quinta-feira, 20 de março de 2014

Sinistra Lembrança, Ato Farsante.

                

                                               Ruy Medeiros

                Leio que pretendem reeditar, 50 anos após, “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”.
Não repito a tão citada frase de Marx sobre fatos que só na aparência se repetem: tragédia e farsa.
No entanto não posso deixar de fazer algumas perguntas sobre o cortejo que se anuncia.
Com Deus? Que Deus? O Deus de uma sociedade autoritária, criado para introjetar medo nas consciências e justificar torturas, exclusão, banimento e morte? Percebeu-se (e muitos crentes depois sentiram-se ludibriados) que aquele deus da marcha programada por golpistas era exatamente o que determinava não conviver, pois queria a separação; não dialogar, pois desejava a imposição de voz única; não respeitar a integridade física ou moral, pois ansiava torturar. Mas milhares de imagens, manipuladas, em vários lugares falavam em deus, na salvação da cultura ocidental cristã e da família. Na Bahia, bem me lembro, o Padre Peyton e a primeira dama, com gente da TFP desfilando. Milhares de pessoas aos quais certa imprensa, IBAB, IPES, Cruzada Anticomunista, etc, exaustivamente buscavam condicionar o mais escondido escaninho da consciência, ali estavam crentes que preparavam o reino de Deus e a defesa da família: “a família que reza unida, permanece unida”, diziam. Unida, como, se a fome separava seus membros, cada um migrando, indo para longe à procura do pão?
Melhor seria dizer, com muitos, porém desarmados, que anunciavam: “a família que tem comida permanece unida”.
Mas que família? Aquela família que depois os golpistas dilaceraram? A família de tantos religiosos que foram torturados? Certamente não era a família dos pobres e miseráveis, nem a família daqueles que não compactuavam com o crime e por isso protestaram. Familiares de muitos que marcharam com o Padre Peyton, viram suas famílias separadas por grades, exílio, desaparecimentos (assassinatos, em verdade) e que, por isso, não poderiam, se assim o desejassem seus membros, rezar unidas. Nem comer. Nem falar. Nem viver. Nem representar. Nem recitar.
Que liberdade? A liberdade para facínoras torturarem? A liberdade para suprimir vozes e liberdade daqueles que pensavam de forma diferente dos sobas? A liberdade para agredir consciência, inclusive a consciência de religiosos, famílias, velhos, jovens e crianças?
O momento de preparação do golpe foi também sinistro. Não se estava a defender família, Deus, liberdade. Estava-se preparando cerminho, como os fascistas sempre fizeram, com todo o instrumental de convencimento disponível para o golpe. E o fizeram para desencanto de muitos que logo se sentiram traídos, irremediavelmente enganados.
Li, em Fernando Arrabal (Carta a Franco), que quando a falange organizou a grande procissão para comemorar a vitória dos fascistas contra a República Espanhola, as pessoas contritas e embasbacadas, seguiram dignatários religiosos e carros alegóricos. Pousados nesses e em carros de combate estavam milhares de pombas que, só por milagre e ordem divina, reverentemente não voavam. Depois, soube-se: O tendão das asas das aves foram cortados. Nada de milagre. Engodo.
Inquieta-me a sinistra lembrança da marcha que, em nossa história, tomou as tintas do sinistro e da farsa. A reedição talvez seja pior, pois implica em desrespeito às famílias que foram separadas pelas mortes sob tortura e outras mortes.

No entanto sei, muitos não tinham condições de julgar, depois perceberam. Hegel disse que a coruja de Minerva só alça o vôo ao entardecer. Mas, e aqueles que hoje podem julgar, por que marcharão? Farão por vontade de serem idiotas, ou porque têm vocação para a prepotência sobre si mesmo?   

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