segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Memória decepcionada



Ruy Medeiros
Para Jânio Freitas
Por telefone, um amigo perguntou-me que sentimento eu experimentei ao ver em blogs conquistenses imagens do Engenheiro no diminuto encontro realizado na sexta-feira, dia 31, na Câmara Municipal, por pessoas que estão criando o Aliança pelo Brasil, em Vitória da Conquista.
O Engenheiro trabalhou em empresa de Rubens Paiva, assassinado pela ditadura militar, cujo corpo nunca foi entregue à família da vítima. Mas também ele trabalhou para a empresa mais emblemática do Brasil que, combatida pelos asseclas do imperialismo, mereceu defesa em todo território nacional, com passeatas, palestras, comícios, músicas e até um filme com o nome da campanha de defesa: “O Petróleo é nosso”.
Empregado da petrolífera, o Engenheiro foi vítima do regime militar: perdeu um dos empregos mais cobiçado na época (técnico da Petrolífera), foi preso, seus carcereiros tentaram descumprir a Ordem de Habeas Corpus que lhe foi concedida (ainda não havia o Ato Institucional n° 5, que proibiu Habeas Corpus para presos políticos).
Já após a ditadura militar, com o regime constitucional implantado em 1988, as vítimas da ditadura foram contempladas com o direito de receber indenização do estado brasileiro. Era o caso do Engenheiro, pois este tinha sido preso e fora expulso do emprego. Nunca os militares (exceto os que foram suas vítimas fardadas) aceitaram a política de pagamento de indenização às vítimas da ditadura militar, inclusive o atual Presidente da República. Alguns mesmo negam que a ditadura existiu, como é o caso do chefe maior do Aliança pelo Brasil, em desrespeito à história, ao sofrimento de milhares de pessoas e à memória da sociedade.
Mas, quando vi texto e imagem do evento, sobre o qual o amigo me pedia que lhe informasse o que eu senti diante daquilo, o que logo me veio à mente foi a figura do Professor. Exatamente a imagem daquele Professor que marcou a formação de gerações de conquistenses.
Um dia, era em maio, quando, dando sequência à repressão sobre os vencidos, sequazes dos ditadores acantonaram em Vitória da Conquista, o Professor foi conduzido à prisão, não porque tivesse cometido qualquer crime, mas por ele ser o que era. 1964 marcava o início de um ciclo de crimes dos agentes do Estado contra adversários reais ou assim considerados por eles. O Professor e outros Conquistenses foram encarcerados. Um deles encontrou a morte na prisão.
Eu conheci o Professor. Fui seu aluno no Ginásio, no Instituto de Educação Euclides Dantas. Esteve preso em 1964, em Salvador, foi solto, depois, em seguida a Inquérito Policial Militar (IPM), foi denunciado formalmente e preso. Visitei-o na casa de Detenção. Ele e os outros acusados na mesma denúncia tiveram, decorridos anos após o Golpe militar, reconhecida a prescrição dos delitos que não cometeram.
Tive a honra de requerer, como permitiu lei anistiadora, seu reingresso ao serviço público, no cargo de docente. Ele realmente voltou às salas de aula. Para comemorar seu reingresso, foi promovida uma solenidade para a qual o Centro Espírita Humberto de Campos cedeu seu auditório. Eu tive honra e alegria de ser apresentador do evento. O salão encheu. O professor, esposa, filha e o filho, o Engenheiro, ali estavam. As pessoas ouviram oradores, mas estavam mesmo ansiosos pelas palavras do Professor, que falou sob silêncio reverente seguido de palmas. O Engenheiro agradeceu a todos em nome da família. Abracei a todos. Os presentes abraçaram-se.
Pensei responder ao amigo perplexo que me telefonou. Demorei um pouco. Falei em algo como memória decepcionada. É que se desenrolava na mente o trajeto de combates e sofrimentos do Professor.
Senti o golpe.




(03/02/2020)

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