sexta-feira, 31 de março de 2017

31 de março - 31-03-2017



31 de março

Aos que perderam a memória
do tempo obscuro

Ruy Medeiros

Em 31 de março (tiveram vergonha de dizer que foi em 1° de abril) um general que se autodenominava “Uma Vaca Fardada”, deu seguimento a demorada conspiração e iniciou a fase concreta de assalto à máquina do Estado.
A partir daí era a ditadura. É difícil definir esse regime de ódio.
Mas, com certeza, sabe-se que a ditadura pode ter definição aproximada a partir de sua forma de agir.
Ela, de logo, proíbe os direitos de opinião e de reunião. Todas as ditaduras o fazem, com ou sem édito prévio.
Ela é contra a dignidade, porque não respeita os atributos da pessoa humana, os trata como objeto dos quais pode dispor ou o quais pode descartar; ela é contra a opinião, porque não aceita o diálogo e a todos trata como inimigos potenciais ou declarados; é contra a reunião, que não a favoreça, porque teme que de várias inteligências surja um consenso para a ação; é contra a arte, por isso censura todas as expressões estéticas; é contra a liberdade, por isso encarcera; é contra a vida, por isso tortura e mata.
A ditadura não é moral. Ao contrário disso, censurar, impedir reunião, tratar pessoas como objetos, impor o reinado do maniqueísmo, encarcerar, tortura e matar, tudo isso representa suprema imoralidade. Mas quanto à chamada probidade no trato da coisa pública, o seu assalto a bens e direitos públicos fica acobertado pelo terror, medo, ameaças, e punição ou morte daqueles que denunciam suas falcatruas. Como não podem ser divulgados, seus agentes posam de honestos, pais da pátria, protetores.
A ditadura promete preservar a democracia (que contradição, que farsa, que ironia), mas estabelece o condomínio restrito do poder aterrorizante e dos interesses de ínfima minoria. Afinal é ditadura.
Hoje, quando retornam insistentemente discurso e voz a favor da ditadura, é preciso dizer que para aprova-lo é necessário que se prepare para renunciar à ciência compartilhada, à liberdade, ao diálogo, à dignidade, à arte e, no limite, à vida. É necessário que se torne gusano ou escravo. Os condôminos do poder devoram uns aos outros e mesmo a grande esperteza de alguns na arte de bajular não é suficiente para fazê-los sentar-se à mesa do círculo dos ditadores. Muitas vezes a admiração incondicional e a bajulação também incomodam os ditadores: oportunistas que são, eles tem faro suficiente para afastar os medíocres que incensam seus atos e outros oportunistas que querem gozar das vantagens de ser cúmplice do regime de ódio.
Enfim, como diz Afonso Romano de Santana:
“Sei que a verdade é difícil e para alguns é cara e escura.
Mas não se chega à verdade
Pela Mentira, nem á democracia
Pela ditadura.” 

quarta-feira, 29 de março de 2017

Em palpos de aranha

Em palpos de aranha


Ruy Medeiros


A administração pública municipal de Vitória da Conquista encontra-se em palpos de aranha.
Quando candidato a Prefeito Municipal, o atual gestor prometeu aos condutores de Vans que iria regularizar o serviço que realizavam sem qualquer cobertura legal. Passava a impressão que, assumindo a chefia da gestão pública, logo daria a todos aqueles condutores a possibilidade de continuarem o transporte público de passageiros legalmente e sem transtornos.
É provável que o candidato, hoje chefe do poder executivo local, soubesse que a coisa não podia dar-se por artes de berliques e berloques, pois se espera de qualquer candidato de um município importante que realmente conheça os desafios da administração pública e as limitações que a lei impõe ao trato da coisa pública. Apostou na promessa fácil e no voto dos interessados.
Hoje, é bem difícil que desconheça outros aspectos necessários à prestação do serviço público de transporte de passageiros. Afinal de contas, possui um bom corpo de procuradores jurídicos. Mas, mesmo tendo sido alertado (é o mínimo que se espera dos procuradores, alertar), e conhecendo a capacidade dos procuradores acredito que se manifestaram sobre o assunto, mas a administração continua dando passos e declarações de que oficializará o transporte coletivo de passageiros feitos pelos veículos tipos vans, hoje existente.
Os condutores daqueles veículos que fazem o transporte coletivo, incentivados pela administração municipal, distribuíram linhas, numeraram seus veículos, uniformizaram a pintura desses, ocupam uma garagem e vestem fardamento de trabalho uniformizado, tudo como se fossem verazes concessionários. Tudo às claras.
Recentemente, em programa da rádio, o chefe do executivo municipal, declarou que já está providenciando estacionamento para as vans. Disso e de outras manifestações existem gravações. Dá a coisa como decidida.
Sem entrar no mérito se o serviço de transporte por vans é bom ou ruim, é necessário que, com a devida sobriedade, a questão seja discutida à luz do ordenamento jurídico, isto é, sob o prisma da constitucionalidade / legalidade.
A Constituição Federal, quando trata da competência material dos Municípios, diz:
Art. 30. Compete aos Municípios:
(...)
V – Organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluindo o de transporte coletivo que tem caráter essencial.
Considerando que nada está a justificar permissão (não há qualquer situação de emergência ou colapso do serviço), para que seja colocado em prática (organizar e prestar, diz a Constituição) o serviço do transporte coletivo de passageiros será necessário que haja lei prevendo-o e que os serviços sejam prestados diretamente pelo município ou mediante concessão, ou permissão antecedidas de licitação. Existe uma constitucionalidade/legalidade que deve ser observada e cuja não observância traz sérias consequências ao administrador público. Não pode ser negada vigência ao art. 175 da Constituição da República: Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
As diversas linhas de transporte coletivo urbano / suburbano de passageiros já foram licitadas e duas empresas de ônibus tornaram-se concessionárias do serviço. Só elas, legalmente, encontram-se autorizadas, por que venceram concorrência pública e são legalmente concessionárias, a realizar o transporte coletivo.
Quando se incentiva, promete, permite oralmente, informalmente, o transporte coletivo de passageiros, diante da existência de empresas que o executam, sob concessão, e que inclusive pagaram outorga, descumpre-se contrato de concessão, desequilibra-se projeção de ganho, quebra-se o equilíbrio de despesa/receita, deixa-se desprotegido o passageiro quanto a alguns de seus direitos (passe livre para quem a esse tem direito, sistema de reclamação, responsabilidade objetiva do condutor, são exemplos), o modelo de culpa por danos a terceiros deixa de ser objetivo, etc. Mas, sobretudo, descumpre-se constituição e lei (inclusive lei municipal). Uma das empresas ajuizou ação de obrigação de fazer (processo nº 0500354-48.2016.8.05.0274), que mereceu liminar que proíbe o transporte de Vans.
A situação, nesse ponto, adquire gravidade maior: a consequência punitiva prevista na lei de improbidade administrativa (LGIA), ou Lei nº 8.429, de 02.06.92, e a pena prevista no Código Penal, por usurpação de função pública (neste último caso, quanto aos transportadores).
Realmente, a Lei nº 8.429/92 tipifica como ato de improbidade administrativa os que atentam contra a legalidade ou os princípios da administração pública. A consequência do descumprimento da Constituição, da lei e dos princípios da administração (improbidade) pelo gestor público ou servidores é grave: “Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível” (Constituição da República Federativa do Brasil, art. 37, § 4º). E, na LGIA: Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:
(...) VIII – frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente.
A Omissão também pode caracterizar a improbidade, como deixa claro o caput do art. 10, citado, da LGIA.
O Código Penal, por sua vez, tipifica o crime de Usurpação de Função Pública:
Art. 328. Usurpar o exercício de função publica:
Pena – detenção de 3 (três) meses a 2 (dois) anos e multa.
Parágrafo único. Se do fato o agente aufere vantagem:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa.
Assim, não apenas o administrador é atingido. 
Há decisões de tribunais que entendem que o transporte coletivo irregular de passageiros caracteriza o crime de usurpação de função pública. A pena para o crime de usurpação de função pública está bem clara. Quanto à improbidade a pena será “ressarcimento integral do dano, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos, pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do dano e proibição de contratar com o poder público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios” (...).
A administração municipal sabe que é ilegal permitir, incentivar e dar guarida à situação, sabe que há leis que obrigam a submissão de concessão ou permissão à devida licitação, sabe que há decisão judicial liminar proibindo referido tipo de transporte. Pressionado por cobrança de promessa, a administração municipal persiste na prática administrativamente irregular. Não pode atribuir a outrem seus apuros causados por promessa cujo cumprimento muito provavelmente tinha conhecimento que não podia realizar. Há inúmeras apreensões anteriores de Vans no transporte não concedido.
A administração pública municipal tem conhecimento de que, em provimento de tutela provisória, em ação de obrigação de não fazer, (processo nº 0500354-48.2016.8.05.0274), um grupo grande de transportadores de passageiros está impedido de realizar o serviço. As empresas concessionárias do serviço de transporte de passageiros, por ônibus, em Vitória da Conquista, submeteram-se a processo de concorrência pública, na forma da lei federal nº 8.987/1995, e legislação municipal, pagaram outorga, e têm o direito de explorar o serviço sem a concorrência das Vans.
É isso tudo que coloca a administração municipal em palpos de aranha.
Com a palavra o Ministério Público.

The Rock (1996)

Da Série O Professor Hemetério e seu detestável Aluno: Décima Conversa - http://www.blogdopaulonunes.com



Da Série O Professor Hemetério e seu detestável Aluno: Décima Conversa





Ruy Medeiros

Alô, alô. Pô, Hemetério! Até que enfim você atende minha chamada ao telefone! Que há? Chiquinho assistiu ao debate de que você participou. Nem perguntei qual a opinião dele. Tenho até medo de que ele vista uma dessas camisas que trazem propaganda do Bolsonaro. O que você está fazendo agora?
Era Isadora (grande mulher, grande mulher) ao telefone.
O professor Hemetério respondeu:
Escuta, o Chiquinho não cometeria esse absurdo. Quanto a mim, vivo em tremendo mal estar diante da desfaçatez política governamental. A coisa está tão retrógrada que simples liberal um pouco esclarecido passa por revolucionário. Para desopilar um pouco estou lendo coisas do Zé Limeira.
– Mas… Zé Limeira, Hemetério?
Sim, veja como ele começou uma de suas aparições em Campina Grande:
“Peço Licença aos prugilos / dos Quelés da Juvenia / dos tolfus dos audíocos / dos Baixos da silencia / do genuíno da Bribria / do grau da grodofobia”.
– Como?! Rararará… Você está brincando… Leia para mim a parte do texto que você escreveu sobre a temerosa propaganda da reforma previdenciária. Pode ser agora, por telefone.
– Então ouça:
Ítalo Calvino, que nasceu em Cuba mas ainda criança foi para a Itália onde viria tornar-se grande escritor, em seu conto “A memória do Mundo” dá voz a personagem que, a certa altura, diz a interlocutor:
“A mentira só exclui a verdade aparentemente; você sabe que em muitos casos as mentiras – por exemplo, para o psicanalista, as do paciente – são tão ou mais indicativos do que a verdade; e assim será para os que tiverem de interpretar a nossa mensagem (…) ouça: a mentira é a verdadeira informação que temos de transmitir. Por isso não quis me proibir um uso discreto da mentira, quando ela não complicava a mensagem, mas, ao contrário, a simplificava”.
A temerosa propaganda do governo segue a diretriz do personagem de Italo Calvino. A conversa de que uma geração paga a previdência para a geração seguinte é totalmente falsa. A Previdência Social é Constitucionalmente parte integrante do Estado. É permanente. O Estado dotou-se de função previdenciária. Minha geração, que já se vai (para usar uma expressão de Brecht) afundando sob a crista da maré montante da geração nova, aqui presente, contribuiu (e ainda contribui) para a Previdência, mas esta não vive apenas das contribuições pessoais. Empresas são obrigadas a contribuir para o sistema previdenciário, parte de recursos obtidos com loteria vai para ela, assim como a contribuição do importador de bens e serviços do exterior, o Estado é obrigado a direcionar recursos para ela. E, sobretudo, a Seguridade Social (Previdência e Assistência Social) têm orçamento próprio, no orçamento anual do País, e pode, valer-se de outras fontes criadas por lei para a sua manutenção e expansão, tudo como prevê a Constituição Federal. Política permanente que é, criada, inclusive com previsão de expansão, não pode ser assimilada à vontade de uma geração. Mas o governo prefere seguir a orientação semelhante àquela do cínico personagem de Calvino: “A mentira é a verdadeira informação que temos de transmitir”. Além disso…
– Alô, alô, alôo… A ligação caiu. Essas drogas de Operadoras! A turma do Fernando Henrique disse que a privatização das teles era para quebrar o monopólio e melhorar os serviços. Que nada! Alô, alôôô… Nenhuma voz no outro lado da linha.

segunda-feira, 20 de março de 2017

Da Série O Professor Hemetério e seu detestável Aluno – Nona Conversa -blogdopaulonunes.com

Da Série O Professor Hemetério e seu detestável Aluno – Nona Conversa



Ruy Medeiros
– Hemetério, Ó Hemetério, estou entrando, dá licença.
Era Isadora que entrava na casa do velho professor.
– Ora, ora, Isadora. Vou parafrasear os versos de Manuel Bandeira:
Imagino Isadora, entrando no céu:
– Licença, meu branco!
E são Pedro bonachão:
– Entra Isadora. Você não precisa pedir licença.
– Acontece Hemetério que eu não sou Irene de Manuel Bandeira. Vejo que você está transcrevendo versos de Afonso Romano de Santana, e não de Bandeira.
– De fato. É do Afonso:
Mentiram-me. Mentiram-me ontem e hoje mentem novamente. Mentem de corpo e alma, completamente.
E mentem de maneira tão pungente que acho que mentem sinceramente.
Mentem, sobretudo, Impune/mente.
Não mentem tristes. Alegremente
Mentem. Mentem tão nacional/mente.
Que acham que mentindo história afora vão enganar a morte eterna/mente”.
Estou esboçando minha contribuição para o debate sobre a temerosa reforma da Previdência Social. Vou começar pelo fim. Algo assim: Não sei o que é mais criminoso nesse projeto de reforma: se a sua origem espúria no seio de um governo que já teve ministros afastados sob suspeita de prática de corrupção, tem outros cinco deles com denúncia apresentada pela mesma prática, ou se a imoralidade de um parlamento que já não representa nada (privatizado por grande empresas) votar matéria tão relevante. Trata-se, ao fim e ao cabo, quando à Previdência  Social,  de um patrimônio construído historicamente no país. Mas, sobretudo, é odioso saber que preparam o fim do sistema previdenciário, e que isso ocorra no momento de desemprego, quando famílias estão fragilizadas e não têm recursos para amparar seus entes que se encontram fora do mercado de trabalho. A propaganda sobre o assunto e farsesca. É o avanço do fascismo. É o estímulo descarado à previdência privada.
Chiquinho que veio à procura de Isadora, sua mãe, interveio:
– Não é exagero, professor? O senhor às vezes radicaliza.
– Que é isso, Chiquinho, se a tônica do discurso do Hemetério for essa, acho até que ele amacia. É, realmente, puro fascismo.
– Vamos embora, mãe, já tô indo.
 O detestável aluno terminou levando sua mãe, que saiu esbravejando contra tudo e todos e em cuja cabeça ressoava o verso de jovem poeta e cantor: “meus inimigos estão no poder”.

quinta-feira, 16 de março de 2017

Da Série O Professor Hemetério e seu detestável Aluno- Oitava Conversa = http://www.blogdopaulonunes.com

Da Série O Professor Hemetério e seu detestável Aluno- Oitava Conversa


O Professor Hemetério leu o texto que havia preparado a pedido da escola de sua rua. “O texto deve ser pequeno, professor, será colocado no mural junto a outros”, avisaram-no. Ele escreveu:
Neste 14 de março, devemos comemorar os 170 anos de nascimento de Antonio de Castro Alves, que nasceu em 1847 e faleceu em 6 de julho de 1871. Viveu pouco, amou muito, e tornou-se o poeta mais lembrado do Brasil.
Aqui eu escrevo sobre um dos atributos do poeta: a generosidade, em verdade, a solidariedade, que perpassa sua poesia e vida, dando pequeno exemplo.
A França foi derrotada na Batalha de Sedan pelas forças da Alemanha, em 01.9.1870. A fome passou a campear na França e as vítimas maiores eram as crianças. Fome. Fome. Franceses criaram o Comitê du Pain (Comitê do Pão) para angariar recursos para os necessitados.
A comunidade e o consulado franceses na Bahia, como em outros lugares, convocaram ato público (meeting) para angariar contribuições para as crianças francesas que passavam fome, para o dia 9 de fevereiro de 1871.
Castro Alves, doente (faleceria no mesmo ano) montou no seu cavalo e de sua residência foi até o distante palacete da Associação Comercial da Bahia, onde o “meeting” seria realizado. Pálido, cabeleira cheia, saltou do animal. Pouco tempo depois, naquele longínquo 9 de fevereiro, pediu a palavra e recitou um dos poemas mais afirmativos da língua portuguesa – “No ‘meeting’ du Comitê du Pain”.
Não transcrevo todo o poema, mas não deixo de mencionar, por ser oportuno para os nossos dias, alguns versos dele:
“Já que o amor transmudou-se em ódio acerbo, / Que a eloquência – é o canhão, a bala – o verbo. / O ideal – o horror! / E nos fastos do século, os tiranos / Traçam co’a ferradura dos ulanos / o ciclo do terror
(……….)
Já que é mentira a voz da humanidade. / Já que riscam da Bíblia a Caridade. / E d’alma o coração. / E a noite da descrença desce feia / E, tropeçando em ossos, cambaleia / Dos povos a razão
(………..)
Filhos do Novo Mundo! Ergamos nós um grito / Que abafe dos canhões o horríssono rugir / Em frente do Oceano! Em frente do infinito / Em nome do progresso! Em nome do porvir.
(………..)
Não; clamemos bem alto à Europa, ao Globo inteiro! / Gritemos liberdade em face da opressão!
Ao tirano dizei: tu és um carniceiro! / És o crime de bronze! – escreva-se ao canhão!
Chiquinho, que apareceu trazendo encomenda de sua mãe para o professor, pescou o texto e foi logo dizendo:
– Professor esse castro Alves já não diz nada para nós.
Ao contrário, Chiquinho, ele diz muito.
Minha amiga Isadora, tua mãe, uma vez disse em palestra: Castro Alves é sempre atual por que cantou o amor, a liberdade, o pão e a solidariedade, e o fez com arte. Nada em seus poemas é supérfluo.
Eu acho mesmo, Chiquinho, que falar de Castro Alves nesses seus 170 anos de nascimento contribui para afastar a pasmaceira que vai tomando conta de nossa cidade. Que a voz do poeta possa ecoar nas ruas: “lançai um protesto, ó povo, / Protesto que o mundo novo / Manda aos tronos e às nações”.
– Agradeço a tua mãe (grande mulher, grande mulher).
– Té logo, professor. Não tô a fim de poesia. Eu quero é a pasmaceira.
14 de julho de 2017 – 170 anos da morte de Castro Alves.

sexta-feira, 10 de março de 2017

Da Série “O Professor Hemetério e seu detestável Aluno” – Sétima Conversa -http://www.blogdopaulonunes.com

Da Série “O Professor Hemetério e seu detestável Aluno” – Sétima Conversa


Ruy Medeiros
… Plash peat raash pal… O professor Hemetério levantou os olhos do jornal e olhou em direção ao passeio, de onde vinha o som de algum arrasto ou batida.
Só podia ser o Chav…, o Chiquinho, disse. E reparou melhor: a bicicleta do detestável aluno, conduzida sobre o passeio, colidiu sobre braço e sacola do bravo professor Andrade. E era de esperar que Andrade estivesse levando para distribuir, os livrinhos de cordel. Em cima do passeio espelharam-se “O Cantor e a Meretriz”, “Juvenal e o Dragão”, “O Soldado Jogador”, “Vicente, o Rei dos Ladrões”, “Canção de Fogo”, “A chegada de Lampião ao Inferno”, e outros. Uma verdadeira antologia da poesia popular. O professor ajudou Andrade a recolher os livros.
– O passeio é do pedestre, rapaz! Disse alguém. Chiquinho retrucou: não tem ciclovia, o moço quer que eu ande pela rua pra ser atropelado? E, logo, dirigindo-se ao professor:
O senhor sabe que querem destruir uma das principais ciclovias da cidade? É uma das maiores. Eu li na internet.
O professor, embora um tanto incrédulo com o absurdo, resolveu deitar comentário.
Ora, Chiquinho, as ciclovias apareceram como uma das principais vias para mobilidade humana. Elas estão nas principais cidades. Algumas metrópoles possuem bicicletário para que pessoas peguem uma bicicleta até outro bairro, onde o veículo é entregue, em outro bicicletário. Já há ciclovias entre cidades e cuida-se de executá-las entre países. Evita acidentes entre usuários e veículos maiores, serve a veículo não poluente, econômico, vinculado ao desenvolvimento físico. Algumas são utilizadas para a prática de esportes, ciclismo. Destruir ciclovia atenta contra o interesse do povo e de sua parca economia, contra o meio ambiente, contra a liberdade de escolha de seu meio de locomoção. Há planejadores urbanos que elaboram plano cicloviário, e quando projetam vias e sua hierarquia, estabelecem o plano cicloviário.
– Sem essa, professor. Deixa o barco rolar. Deixa a contramão do progresso. Esse tal de vários modais…
– Olha, rapaz (respondeu o professor, enquanto Andrade batia seu lampeônico chapéu contra as coxas para tirar a poeira) não se pode reagir dessa maneira. Direitos costumam ser retirados um a um se as pessoas não reagem. Um poeta, de nome Eduardo Alves da Costa, lá de Niterói, nascido em 1936, autor de várias poesias, escreveu uma que foi traduzida em vários idiomas e transformada em posters que adornaram paredes do Café du Marquis, em Praga, e em cafés de Londres, Paris, etc, como nos informa seu editor. Nesse poema, há versos que dizem: “Tu sabes/conheces melhor que eu a velha história / Na primeira noite, eles se aproximam / e roubam uma flor / do nosso jardim / E não dizemos nada / Na segunda noite, já não se escondem: / pisam as flores, / matam nosso cão, e não dizemos nada./ Até que um dia, / o mais frágil deles / entra sozinho em nossa casa, / rouba-nos a luz, e, / conhecendo nosso medo, / arranca-nos a voz da garganta. / E já não podemos dizer nada”.
Pois é! Entre, professor Andrade, tome um refrigério; deixa-me matar a saudade de literatura de Cordel. E você, seu Chiquinho, vê se não apronta outra. Está despachado.

quinta-feira, 9 de março de 2017

Da Série o Professor Hemetério e seu detestável Aluno(6)- Sexta Conversa - http://www.blogdopaulonunes.com

Da Série o Professor Hemetério e seu detestável Aluno- Sexta Conversa




Ruy Medeiros

O bilhete era brevíssimo: Hemetério, envia-me algum livro sobre o feminismo. Preciso tirar uma dúvida sobre Bertha Lutz para minha palestra de amanhã. Isadora.
– Espere um pouco, Chiquinho, que logo lhe entrego o livro pedido por Silvia (grande mulher, grande mulher).
O professor foi à estante e lá pegou dois livros.
Enquanto o desastrado Chiquinho mexia nos CDs, o Professor meditava sobre o difícil percurso da luta das mulheres. A luta ombro-a-ombro com os homens nas unidades fabris, e naslides da lavoura. A difícil luta contra longas e extenuantes jornadas de trabalho e por aumento de salário. Destaque para as mulheres anarquistas com sua União das Costureiras, Chapeleiras e Classes Anexas do Rio de Janeiro. Seu manifesto inicial começava com forte afirmação: “Vos que sois precursores de uma era onde possa reinar a igualdade para todos, escutai: tudo o que fazeis em prol do progresso, militando no seio de nossas associações de classe, não basta!” Nessa fase é fundamental a presença de Maria Moura.
Continuou o professor Hemetério a relembrar, e sua memória evocou a Federação Brasileira para o Progresso Feminino, e a figura central de Bertha Lutz, filha de uma enfermeira inglesa com o cientista Adolfo Lutz, e a luta pelo voto feminino. Seu sufragismo seria coroado com o reconhecimento do direito ao voto pouco depois da Revolução de 1930.
Depois a escolha pela luta contra carestia.
Mas, nos anos de 1960/1970, elas se organizam em movimentos efetivamente feministas, com dificuldades, pois o País encontrava-se em período de ditadura militar. O Conselho Nacional da Mulher promoveu seu grande congresso, tendo à frente Romy Medeiros, em 1972, e aí ficaram evidentes que novos rumos deveriam ser adotados. Muitas desconfiavam das relações de Romy com o governo.
A leitura de Simone de Beauvoir (O Segundo Sexo) passou a ser obrigatória. A sociedade patriarcal, machista, o domínio do homem passaram a ser analisados, discutidos e denunciados. Foram elas que criaram também o movimento pela anistia, em plena Ditadura Militar.
Mas a luta continuou e com ela a visão de que, além da participação política e da luta contra o monopólio machista do poder, algo precisava ficar claro: qual mesmo era a questão? Tratava-se de entender o gênero. Escreveram sobre isso. Rose Maria Muraro, Safioti, e muitas outras. Iniciou-se igualmente a luta pela proteção da mulher e de seu corpo.
O desenvolvimento de estudos a partir da hermenêutica pretendeu trazer novas contribuições e algumas entenderam que com sua estética, sua busca de prazer, sua escolha sensual, o homem havia grandemente moldado as mulheres. Grandes telas retrataram a beleza desejada pelos homens, idem quanto a escultura, romances edificaram um espírito feminino desejado pelos homens, a sensualidade feminina era aquela da poesia, da prosa e da arte masculina (inclusive “O Beijo” de Klimt). Era preciso verificar se os chamados atributos femininos eram realmente decorrência do seu gênero? Pensaram. Seria um exagero? Afinal elas também nos construíram, a nós homens. É uma troca na civilização. Homens e mulheres se inventam, se constroem. O capital destrói afinidades.
O pensamento do professor voava. Ele considerou que as mulheres continuam suas buscas e sempre buscaram a autocompreensão e a liberdade.
Chiquinho disse: Professor, já vou.
Hemetério passou-lhe as mãos “Uma história do feminismo no Brasil”, de Céli Regina Jardim Pinto, e “História das Mulheres no Brasil”, de Mary Del Priore”. Num marcador de páginas escreveu: Isadora, Seguem os livros que você pediu. E, abaixo:
Salve 8 de março dia internacional da Mulher.


segunda-feira, 6 de março de 2017

Da série O Professor Hemetério e seu detestável Aluno(5).Quinta Conversa -http://www.blogdopaulonunes.com



Ruy Medeiros

Hemetério, velho professor, acabou de barbear-se. Cantarolou Bandiera Rossa e leu pela milésima vez os versos de Jean Cláudio:
“E vejo entre o porto de areia e mata
o canto do bicho camacã.
E vejo o uivo do rio que atraca
cia e mata pela mata
onde o gavião voa
liquidamente nas asas da terra…
– E novamente aqui estou
a ver luzes
pequeninas luzes
tragando o aboio do sereno.”
Esse menino vai longe, disse para si. Pegou o chapéu, traspôs o gradil e, cem metros depois, entrou no mercadinho para comprar cachaça para o licor.
– Gosta de uma pinga, professor?
– Você parece que me persegue, Chiquinho. O que há?
– Professor, o que é nepotismo?
Ora rapaz, nem isso você sabe. Disso a imprensa fala tanto. Vou-lhe responder em consideração à sua mãe (grande mulher, grande mulher, disse em pensamento). Nepotismo… a palavra vem do latim nepos (sobrinho) com acréscimo o sufixo ismo. Certos papas concediam favores, autoridade e privilégios grandes aos seus parentes, em especial aos “nepos” (sobrinhos). A palavra pegou, como se diz, e hoje significa o abuso praticado por autoridades públicas, em uso indevido da posição que ocupam, para favorecer, geralmente com emprego, cargo ou função, seus parentes ou parentes de amigos, sem levar em consideração a competência pessoal desses. Ok? Essa prática é condenável e o próprio Supremo Tribunal Federal editou súmula sobre isso para deixar claro.
Agora entendi, professor. Mas até mesmo na Vila? Pode comprar sua pinga tranquilo, professor. Que pena que o senhor não gosta de nepotismo… Mas aqui, também, professor?
O professor foi à banca, pegou o jornal e lá encontrou notícia nada edificante sobre um tal Gedel, residente em Salvador, do qual consta que foi um ministro relâmpago. E hoje praticamente está sem influência política por fortes acusações de prática que ofende o direito.

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