Ruy
Medeiros
Há
exatamente quatro meses, participei da banca da tese defendida por
Gilneide de Oliveira Padre Lima: ‘Do
corpo insepulto à luta por memória, verdade e justiça: um estudo
do caso de Dinaelza Coqueiro’.
A então doutoranda falou analiticamente do destino daquela
conquistense nascida no São Sebastião, filha de Junília Soares
Santana e Antônio Pereira Santana, vítima da ditadura militar, cujo
corpo nunca foi devolvido à família, embora oficialmente tenha sido
reconhecida morta. Seus restos estão desaparecidos. A covardia dos
ditadores nunca os trouxe à luz do dia.
A
tese desdobra-se na análise do sofrimento dos pais, irmãos e amigos
de Dinaelza, que não foi sepultada pelos seus, dela não se
despediram, não velaram seu corpo, não lhe abraçaram despedidas,
sequer foram informados que sua vida fora subtraída do mundo. O
sofrimento. A busca. A angústia. A descrença. O conhecimento da
perversidade. A dor sem cura. O vazio. Tal como ocorreu com a
história de Fernando Santa Cruz, filho e pais.
Agora,
vejo e revejo rosto que fala a telespectadores de todo o Brasil, como
se dirigisse aos incapacitados de pensar, como a desferir ódio,
ironia e vingança contra pessoas que não querem à supressão da
liberdade, nem a implantação da indignidade como forma de governo.
São o rosto e a fala do Presidente. Como a demonstrar a naturalidade
de como que trata do sofrimento alheio, numa das imagens está
podando o cabelo, familiarmente. Fala de uma vítima ao filho dessa.
Nas imagens, o presidente quer atingir um homem que os advogados
elegeram para dirigir seu órgão de representação, mas também de
fiscalização, defesa de prerrogativas, defesa dos direitos humanos
e do Estado Democrático de Direito. Esse homem alvo do presidente é
Felipe Santa Cruz, Presidente do Conselho Federal da OAB. Atinge a
todos. Ao capitão presidente incomoda a independência de Felipe em
relação aos governantes. Para atacá-lo, intimidá-lo e ofendê-lo,
o Presidente Bolsonaro resolve dizer que sabe como morreu Fernando
Santa Cruz, pai de Felipe, e oferece versão mentirosa sobre o
assassinato frio e covarde deste por agentes da ditadura militar, que
na fala presidencial foi transformada em justiçamento da Ação
Popular contra o jovem militante. A fala cheira ameaça: significa
revelar que tinha intimidade suficiente com pessoas implicadas nas
prisões arbitrárias e mortes durante o regime militar. Daí é só
tirar conclusão.
Se
o capitão sabia como foi assassinado Fernando deveria tê-lo
revelado, no mínimo, à Comissão da Verdade constituída
oficialmente muitos anos após a transição do regime.
Fernando
Augusto de Santa Cruz Oliveira, pelo que se tem conhecimento, foi
preso juntamente com Eduardo Colier Filho, também pernambucano, meu
colega no Curso de Direito da UFBA, vigiado e depois perseguido
intensamente após sua entrevista à revista ‘Liderança’, na
qual ele declarou, referindo-se aos estudantes: ‘nós
vamos acuar a ditadura em todas as ruas’.
Em determinado momento, ficou difícil para Eduardo Colier Filho
permanecer na Bahia e ele foi para o Rio de Janeiro, onde lutou e
encontrou a morte. Seu corpo não foi devolvido ao choro dos pais.
Imagino
a dor de Felipe Santa Cruz ao perceber voz longínqua dos ditadores
ecoar na garganta do Capitão e este, insensível, dizer saber como
seu pai morreu. Dor e indignação. Mais que soco inglês na boca.
Ferida triturada. Fernando era então jovem de 26 anos quando o
assassinaram covardemente, em fevereiro de 1974. Jovem que tinha
coragem e sonho para vivê-la.
À
agressão do presidente, Felipe Santa Cruz respondeu à altura.
Replicou contra o ataque com nota pública virtuosa.
Uma
questão está posta: como fica a consciência da sociedade ao
perceber que o Chefe de Estado se compraz em demostrar que sabia de
um crime (é disso que se trata!) e não o revelou sequer tardiamente
à Comissão da Verdade constituída oficialmente para investigar os
atos do regime militar contra pessoas? Como fica essa consciência
diante da ameaça que se esconde na expressão “eu
sei como seu pai morreu”?
Poucos sabiam detalhes dos porões onde os covardes do regime se
homiziavam. Como fica o próprio direito ao asco diante de ofensas à
memória dos que se foram para aprofundar as feridas dos que sofreram
com a partida? Como fica a verdade?
Receba
meu abraço, Felipe Santa Cruz.
Fernando
Santa Cruz, PRESENTE.
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