Ruy
Medeiros
Leio que pretendem reeditar, 50
anos após, “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”.
Não
repito a tão citada frase de Marx sobre fatos que só na aparência se repetem:
tragédia e farsa.
No
entanto não posso deixar de fazer algumas perguntas sobre o cortejo que se
anuncia.
Com
Deus? Que Deus? O Deus de uma sociedade autoritária, criado para introjetar
medo nas consciências e justificar torturas, exclusão, banimento e morte?
Percebeu-se (e muitos crentes depois sentiram-se ludibriados) que aquele deus
da marcha programada por golpistas era exatamente o que determinava não
conviver, pois queria a separação; não dialogar, pois desejava a imposição de
voz única; não respeitar a integridade física ou moral, pois ansiava torturar.
Mas milhares de imagens, manipuladas, em vários lugares falavam em deus, na
salvação da cultura ocidental cristã e da família. Na Bahia, bem me lembro, o
Padre Peyton e a primeira dama, com gente da TFP desfilando. Milhares de
pessoas aos quais certa imprensa, IBAB, IPES, Cruzada Anticomunista, etc,
exaustivamente buscavam condicionar o mais escondido escaninho da consciência,
ali estavam crentes que preparavam o reino de Deus e a defesa da família: “a
família que reza unida, permanece unida”, diziam. Unida, como, se a fome
separava seus membros, cada um migrando, indo para longe à procura do pão?
Melhor
seria dizer, com muitos, porém desarmados, que anunciavam: “a família que tem
comida permanece unida”.
Mas
que família? Aquela família que depois os golpistas dilaceraram? A família de
tantos religiosos que foram torturados? Certamente não era a família dos pobres
e miseráveis, nem a família daqueles que não compactuavam com o crime e por
isso protestaram. Familiares de muitos que marcharam com o Padre Peyton, viram
suas famílias separadas por grades, exílio, desaparecimentos (assassinatos, em
verdade) e que, por isso, não poderiam, se assim o desejassem seus membros,
rezar unidas. Nem comer. Nem falar. Nem viver. Nem representar. Nem recitar.
Que
liberdade? A liberdade para facínoras torturarem? A liberdade para suprimir
vozes e liberdade daqueles que pensavam de forma diferente dos sobas? A
liberdade para agredir consciência, inclusive a consciência de religiosos,
famílias, velhos, jovens e crianças?
O
momento de preparação do golpe foi também sinistro. Não se estava a defender
família, Deus, liberdade. Estava-se preparando cerminho, como os fascistas
sempre fizeram, com todo o instrumental de convencimento disponível para o golpe.
E o fizeram para desencanto de muitos que logo se sentiram traídos,
irremediavelmente enganados.
Li,
em Fernando Arrabal (Carta a Franco), que quando a falange organizou a grande
procissão para comemorar a vitória dos fascistas contra a República Espanhola,
as pessoas contritas e embasbacadas, seguiram dignatários religiosos e carros
alegóricos. Pousados nesses e em carros de combate estavam milhares de pombas
que, só por milagre e ordem divina, reverentemente não voavam. Depois,
soube-se: O tendão das asas das aves foram cortados. Nada de milagre. Engodo.
Inquieta-me
a sinistra lembrança da marcha que, em nossa história, tomou as tintas do
sinistro e da farsa. A reedição talvez seja pior, pois implica em desrespeito
às famílias que foram separadas pelas mortes sob tortura e outras mortes.
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