto de estudos, desde escrito pioneiro já transposta quase a década de 20 do século passado.
         Então, considerações existem quanto ao caráter da memória coletiva; em relação a como as sociedades lembram; à forma como o esquecimento social se estabelece; ao medo do esquecimento; às memórias subterrâneas, etc.
         Dentre os problemas que a memória social (coletiva ou compartilhada) suscitou encontra-se a delimitação de seu campo em face da história, até mesmo por que esta foi encarada durante muito tempo (e ainda há quem o faça) como a memória de um povo.
         Ora, quem se abalança hoje a cuidar teoricamente da memória coletiva, ou social, já encontra um conjunto de trabalhos que fazem do começo do seu próprio estudo mais da metade do tema sobre o qual quer investigar e discorrer, não bastasse a projeção que a consciência realiza quando pensa em objetivos que são buscados e hipóteses que ela anima.
        É o que aconteceu páginas atrás.
         Tendo contado com acervo de estudos sobre o tema, tendo-se formado com diversas leituras, mas igualmente tendo imaginado e formulado objetivos, a pessoa é invadida por sensação de que já possuía mais da metade quando enceta a tarefa de examinar e escrever sobre determinado tema.
         A memória assumiu a feição de fato social; não há apenas aquela memória individual, mas o lembrar junto com outros, uma síntese de várias memórias diante de outro conjunto de memórias: memórias de grupos. Sob influência do pensamento dukheimiano e aceitando as características que esse assentou para o fato social, um seu seguidor, mantendo no entanto originalidade, dentre os fatos da sociedade encontrou u’a memória coletiva, com as características que são indicadas pelo realismo sociológico para o fato social: generalidade, exterioridade e coercibilidade. O fato de ter origem inscrita no cérebro de cada homem não foi impedimento para que se concluísse pela  existência de um tipo de síntese de memórias surgida em grupo, condicionada pelo viver neste. E quando grupos geracionais vão deixando o palco de seu mundo, resolvem registrá-la. Mas sobretudo a memória individual necessita de referências externas à pessoa que lembra e geralmente completa suas lembranças com o esforço evocativo dos outros. A vida em diversos grupos, inclusive no estado nacional, é marcada por acontecimentos de que muitos se lembram, mas apenas por meio da imprensa ou por testemunho de tantos outros. Sua evocação depende da memória dos outros: u’a memória que perpassa a sociedade, genérica, exterior, que igualmente nos faz evocar da maneira como o grupo pensa.
         Mas essa memória de caráter social pode ser reduzida a uma vida subterrânea, não aparecer na vida nacional, ou na vida de outro grupo, até que certas condições permitam a sua vinda a tona, pois não lembrar socialmente não significa esquecer. Isso já é um desenvolvimento dentro da descoberta da memória coletiva. Como também o é a indagação de como as sociedades lembram e | ou por que temem o esquecimento. Essas questões, no entanto, não são tratadas no estudo ora sob conclusão.
         Tema relevante (e instigante) que motivou estudos de memória social, ou coletiva, ou compartilhada, uma vez posta em curso e aceita a sua noção, foi o de delimitar campos entre memória e história.
         De início, o próprio criador do conceito de memória coletiva, ainda sob império da concepção de História dominante (embora essa já estivesse abalada em França) tratou de delimitar fronteiras entre a memória social, do grupo, e a História: a memória é um fluxo contínuo que só retém do passado o que ainda está vivo daquele e por isso capaz de viver na consciência do grupo que a mantem. Gerações se sucedem e a posterior pode não possuir nenhum interesse pelo período que a antecedeu. Mas a história é diferente: situa-se fora dos grupos que se sucedem, introduz periodizações na corrente dos fatos estabelecidos. Mas não só: há várias memórias coletivas, mas só existe uma História. A História é una, a memoria é plural. O historiador quando pesquisa detalhes ou um espaço sabe que se trata de uma única história, pois a história de cada espaço e os diversos detalhes formam um conjunto.
         Uma questão sobreveio: começou-se a historiar a memória e isso implicou uma inversão: a memória que era matriz da História passou a ser objeto da História. E, então, historiadores passaram a falar em sociedades de memória essencialmente oral (memória étnica), sociedades de memória essencialmente escrita, fases de transição, etc. Trata-se de fazer a História da memória e de, por conseguinte, transformar a memória em objeto da História. O tratamento anterior, que via a memória em seu aspecto matricial em relação à História, foi posto em questão no âmbito das humanidades e, nem sempre, com apuro conceitual e de generalização.
         A questão epistemológica passou a ocupar espaço quanto aos campos específicos da memória e da História e de suas relações.
         Existem, de qualquer maneira, convicções de que tanto a memória quanto a História buscam aquilo que já não se encontra presente; que a evolução humana sempre se preocupou em manter instrumentos para a constituição de uma memória social; que a noção de memória social é válida; que à medida que historiador apura métodos, cria conceitos próprios e delimita melhor objeto de seu saber, distancia-se sem negar, da memória como campo de saber; o ofício do historiador mudou sensivelmente desde o positivismo e ele não pode ocupar o papel de memorialista.
         Ecos de convicções e da disputa no campo epistemológico persistem para indicar que a memória é algo vivo, mantida por grupos que vivem, sujeita tanto à lembrança quanto ao esquecimento, é sempre atual, está enraizada no concreto, no lugar, no gesto, em imagens e objetos, e é absoluta, enquanto que a História reconstrói aquilo que não mais existe; representa o passado, que recupera, com análise e crítica; é universalizante, vincula-se a continuidades temporais, às evoluções, às relações entre as coisas e nega, com o relativo, o absoluto da memória.
         Tudo isso não impede apreciação que considere a inexistência de uma diferença ontológica entre memória e História, e que funde a memória em noção de fidelidade: sempre se crê que algo aconteceu e essa crença se estabelece diante de testemunhos orais e de imagens do passado.
         Postas em rápidos traços a questão da memória, que se compartilha, e a disputa que busca delimitar campos (História / memória), é preciso dizer que:
         O positivismo, tendo avançado até alcançar definir ou delimitar ofício do historiador, estabelecendo a hermenêutica-documental para fins históricos, intentou dar status cientifico para a História, mas construiu uma história-memória comprometida com o estado nação.
        Dos estudos de Marx e Engels e daqueles que seguiram seu método de análise surgiu a configuração de uma História que tem referência na estrutura da sociedade e nos conflitos que aí ocorrem. A importância da referência dos fatos ao ser social e não ao espírito, e submissão deste àquele, a perspectiva de encarar a realidade em seu movimento e de verificar as contradições reinantes no meio social e seu caráter; a análise da realidade social para apreender-lhe as múltiplas determinações e obter síntese; as mediações entre o todo e as partes; a verificação da necessidade; os homens fazendo história em condições dadas, a fixação do caráter da ideologia, o desvelamento da alienação e da reificação, o caráter contraditório do processo histórico, conceitos de modo de produção e formação econômica, de superestrutura e infraestrutura, são aspectos importantes para a teoria da história. O marxismo oferece instrumental para analise da memória social, como o feito em seus traços maiores, anteriormente, neste texto.
         A Escola dos Anais em sua primeira fase traz contributo, especialmente com suas achegas metodológicas e críticas pertinentes ao positivismo, que devem ser considerados no estudo da memória social. Em sua fase última – a da História Nova – alcança tornar a memória objeto da História e, na sua história cultural, chega a estabelecer diferenciações entre Memória e História, criticar o caráter memorialístico da história positivista e denunciar o caráter sagrado da memória e sua vinculação ao Estado Nação e, no âmbito da história cultural, aponta para a necessidade de destacar a memória em relação a seus lugares e da possibilidade da fala a partir desses lugares de memória, em seus aspectos material, simbólico e funcional, que operam simultaneamente em graus diversos. Essa idéia de lugares da memória significa afirmar-se que não há memória espontânea, que arquivos, museus, etc, não devem ser tomados como memória, e que se a memória já não vive no interior das pessoas, ela necessita de suportes no exterior. O Estado nação é a sua memória ou não é. Sua identidade é garantida pela memória.
         Memória historiada e denúncia da memória, busca de distinção de campos, e a forma de apreender a memória social, são o pano de fundo da preocupação atual, decorridos tantos anos da cunhagem do conceito de memória coletiva e de suas variantes.
         O exame da memória coletiva, social ou compartilhada, estudada a partir de uma perspectiva do materialismo histórico, como aqui se intentou, considera, sim, que há diferenciação de campo entre História e Memória, entenda-se a memória social e compartilhada, mas que elas se relacionam a partir do produto dos homens e só pode ser entendida com origem em bases materiais dadas.
        Inevitável é esclarecer.
         O dado inicial é o fato da consciência: memória é atributo da consciência e há uma dialética em que da consciência decorre a memória, mas essa a potencializa. A formação da consciência decorre da vida em sociedade e é na busca da sobrevivência que ela de pouco a pouco vai-se moldando. Para isso é fundamental o trabalho. Nesse processo de sobrevivência, o homem denomina coisas, aprende, aplica o que aprendeu de forma consciente e com a escrita imobiliza a palavra para melhor sobreviver.
         O homem cria conscientemente, mas não se pode confundir o produto com o produtor, pois aquilo que é produzido ganha autonomia. A fala uma vez imobilizada (escrita), convencionadas as denominações das coisas, é produto da atividade social do homem, de sua memória. Não é, no entanto, memória tout court, embora a represente. Ganha autonomia. Este não-ser-sendo memória permitiu duas coisas: chamar o produto (por exemplo, o documento) de memória, mas dar-lhe uso diferente daquele que lhe deu quem o produziu. É memória, mas é a prova de algo. É memória, mas é uma fonte de história; é memória mas é uma norma jurídica; é memória, mas indica o estágio de evolução de um idioma, etc. Em determinado momento é a memória de         que fração da terra pertence a alguém privadamente; noutro momento que o homem é senhor de outro homem. Disso tudo se faz memória e é do entorno do homem e de suas realizações que memórias são registradas pela fala perante todos ou por escrito. São as memórias possíveis, transmitidas e evocadas oralmente (dai falar-se em memória predominantemente oral) ou gravadas em suporte exterior ao homem (escritos, objetos).
         A depender da complexidade das relações com a natureza e das relações que os homens travam entre si, a memória abarcará mais dados que serão utilizados, ou menos. Completa esse elaborar da memória a imaginação, pois essa também pode ser mantida (memória retentiva) e evocada (memória evocação). Os homens lembrarão de acordo com as possibilidades de sua consciência, mas esta é situada historicamente.
         Os homens além de lembrar individualmente, necessitaram de lembrar juntos – lembrar socialmente: é preciso lembrar de como se partilha a caça e a pesca, de como se planta, de como se constrói um artefato, e depois – de quem é o dono da terra, lembrar de quem é livre e de quem é escravo, de quem governa, etc. Disso todos devem lembrar, inclusive da origem: é escravo por que assim foi transformado pela guerra, ou foi objeto de escambo; é dono da terra por que primeiro dela tomou posse, etc.
         Os homens trabalham e exploram juntos e travam relações de produção entre si, relações que podem ser entre iguais, entre senhores e escravos, servos da gleba e senhores, burgueses e operários, ou outros que concretamente a história aponta, como ocorreu no antigo modo asiático de produção, e de sua vida relacionada têm memórias. Estas sofrem múltiplas determinações a partir de uma base formada pelos meios de produção, forças produtivas, processo de trabalho, sobre a qual ergue-se uma infraestrutura formada pelo Estado, instituições jurídicas, concepções filosóficas, religiosas, etc. Não há memória corrente, viva, referente a um modo de produção em outro diverso, salvo persistência de um traço ou outro que foi herdado do anterior, como ocorreu com a sirga feita por mulheres, na Inglaterra, quando já estava estabelecido o capitalismo, ou traços de relações atrasadas no campo em certas formações econômicas. Mas mesmo aí a memória social dominante se refere à totalidade ou a grupos sociais, dentre os quais as classes sociais. Quando hodiernamente se fala em democratizar a memória, preservar a memória dos trabalhadores, etc., está-se levando em conta essa realidade, mas igualmente os fenômenos que a intermediam, por isso que se fala em memória religiosa, por exemplo, atentando para u’a mediação. O mesmo se pode dizer da literatura, mitologia, etc, que produzem mediações entre o meio social e a memória compartilhada.
         A memória social, compartilhada, encontra-se eivada pela alienação, pela reificação e pela ideologia.
         É que a atividade dos homens e dos resultados dessa transformam-se objetivamente em força suficientemente autônoma, que os domina, opondo-se a eles que, ao invés de sujeitos ativos do processo social, tornam-se seu objeto. É, dentre outros, o fato do trabalho alienado, trabalho que se objetiva em mercadoria, a qual se opõe ao homem; trabalho que é essencialmente humano, mas que passa a pertencer, como força de trabalho, a outro, que o adquire como a qualquer mercadoria; trabalho que se objetiva em produto, que se opõe ao trabalhador. Ou mesmo no caso da autoatividade do cérebro humano e suas criações, como na religião em que, criado um deus, a este o homem submete-se, pois que aquele toma vida independente e o domina.
         Mas pode o grau de alienação tornar-se maior, como no caso em que relações sociais são vistas como relações entre coisas, uma desumanização. É o caso de admitir-se valor intrínseco ao ouro, quando essa atribuição é feita em razão do processo de produção; ou considerar o juro como remuneração do dinheiro, quando se trata de uma forma de exploração; ou mesmo quando a burocracia trata as pessoas como peças de uma engrenagem.
         Tanto a alienação quanto a sua forma agravada, a reificação, fazem a mediação entre realidade e memória, tornando-a alienada, como, por exemplo, na memória a serviço do trabalho, ou na memória conformada pela reificação burocrática ou nas ditaduras. Preconceituada que é a memória, a alienação e a reificação a conformam ou a contaminam, a depender do grau de sua influência e do desenvolvimento civilizacional.
         A ideologia por sua vez, como idealização do real para dar consciência aos homens em sua práxis, também media a memória. A ideologia é apreensão do real pelos homens para que estes conscientemente combatam por seus interesses. A ideologia, assim, pode ser uma reconstrução espiritual da realidade ao avesso, isto é, que não corresponda exatamente à realidade, ou uma construção adequada a essa, porém sempre dotada de generalidade, pois não há ideologia individual. Só há ideologia quando uma visão de mundo ou do tempo histórico adotada conscientemente pela práxis humana permeia a sociedade.
         O impacto da ideologia em relação à memória social é intenso e muitas vezes essa a recobre ou a motiva, como é o caso, dentre outros, do nacionalismo e seu produto maior a historia-memória: que cria um povo, define o território deste e lhe indica suposta identidade.
         Marcada por ideologia, a memória social desdobra-se em usos: a atribuição de uma unidade ou identidade a um povo, um grupo, uma etnia, etc; o fortalecimento do Estado com a ideia de nação, ou pátria; o obscurecimento da consciência dos oprimidos pelos opressores; a conservação da ordem; a proteção do capital.
         As determinações e mediações da memória social também assaltam o historiador e suas concepções e métodos para a História e, ao lado do esforço cientifico para a compreensão do homem no tempo e em seus contextos, há uma história - memória, que não consegue libertar-se dos grilhões dos interesses de classe e das idéias dominantes.
         Necessário é, para além dessas questões, porém considerando-as, fixar ainda uma síntese quanto à tormenta que domina a fixação de campos distintos – História e memória. Nutriz da História seria a memória; matriz da História e não seu objeto seria a memória. Mas esse conflito na forma de encarar cada campo pode ser desfeito, afirmando-se que o fato de a memória ter-se apresentado com aspecto matricial em relação à História não impede a sua historicização, isto é, a sua transformação em objeto, pois, no tempo, individual e socialmente, os homens lembram e tentam ou conseguem legar memória a gerações vindouras, e a história apreende o homem no tempo com suas lutas e realizações.
         É evidente que as distinções têm sido feitas epistemologicamente, mas podem sê-lo a partir da essência: é que uma coisa é o processo objetivo dos homens no tempo, coisa distinta é a memória que se faz disso, mas esse processo é apreendido pela consciência da qual a memória é atributo essencial. Nessa apreensão consciente e metódica, o historiador utiliza-se de memória imobilizada, isto é, objetivada, e o fim que a objetivação da memória buscou pode não ser o mesmo que o historiador atribui: um testamento será a memória da sucessão de bens desejada pelo testador, mas para o historiador é mais que isso. Ele não evoca, estuda à luz da ciência. Ele mantém liberdade diante da memória objetivada, indo além do desejo do memorizador, e denuncia a memória institucionalizada.
         Pode-se completar dizendo que a memória possui dois instantes: a retenção e a evocação. O cientista da História, nessa condição, trabalha com o segundo momento da memória (evocação) de acordo com seus registros, isto é, com a memória imobilizada, objetivada, porém condenado à utilização de sua memória individual para o fim de construir saber a partir daqueles registros, de seu esforço intelectual e dos instrumentos disponíveis em seu tempo.
         Que a História tenha se confundido com a memória e tenha mesmo, num momento crucial, se realizado como história-memória, não é estranho: as ciências se constroem de acordo com as possibilidades do tempo. Por isso nada é definitivo.
         Tudo flui. Tudo. A História e a memória fluem, por isso devem ser imobilizadas em estelas. Ainda que estejam imobilizadas, as consciências delas tomando conhecimento, as farão fluir.




















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[1] Lepetit, Bernard. Histoire et Sciences Sociales. Um tournant critique – In Annales Économies, Societés, Civilisations, 43e année, nº 2, 1988. Présentation. Tradução nossa.
[2] Lepetit, Bernard. Tentons L’experience – In Annales Économies, Societés, Civilisations, 44e année, nº 6, 1988. Présentation. Tradução nossa.

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