quarta-feira, 6 de abril de 2016

Lição de Ruy para nosso tempo


Ruy Medeiros

Tomo como guia neste pronunciamento a figura de Ruy Barbosa (1849-1923), e pode parecer que não é adequado fazê-lo com pessoa desaparecida há quase cem anos. Mas quando as liberdades são contestadas ou desrespeitadas, homens e mulheres lembram-se daqueles que as defenderam: Hugo, Taras Shevechnko, Castro Alves, José Marti, Guilhén, Nazim Hikmet, Maiakovsky, Brecht, Pablo Neruda, Camilo de Jesus Lima... Então, lembramos Ruy.
Em passo de célebre defesa no Supremo Tribunal Federal, em 26 de março de 1898, Ruy Barbosa diz perante os ministros:
A liberdade não entra no patrimônio particular, como as coisas que estão no comércio, que se dão, trocam, vendem, ou compram: é um verdadeiro condomínio social: todos o desfrutam, sem que ninguém o possa alienar: e, se o indivíduo, degenerado, a repudia, a comunhão, vigilante, a reivindica. Solicitando, pois, este habeas-corpus, eu propugno, na liberdade dos ofendidos, a minha própria liberdade: não patrocino um interesse privado, a sorte de clientes: advogo a minha própria causa, a causa da sociedade, lesada no seu tesoiro coletivo, a causa impessoal do direito supremo, representada na impessoalidade deste remédio judicial.
Patrono da lei, e não da parte, é por isso que me não tendes o direito de perguntar pelo outorga dos interessados: é por isso que não me importa saber se são amigos, ou desafetos: é por isso que, se o meu esforço aproveitar a inimigos, então maior será o contentamento da minha consciência, vendo que Deus me permitiu elevar-me por um momento acima da minha pequenez, da miséria das minhas fraquezas e dos meus interesses, para mostrar em sua mais viva refulgência aos meus concidadãos a santidade do direito afirmado pela sua defesa na pessoa de nossos adversários (Barbosa, Ruy – Discurso proferido na sessão do Supremo Tribunal de 26 de março. In obras completas de Ruy Barbosa, Vol. XXV, 1898, tomo IV, Ministério da Educação e Saúde, Rio de Janeiro, 1948).
O advogado Ruy Barbosa então fazia a defesa oral, perante o Supremo Tribunal Federal, de Habeas-Corpus que requerera em 3 de março de 1898, em favor do “Senador João Cordeiro, e dos deputados Alcino Guanabara e Alexandre José Barbosa Lima, bem como do Major Tomás Cavalcanti de Albuquerque, Frederico José de Sant’Ana Neri (barão de Sant’Ana Nery) e José de Albuquerque Maranhão, que desterrados para a ilha de Fernando de Noronha, por decreto do poder executivo de 21 de janeiro deste ano... ali continuam detidos (...). Petição de Habeas-Corpus. In obra citada. É que, cessado o estado de sítio, os pacientes, adversários de Ruy, continuavam detidos.
A lembrança da voz que clamava no Supremo Tribunal Federal (e que seria atendida) vem por conta do momento atual.
Ruy, no instante em que a doutrina falava das liberdades públicas e garantias como pertencentes ao indivíduo, na tradição individualista do liberalismo, pois ainda não existiam constituições sociais (só surgiram a partir de 1917, México, e 1919, Alemanha), entende o Habeas-Corpus como garantia social e a liberdade como condomínio social: compreende a garantia do remédio constitucional como ação em favor de todos e a liberdade como um direito/interesse difuso, isto é, difundido por toda a sociedade, e atribui o fato de a constituição não exigir mandato para o requerimento “da liberdade por Habeas-Corpus” o patrocínio da lei (no caso a Constituição) e não do impetrante ou beneficiário. Requeria ele, lembre-se, a liberdade de adversários, por meio de Habeas-Corpus. A liberdade que, como condomínio social, a todos pertence e que, se for retirada de alguém se a retira de todos.
Disse que a lembrança das palavras do marcante jurista vem por conta do tempo atual:
É que li diversas manifestações de colegas advogados, de jovens estudantes e mesmo de intelectuais juristas, em favor de amplas conduções coercitivas, grampos telefônicos e divulgação de seu resultado, fora da lei, prisões preventivas e provisórias que já desnaturam esses institutos. A consciência não deixa de evocar as palavras daquele corajoso advogado, a quem Anatole France (que disputava o reconhecimento da Europa como maior escritor) exaltou por mais de uma vez, no Brasil – em discurso na Academia de Letras, e, na França – em jornal.
Ruy igualmente quando viu a República imersa em bandalheiras, não se omitiu: em extenso discurso/artigo denunciou a crise moral e enfaticamente falou da necessidade de desratizar o Estado (Vide A Crise Moral), no entanto não utilizou a situação nem o anseio (...) de moralidade com justificativas de desprezo às liberdades da democracia. Quando Ruy morreu um jornal do Rio de Janeiro disse que se extinguira o vulcão.
Agora, nesse instante, parece que ele não morreu, que é apenas um colega nosso mais experiente que nos alerta e nos ajuda a pensar.
A generosidade do encontro presente nada mais é o ecoar da defesa de garantias de todos nós, como condomínio, conquistadas com luta, sonhos, utopia, lágrimas, exílios e desterros. Não se pode perdê-la mesmo quando Ministro usurpa prerrogativa de Presidente, juiz alega interesse público (contra o direito-condomínio de que falava Ruy), e mesmo o conjunto poderoso das redes televisivas tenta emparedar nossas consciências, querendo a liberdade só para si, a opinião só para si, a ética apenas na forma que a entendem – Não se lembram sequer dos erros que antes cometerem ao apoiar o crime e o arbítrio da ditadura militar e abrem espaço para aqueles que usam o discurso da moralidade para justificar a imoralidade ditatorial. Para combater crime, existe o devido processo legal e não o arbítrio.
Hoje aqui e em muitos lugares gritamos pela liberdade. Cesse tudo o que a antiga musa canta que um valor mais alto se alevanta disse o poeta português em Os Lusíadas para exaltar as glórias de sua nação e dizê-las maiores que as dos povos antigos. Hoje o valor mais alto que alevanta é o respeito às liberdades públicas e garantias.
Mulheres e homens comprometidos com as garantias e direitos fundamentais, ajuntemo-nos!
Ou na voz-poesia de Drummond, que nos alcança:
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

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