sexta-feira, 30 de junho de 2023

Maria Mar

 

Ruy Medeiros | Maria Mar

Foto: BLOG DO ANDERSON

Em determinados momentos da história, a sensibilidade do escritor é despertada pela lembrança associada ao risco. É como se, na consciência do intelectual, um sinal de perigo o alertasse e ele então voltasse para a memória de sua sociedade para abrir o sinal vermelho do risco. Exemplo eloquente desse fenômeno literário – com grandeza – está em Arthur Miller. Quando o macartismo tomava conta dos Estados Unidos, com chantagens, censuras, interdições de direitos, prisões, expulsão de pessoas de seus empregos, processos etc, tudo sob falsa alegação de investigar atividades antiamericanas, a memória de Arthur Miller visitou o passado: numa comunidade de Massachusetts, em fins do Século XVII, dezenove pessoas foram julgadas e enforcadas.

Seu crime? Feitiçaria. Adolescentes de famílias puritanas foram acusadas de, em companhia de uma negra nascida em Barbados (ilha das Antilhas) prática de rituais amorosos de feitiçaria. Logo, com insistência, surgiu a acusação: por intermédio de jovens, o demônio estava atuando contra a comunidade e sua religião. Delações aparecem em vários locais da comunidade. “Pessoas importantes” são acusadas por aquelas jovens de idêntica prática. A perseguição desenfreada, se estabeleceu e o fanatismo ocupou o primeiro plano na comunidade puritana. Era a caça às bruxas. E, séculos após, já no XX, a paranoia de Massachusetts, sob a forma política de macarthismo reaparecia. Assim, leitores aos milhares perceberam a mensagem: com a peça The Crucible (mais conhecida com o título do filme que ela inspirou – As Bruxas de Salém), baseada em fatos reais, Arthur Miller falava sobre algo que, em essência, era da natureza do macartismo: o comportamento fanático contra adversários ou contra os que pensam diferentemente

No Brasil de nossos dias, marcado por absurdos pregados e praticados por políticos que sonhavam (e sonham ainda!) com o restabelecimento do terror de estado, algumas obras de ficção também visitaram o passado, com suas bruxas e bruxos e seus perseguidores com vestes talares ou fardas, isto é, reviveram a história real vista sob a forma de ficção, em romances fundamentais: “Cabo de Guerra”, de Ivone Benedetti, “Um dia esta noite acaba”, de Roberto Elisabetsky; “Arrigo”, de Marcelo Ridenti (Editora Boitempo), “A noite da espera”, de Milton Hatoun (Companhia das Letras). Julguei necessário falar disso a fim de apreciar um belíssimo romance, de autoria de Ana Isabel Rocha Macedo: Maria Mar estrela das ideias e do amor (Empresa Gráfica da Bahia, Salvador, 2023). É livro da natureza dos anteriormente referidos.

O romance Maria Mar é fruto da consciência, esteticamente conduzida, que se recusa dobrar diante da barbárie anunciada e que visita um passado algoz vivenciado por homens e mulheres, que hoje estariam na etapa de seus setenta anos, pouco mais ou menos. É o relato de vida de um jovem (percebe-se que conquistense), que após concluir o Curso de Pedagogia e já com noção de sentido que tem um regime de força, sua consistência opta pela liberdade, resolve participar de concurso público e, aprovada, assumir a cadeira de professora numa pequena comunidade litorânea. Sem romper, distancia-se da família, já órfã de pai, para em nível mais transparente de sentimentos, voltar a conviver bem com a mãe, embora em locais diferentes. Conflitos de família são superados, novas amizades feitas, novo relacionamento conjugal da mãe é aceito, cultivo de música e literatura toma novo sentido na vida daquela jovem. Naquela pequena comunidade encontra o amor na pessoa de um jovem que, clandestinamente, como outros tantos, combatia a ditadura reinante, e do qual a história é aos poucos revelada; Depois, um corpo de homem jovem é encontrado morto com sinais de tortura e, para a jovem, saudade, busca e tristeza. Digo pouco do enredo, a tessitura é valiosa, no entanto.

É um livro capaz de bem revelar sentimentos, sobretudo de solidariedade: das amizades espontâneas e construídas. Esse último romance de Ana Izabel fixa o leitor sempre na busca do próximo lance da narrativa. Como se diz, prende o leitor. A narrativa é vivaz, bem construída, de forma que mantem o leitor desejoso de saber o que o espera no próximo lance, ou qual é o desenlace.

Os personagens são muito bem construídos, o apelo do narrador virtual dá à narrativa o tom de uma conversa entre duas pessoas bem conhecidas e o leitor fica surpreso, nas páginas finais do livro, com a “identidade” de quem depõe a história conflitual entre tendências do sentimento humano, representado por pessoas e regime. Não revelei acima os meandros e final da longa história de vida retratada num romance que, não tenho dúvida em afirmar, inscreve-se num dos melhores que já li.






sexta-feira, 9 de junho de 2023

Há 105 anos, foi-se o último boêmio



  / Anderson BLOG @blogdoanderson


Ruy Medeiros

Há escritores que são lidos bastante em seu tempo e continuam a ser lidos; outros são pouco lidos em seu tempo e, descobertos depois, são muitos lidos; finalmente há aqueles que, muito lidos em seu tempo, quase que caem completamente no esquecimento, sendo lembrados quase que somente em sua terra de origem. Emilio de Menezes está nessa última situação.  Nascido em Curitiba em 4 de julho de 1866, faleceu no Rio de Janeiro em 8 de junho de 1918. Em 1927, seus restos mortais foram trasladados para Curitiba, onde os esperava cortejo de milhares de pessoas, tal a admiração que ainda gozavam a vida e a obra do poeta, e foi sepultado no cemitério municipal da capital paranaense. Nessa tem busto de mármore na Praça Osório. Autor de várias obras, foi ele membro da Academia Brasileira de Letras. Vale lembrar que, por motivo de doença e em razão de a ABL exigir, por mais de uma vez alterações em seu discurso de posse (censura!), por entender não serem adequados atributos nele expendidos, demorou de ser empossado. Seu fardão de acadêmico foi-lhe presenteado pelo Governo do Paraná. Empossado, seu discurso de posse, com alterações, só foi publicado no ano de 1924.

Por detrás dessa notícia que lhe dou, havia um dos maiores boêmios, considerado por seus contemporâneos um grande escritor. Lido ele era. Leitores buscavam em jornais suas tiradas em relação a pessoas, notícias ou fatos e passavam-nas verbalmente para outros. Sua principal biografia tem o sugestivo título de “Emilio Menezes – o ultimo Boêmio”, com várias edições, de autoria de Raimundo de Menezes. Gozador. Satírico. Maledicente. Inconveniente. Houve quem o apelidasse de má língua. Mas era admirado e mantinha bom círculo de amigos, especialmente os frequentadores da Colombo, no Rio de Janeiro, vários escritores como ele. Foi colaborador de jornais e revistas importantes do Rio de Janeiro e de São Paulo. Segundo tradutor, em língua portuguesa, de “O corvo”, de E.A.Poe, deixou publicados Marcha Fúnebre, Poemas da Morte, DIES | RAE, Poesias, Mortalhas etc. Em 1980, o Governo do Paraná, em edição da José Olímpio, publicou sua obra: Emilio de Menezes Obra Reunida.

Mestre do trocadilho, dos reclames em forma de poesia, da crítica mordaz, Emilio ficou na memória de muitos como o grande trocadilhista de todos os tempos.
Se você suportou essa notícia até aqui, siga-a com alguns trocadilhos do poeta: Resposta, numa solenidade, a uma senhora que lhe perguntou se ele sabia quais eram os encantos da mulher: “seio-os, minha senhora”. À outra, que não percebeu o seu estado etílico e resolveu perguntar-lhe o que ele tinha em sua descomunal barriga: após colocar a mão à altura do umbigo, o poeta respondeu: daqui pra cima, cerveja; para baixo, Parati (Parati era o nome de uma famosa cachaça). De Madame Curie, que ganhou o Prêmio Nobel de Química, sobre quem corria boato de estar apaixonada: “devia ganhar o prêmio de Física por seus estudos de atração dos corpos.” Em relação a um insigne ministro cuja demissão era desejada pelo Presidente de República, que o fritava, mas que se fazia de desentendido e ficava no cargo como se nada houvesse: “é um insigne ficante”. Sobre projeto de lei prevendo tributação da “renda” encaminhado ao Congresso pelo Presidente: passará contando que não toque nos “bicos” dos deputados. A uma pessoa, que não era de seu agrado, e que lhe pediu que ele contasse seu último trocadilho, Emilio disse: “Eu morava em Paquetá e mudei para a Ilha do Governador”. O interpelante disse que isso não era trocadilho. Logo, Emílio respondeu: mas é uma boa troca d’ilhas.

Emilio fez, por encomenda, versos de propaganda. Ai vão alguns deles: Para uma marca de manteiga, no período da Guerra dos Balcãs: Da Sérvia à Herzegovina, o ardor escalda | Porque esse povo forte e unido importa | Manteiga do Brasil, marca Esmeralda. Para a cerveja Brahma: José Bonifácio insulava | Nessa ilha pitoresca, Paquetá! | Lugar onde a água de coco dominava | E a Brahma Porter dominando está. Para o cigarro Excelsior: Do alto do céu demande o rumo | O aroma que o cigarro tem. | Porém o odoroso fumo | do Excelsior vai muito além.

Depois de milhares de tiradas engraçadas e de acoites verbais a políticos (inclusive Ruy Barbosa), O poeta morreu doente e aos poucos sua obra poética, embora objeto de apreciação, foi aos poucos caindo no esquecimento. Envelheceu, e com ele, sua forma de viver. Mas ele sabia que tudo envelhecia. Disse-o na estrofe última de Tarde na Praia, ao contemplar o mar: E ao contemplá-lo assim, tristonho digo, | vendo-lhe, à espuma, os meus cabelos brancos: | o velho mar envelheceu comigo.”

A Conquistense do Araguaia

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