Conselheiro federal da Ordem dos Advogados do Brasil/OAB, membro da Comissão Municipal da Verdade, professor universitário, defensor do voto nulo, escritor e criterioso estudioso da História do Sertão da Ressaca, o advogado conquistense Rui Medeiros mantém-se fiel e mordazmente crítico ao sistema político brasileiro. Socialista convicto, ele não admite retroagir na linguagem nem assemelhar-se àqueles que, sob o pretexto de combater uma certa Direita, silencia-se perante todos os desvios ideológicos daquela que se autoproclama monopolizadora do pensamento da esquerda no Brasil.
Inspirado como de costume, e profundamente identificado com suas leituras marxistas, Rui Medeiros abriu literalmente o verbo numa riquíssima entrevista ao Blog do Fábio Sena, à qual não faltou, como é do seu costume, uma acurada análise da conjuntura política brasileira e um olhar especial ao processo eleitoral de 2014, marcado, segundo Rui, pela transformação dos candidatos e das ideias em mercadorias. “…Uma propaganda eleitoral em que se vendia o candidato”. Para ele, o aniquilamento das ideias resultou, entre outras coisas, numa campanha marcada pelo ódio e por ofensas de parte a parte, sem permitir ao cidadão brasileiro a possibilidade de discutir a fundo os verdadeiros problemas nacionais.
Primeiro candidato a prefeito do PT em Vitória da Conquista, no distante 1982, Rui Medeiros não acredita na existência de uma nova classe média e muito menos que esteja havendo uma real distribuição de renda no Brasil. Para ele, os programas sociais são instrumento de alienação cujo objetivo é afastar cada vez mais as pessoas dos centros decisórios, relegando-as a meras consumidoras de políticas de governo que servem muito mais à alienação que à liberdade das consciências. “Quando o Estado desenvolve uma série de políticas sociais não é uma perspectiva de incorporação da sociedade, é na perspectiva de isolar a sociedade”.
O historiador dá o alerta: “Até porque esse tipo de política de maneira nenhuma induz à ideia da socialização de meios de produção. Ao contrário: você tem direito a essas migalhas e o capital tem direito de continuar te explorando eternamente. Nós vemos uma política de alienação cada vez mais presente, reificação mesmo das consciências cada vez maior, e você então será apenas o eleitor, a sua participação é eleitoral. Isso às vezes chega a expressões bem reacionárias e irracionais”.
FÁBIO SENA: Rui, 2014 chega ao fim com um saldo de uma eleição presidencial bastante disputada. Que avaliação você faz dessas eleições?
RUI MEDEIROS: Olha, em primeiro lugar nós percebemos claramente uma crise de todos os partidos políticos e, em razão dessa crise, você nota que a sociedade terminou se arregimentando em torno de dois candidatos cujos discursos pareciam semelhantes mas cujos apoiadores em dessemelhantes, porém, envolvidos com uma única preocupação, de gerir o Estado mantendo uma continuidade e uma verdadeira dissociação entre o Estado e a Sociedade. Porque esses mecanismos que se tem de projetos de habitação, os mecanismos de Bolsa-Família, etc., não são mecanismos que colocam o Estado junto da sociedade e a sociedade participando do Estado. Ao contrário, é uma coisa em que o Estado dá todas as coordenadas e inibe a participação popular, inclusive quanto aos limites desses diversos programas. Uma resultante dessa polarização, que eu diria desarrazoada, de partidos políticos de um lado e de outro, partidos sem definição programática, partidos que às vezes vivem em função do Fundo Partidário, ou em função de tentar projetar uma ou duas pessoas no espaço político nacional, isso termina sendo danoso a uma democracia, ao Estado Democrático de Direito porque significa, sobretudo, uma não-participação da sociedade.
FÁBIO SENA: O que diferenciou esta de campanhas anteriores?
RUI MEDEIROS: Você nota que foi uma campanha política marcada sobretudo por alguns comícios, mas especialmente por uma propaganda eleitoral em que se vendia o candidato, não se discutia exatamente ideias, as ideias eram transformadas em mercadoria para que pessoas decidissem qual queria, se a que Dilma Rousseff estava apresentando ou se a de Aécio Neves.
FÁBIO SENA: Mas, embora fundamentalmente semelhantes, Rui, os discursos deles terminaram gerando um ódio entre partidários de lado a lado…
RUI MEDEIROS: Pois é. E isso foi agravado com a ideia de que esse ódio teria sido instigado por um ou outro, mas na verdade é um ódio motivado pela limitação do projeto político, pelo fato de que a população realmente não discute o seu destino, outros é que pretendem discuti-lo.
FÁBIO SENA: E tem uma grande bobagem dita de que as eleições teriam dividido o país.
RUI MEDEIROS: As eleições não dividiram o país. Nós somos um país extremamente dividido, um país injusto, com uma distribuição de renda perversa, com uma desigualdade social muito acentuada.
FÁBIO SENA: E essa conversa de nova classe C?
RUI MEDEIROS: Essa conversa de nova classe C, essa conversa da criação da ampliação da classe média, isso é papo pra boi dormir. O que a gente tem aí é um distanciamento de renda muito forte, e o que a chamada nova classe C, nova classe média, com seus cinco, sete salários mínimos, isso não significa que nós estejamos a caminho da igualdade social.
FÁBIO SENA: E a ideia segundo a qual os partidos cresceram e que a votação teria sido paritária?
RUI MEDEIROS: Veja, para se chegar a um cálculo de votação paritária, deixou de se reparar que não se computou o voto branco e nulo. Nós tivemos uma quantidade de voto branco e nulo muito grande. Não se conta a abstenção, não se conta o fato de que muitos jovens que poderiam ser eleitores aos 16, 17 anos não se alistaram. Não se conta o dinamismo do eleitorado brasileiro do ponto de vista numérico. Então é um cálculo limitado esse de que as eleições demonstraram uma divisão grande. A divisão existe e esse cálculo, a partir do número de votos de um candidato e de outro é uma grande bobagem, é uma análise política que deixa de lado todo e qualquer componente necessário a uma análise.
FÁBIO SENA: A campanha também foi marcada, Rui, pela exploração ao máximo das denúncias de corrupção, dos crimes contra a sociedade.
RUI MEDEIROS: Eu considero um crime que pessoas se apropriarem do bem público ou privatizarem parcialmente o Estado para obterem vantagens. Só que esse crimes foram explorados numa perspectiva elitista. Então, aquela história de que a Petrobrás está sendo dilapidada, de que houve um Mensalão em Minas que não se apurou, que houve um Mensalão no partido do governo e que por isso ele está descredenciado, são análises que ficam na superfície. Nós temos que ver porque é possível o erário público sofrer tanto no Brasil, porque é possível uma estatal poderosa como a Petrobrás permitir esse tipo de coisa que está acontecendo, isso é que é fundamental.
FÁBIO SENA: Na sua visão, o que possibilita que isso ocorra?
RUI MEDEIROS: No meu entender, o que possibilita a existência disso é uma falta de controle democrático, uma falta de controle social sobre os agentes do poder e um distanciamento cada vez maior da população quanto ao exercício do poder, totalmente quase que direcionado, do ponto de vista da formulação geral para o Parlamento e não para a construção do fortalecimento da nossa sociedade.
FÁBIO SENA: Rui, frustrada em definitivo quaisquer perspectivas de o PT representar os anseios daqueles que sonharam verem postas em prática políticas de esquerda, o que fica? Existe um caminho para a esquerda?
RUI MEDEIROS: Existe. Nós sofremos uma grande derrota quando se tentou equiparar o socialismo à experiência dos países do Leste Europeu, à experiência da China e à experiência de Cuba, que não são experiências do socialismo. E como houve naturalmente uma crise generalizada nos países que se diziam socialistas, na verdade países que tinham uma economia centralizada nas mãos do Estado…
FÁBIO SENA: Uma espécie de capitalismo de Estado…
RUI MEDEIROS: É, um tipo de capitalismo de Estado… Quando aconteceu essa crise, que ficou tendo como emblema a queda do Muro de Berlim, ali aquela confusão teórica, a falta de análise do que é realmente o Socialismo terminou nos atingindo profundamente. Porque se identificava primeiro aquelas como experiências do socialismo e, em segundo lugar, se disse que o socialismo foi derrotado. Aquilo teve um impacto muito grande porque logo se extrapolou para dizer que as próprias bases do marxismo foral totalmente abaladas. Nós tivemos naquele momento uma derrota. A segunda derrota que nós tivemos foi o fato, por exemplo, de a reação às políticas neoliberais não terem coesionado toda a esquerda para, nesse momento, mostrar a face perversa do Estado capitalista. E a terceira derrota que nós temos e que continuamos a ser derrotados é como o fato de a estratégia não estar bem definida. Porque digo isso? Antigamente nós, comunistas, fazíamos a política de eleger deputados para negar o parlamento, hoje a esquerda faz deputado para reforçar o parlamento. E mesmo aqueles partidos da tradição social-democrática, como o PT, terminaram abandonando qualquer sonho de uma reforma no Estado. Então, não há um sonho de reforma do Estado encaminhada pelos sociais-democratas do PT, não sei se a esta altura ainda são isso, e a gente não formulou uma política de negação ao Estado do Capital que está aí posto.
FÁBIO SENA: E qual seria a tarefa de hoje?
RUI MEDEIROS: Uma das tarefas que temos aí hoje é exatamente de reconstruir as bases teóricas, definindo bem o que é socialismo, qual a estratégia necessária, quais os instrumentos necessários para os socialistas. Certamente no Estado atual não é tática fortalecer o parlamento, como os partidos menores de esquerda estão fazendo na medida em que direcionam o seu combate, a sua luta, para dentro do Congresso Nacional. Temos que definir a questão teórica para compreensão do mundo atual, definir com que mecanismos, com que instrumentos vamos lutar, qual a estratégia geral.
FÁBIO SENA: Claro que, numa economia globalizada, mais que nunca, a estratégia não pode ser de um único país.
RUI MEDEIROS: Isso mesmo. Existe a mundialização do capital, e as grandes empresas pensam o espaço do mundo como um todo e não como espaços nacionais, temos que pensar cada vez mais no internacionalismo na luta dos socialistas.
FÁBIO SENA: Rui, de Alberto Fujimori, no Peru, passando pelo PRI, no México, foram criados programas em tudo semelhantes aos dos governos Lula e Dilma, sejam de combate à pobreza, de infraestrutura ou de habitação. Seria possível inserir Lula e Dilma no chamado neopopulismo, modelo que, para alguns atores, coabitou com o neoliberalismo para salvaguardá-lo?
RUI MEDEIROS: Olhe, eu acho que o populismo foi uma experiência política que já passou. Nós não temos mais populismo. Nós temos, na verdade, políticas de controle da sociedade muito eficazes. O controle da sociedade sobretudo pelos meios de comunicação, muito poderosos, pelos estímulos de consumo, pelos modos de vida que são induzidos na sociedade…
FÁBIO SENA: Uma democracia do consumo.
RUI MEDEIROS: É uma democracia de consumo. Isso é um aspecto central para a gente analisar a postura do Estado. Quando o Estado desenvolve uma série de políticas sociais não é uma perspectiva de incorporação da sociedade, é na perspectiva de isolar a sociedade. ‘Eu faço as políticas, você recebe essa política e cale a boca. Você não vai além’. Até porque esse tipo de política de maneira nenhuma induz à ideia da socialização de meios de produção. Ao contrário: você tem direito a essas migalhas e o capital tem direito de continuar te explorando eternamente. Nós vemos uma política de alienação cada vez mais presente, reificação mesmo das consciências cada vez maior, e você então será apenas o eleitor, a sua participação é eleitoral. Isso às vezes chega a expressões bem reacionárias e irracionais. Nós vimos recentemente quando os partidos acenaram com a possibilidade de plebiscito e alguns deputados começaram a bradar. Veja só: o plebiscito não sai do controle do Estado e, em segundo lugar, plebiscito é instrumento previsto numa constituição burguesa que rege o país. Por que estranhar plebiscito, por que estranhar referendo, por que estranhar os chamados conselhos, que na verdade não gozam de autonomia? Quer dizer, chega aos raios de uma burrice extrema…
FÁBIO SENA: Mas talvez não seja burrice…
RUI MEDEIROS: É, talvez não seja burrice, seja um mero discurso para contrapor o discurso estabelecido pelo outro lado. Porque eles apenas sabem digladiar entre si, eles não formulam uma estratégia mais geral para nosso país. Nós não temos uma definição hoje do que esse país vai fazer quanto a uma política de comunicação social. Isso é fundamental hoje. Nós não sabemos como evitar a política do ódio na Internet, nas rádios, na televisão, que às vezes é disfarçada e que é muito presente.
FÁBIO SENA: Mas que não pode ser considerada criação da chamada Direita…
RUI MEDEIROS: Exatamente. Você notou, por exemplo, o xingamento, a ideia de que o voto do nordestino, de quem recebe o Bolsa-Família, vale mais do que o voto do Sudeste, a ideia do país dividido entre os lúcidos que votaram em um candidato e dos imbecis que votaram em outro; ou, Ao contrário, daqueles que votaram num projeto de uma mudança consistente contra aqueles que queriam suprimir os avanços, etc., na verdade um discurso irracional em grande parte porque a grande questão posta não é esta. A grande questão posta é: a sociedade brasileira terá garantido o espaço para avançar? Dentro desse espaço, os trabalhadores poderão se organizar, poderão ocupar instâncias de decisão e impor sua vontade? Este é que a grande questão e não sabe se Lula é melhor que Dilma, se Dilma é melhor que Aécio, até porque os dois se parecem bastante.
FÁBIO SENA: Então, estamos próximos da máxima do Segundo Reinado sobre as semelhanças entre conservadores e liberais?
RUI MEDEIROS: É isso. No Império brasileiro se dizia que nada mais parecido com um liberal do que um conservador. Hoje, nada mais parecido com o PSDB do que o PT. A gente sabe isso. Talvez um partido ou outro dê mais ênfase a uma político de distributivismo, mas essa ênfase termina sendo anódina diante dessa triste situação de desigualdade social que nós vivemos.
Agradecimentos especiais ao Blog do Anderson pela feitura e pela cessão dos registros da entrevista com o historiador Rui Medeiros.
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