Foto: Celso Junior/Estadão Conteúdo/Arquivo
Ruy Medeiros
D. Pedro Casaldáliga, sua morte foi uma irresponsabilidade.
Logo agora, você se vai.
Um dia, depois de tanto ouvir sobre o seu combate, li num de seus textos:
Nasci às margens do rio tecelão Llobregat em 1928 e em uma leiteira (“Maldito seja o latifúndio, salvos os olhos de suas vacas”). De uma família Católica e direitista, o que naqueles tempos eram uma coisa só. Com a pujante raiz da terra, pelo lado de meu pai, na solarenga fazenda de Candáliga. Pelo lado de minha mãe, com a vista e a palavra e o dinamismo de uma longa dinastia de “Marchantes” (creio na Justiça e na Esperança).
Você tinha tudo para ficar acomodado na Europa. Mas não. Preferiu embrenhar-se num Brasil autoritário e injusto. Meteu-se lá no Norte Araguaia, em Mato Grosso. Estava doido para falar aos pobres, indígenas e não indígenas. Foi fixar-se em São Felix do Araguaia. De nada adiantou dizer que viver na América Latina era ariscoso: Havia uma brutalidade institucionalizada.
“No dia 26 de janeiro de 1968, Manuel e eu trocávamos os 11 graus abaixo de zero de Madri pelos 38 graus acima de zero do aeroporto do Galeão, Rio de Janeiro. Era um pulo no vazio do outro mundo. Eu tinha conseguido, finalmente o que tinha sonhado e pedido e procurado, raivosamente, durante todos os dias de minha vida de vocação: “as Missões”. Um clima heroico para viver heroicamente – dizia-me então para mim mesmo, ingênuo e obstinado. (Creio na justiça e na esperança).”
E, depois, luta contra a grilagem das terras dos pequenos lavradores, luta em defesa dos índios, solidariedade concreta aos pobres. Você viveu intensamente seus gestos, suas palavras, sua crença.
As perseguições chegaram logo. As ameaças dos grileiros aumentaram. Os boçais da ditadura militar o ameaçavam de expulsão a todo instante, prisão, tortura. Você resistiu.
A ditadura se foi, dizem. Você continuou aqui. Continuou amando sua gente, que eram os despossuídos.
Enfim, você se foi. Cumpriu o que um dia você disse, um pouco diferente, mas tão igual no morrer, morreu moralmente de pé:
Eu morrerei de pé como as árvores.
“Eu morrerei de pé como as árvores.
De pé me matarão.
O sol, como testemunha maior, porá seu lacre
sobre meu corpo duplamente ungido.
E os rios e o mar
se farão caminho
de todos os meus desejos
enquanto a selva amada sacudirá de júbilo suas cúpulas.
A minhas palavras eu direi:
- Eu não mentia ao gritar-vos!
Deus dirá a meus amigos:
- Certifico
que ele viveu convosco este dia.
De súbito, com a morte,
minha vida se fará verdade.
Por fim, terei amado!
D. Pedro Casaldáliga, sua morte é uma irresponsabilidade.
Agora você caminha entre as estrelas da memória daqueles que estudam seus textos, daqueles que admiram sua trajetória, dos indígenas, dos poceiros e camponeses, dos pobres, dos amigos e camaradas.
(D. Pedro Casaldáliga, da Ordem Claretiana, foi Bispo de São Felix do Araguaia, Mato Grosso, faleceu em 08/08/2020).
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