segunda-feira, 4 de junho de 2012


Pátria e Utilidade do Texto: Durval Vieira de Aguiar e suas Descrições Práticas da Província da Bahia.

Ruy Medeiros
1. Pátria: de torrão natal a comunidade de sentimentos
A idéia de pátria permeia muitos textos. Está presente em escritos literários, discursos políticos, sermões, textos históricos e outros.
A utilização do vocábulo, à esquerda e à direita, suscita dificuldades conceituais. Contexto em que aparece e finalidade de seu uso causam embaraços à sua definição.
Já se disse, contrariando um dos sentidos mais entranhado, e alguns repetem, que “onde se vive bem aí é a pátria” (ubi bene, ibi pátria), ou “onde me sinto bem, aí é minha pátria”. Mas, essa afirmação tão cosmopolita, que encaminha a certo pendor materialista, não é decisivamente aquilo que domina quando se fala de pátria. “Ubi bene, ibi pátria” esvazia o sentido mais comum desta, pois importa em cisão entre específico solo (território) e pessoa ou geração que nele habita.
O comum é a vinculação entre pátria e território, o que importa dizer que pátria, embora não assimilada totalmente à vinculação pessoa solo, tem no território um de seus componentes e, mesmo quando não se vive no solo pátrio, a este se deve lealdade (patriotismo). Essa é a lição antiga e cotidiana e decorre daquilo que se extrai de miríade de textos: a inafastável lealdade, o amor entranhado, incondicional e eterno (não enquanto dure) à pátria.
Já diz Afonso Celso em livro muitas vezes reeditado, no qual dá motivos para amar o Brasil, mesmo que esse exija sofrimento:
Quero que consagreis sempre ilimitado amor à região onde nascestes, servindo-a com dedicação absoluta, destinando-lhe o melhor de vossa inteligência, os primores de vosso sentimentos, o mais fecundo de vossa atividade, dispostos a quaisquer sacrifícios por ela, inclusive o da vida.
Embora padeceis por causa da pátria, cumpre que lhe voteis alto, firme, desinteressado afeto, o qual, longe de esmorecer, - aumente, mesmo quando desconhecido, injustamente aquilatado, ou ingratamente retribuído, e, jamais, em circunstancia nenhuma, vacile, descreia ou se entibie (1).
Seja, como no pórtico do livro daquele autor: Right or Wrong, my Country.
Autor mais equilibrado, e apesar disso, em página célebre na qual a palavra tem sentido que se dá a nação, Ruy Barbosa igualmente eleva a pátria e ali a definição dessa encontra-se associada à visão liberal:
A pátria não é ninguém: são todos; e cada qual tem no seio dela o mesmo direito à idéia, à palavra, à associação. A pátria não é um sistema, nem uma seita, nem uma forma de governo: é céu, o solo, o povo, a tradição, a consciência, o lar, o berço dos filhos e o túmulo dos antepassados, a comunhão da lei, da língua e da liberdade. Os que a servem são os que não invejam, os que não infamam, os que não conspiram, os que não emudecem, os que não se acorbadam, mas resistem, mas ensinam, mas esforçam, mas discutem, mas praticam a justiça, a admiração, o entusiasmo. Porque todos os sentimentos grandes são benignos, e residem originariamente no amor. No próprio patriotismo armado o mais difícil da vocação, e a sua dignidade, não está no matar, mas no morrer (2).
A territorialidade compõe a idéia de Pátria, e esse é dado que tem profundas raízes no tempo, ora como o lugar de nascimento, ora o país. Encontra-se o termo para significar local (de nascença), referir-se a região ou a vila (município). No entanto não se deve esquecer que, com dose de espiritualização, o termo foi utilizado no sentido de país de origem, ou país. Exemplo disso se colhe na “Crônica de Dom João I”, de autoria de Fernão Lopes: com esta história se mostra com simples e afetado estilo o zelo de honra de Deus e do amor da pátria(3). No mesmo sentido, Camões se expressava, referindo-se a Portugal: vereis amor da pátria, não movido/De prêmio vil, mas alto e quase eterno:/ que não é prêmio vil ser reconhecido/ por um pregão do ninho meu paterno. (4).
Vieira utiliza a palavra com o sentido de País, Estado:
A segunda desgraça de S. Roque foi ser desgraçado com os naturais. Quando S. Roque fez sua peregrinação de França para Itália, havia guerras entre Itália e França, e desta guerra lhe sucederam ao santo duas coisas notáveis: a primeira, que chegando da Itália, os italianos o trataram como inimigo, e o feriram: a segunda, que tornando para França, os franceses o trataram como traidor, e o prenderam por espia. Há maior desgraça que esta? Que em Itália me tratem como inimigo, por que sou de França, e que em França me tratem como traidor, porque venho de Itália? S. Roque peregrinou de França para Itália por amor de Deus, e tornou de Itália para a França, por amor da pátria: e que quando vou em serviço de Deus, me tenham por inimigo, e quando venho em serviço da pátria, me tenham por traidor? Desgraça Grande (5).
No mesmo sermão de São Roque, cujo pequeno passo acima é transcrito, Vieira usa o termo pátria para expressar cidade: Depois de S. Roque haver peregrinado por Itália, recolheu-se outra vez a França, e entrando em Montpellier pátria sua...(6).
O contexto maior do sermão indica que pátria é utilizada pelo “embaixador da língua portuguesa” como país e correspondente estado, pois são autoridades públicas que prendem e acusam São Roque.
O termo de origem latina, usado com o sentido territorial (local de origem), é documentado desde 1476, em Portugal, no mínimo, pois assim apareceu em registrado: deixaram suas terras e pátrias. (7).
No entanto, o sentido restrito do termo (local de nascimento) deu lugar ao sentido do país sob domínio de um monarca.
Apoiando-se em kantorawicz, Jose Gil informa:
Kantorawicz, por exemplo, traça o percurso da palavra “pátria’’ que, tendo caído em desuso durante a Alta Idade Média (conservando apenas o sentido religioso de ‘pátria celeste’ ou ‘reino de Deus’) recupera, depois das cruzadas, o sentido de território onde se exerce o poder monárquico (nomeadamente o de lançar impostos): a defesa da pátria pelas forças do rei (daí a necessidade de imposto) surge como conseqüência natural da defesa de Jerusalém, cidade santa, “pátria dos cristãos” (que é acompanhada do lançamento de impostos). Até a Revolução Francesa, irá desempenhar um papel decisivo, no seio do discurso filosófico e político, no despontar do significado moderno de “nação”. (já que no século XIII, na França de Felipe, o Belo, a palavra ‘pátria’ começara a designar todo o reino e, por esta época, a monarquia territorial- talvez se possa dizer ‘nacional’ – era na França suficientemente forte e organizada para se proclamar a si mesmo communis pátria de todos os seus súditos e para exigir serviços extraordinários em nome da mãe pátria (Kantorowicz, 1957) (8)
Atribui-se à pátria capacidade de fazer aceitar sacrifícios e de mobilizar pessoas, grupos e massas. Como principalmente se percebe nos hinos (ou ficar a Pátria livre/ou morrer pelo Brasil). Esse poder é registrado em texto de enciclopédia francesa que, como a primeira desse nome, ganhou ares de grande autoridade intelectual:
L’idée de Patrie, avec le cortège des sentiments qu’ elle inspire et de devoirs qu’ elle impose, est, sans doute, le plus active e le plus puissante des idées directices de notre civilization moderne. L’amour de la patrie nous parait à la fois naturel et necessaire; si bien que l’antipatriotisme nous fait l’effect de quelque chose monstruex, qui nous étonne encore plus qu’il nos indigne. L’amour de La patrie semble etre aujourd’hui la seule force capable de rèduire au silence, quand il le faut, les passions le plus violentes, comme celles qui divisent les habitants d’un même pays em partis politiques. Nul autre sentiment n’est plus de taille à lui tenir Tête. Lui Seul est capable, quand la patrie est em danger, de séparer les fils de la mere, e’ epoux de l’épouse, de mettre l’épée a la main de ceux même que ont juré de ne pás tuer. Les devoirs le plus pressants, qu’il aient/devoirs pour but la conservation de l’unité familiale ou l’observation des prècepts religieux, le cedent ainsi au devoir envers la patrie, suprematie garantie tant par l’opinion que par les institutions publiques. Au patriotisme en reconnaitra le droit de nous demander le sacrifice absolu de notre personalité. (...) (9).
Em tradução:
*A idéia de pátria, com o cortejo de sentimentos que inspira e dos deveres que impõe, é, sem dúvida, mais ativa e poderosa das idéias diretivas da nossa civilização moderna. O amor à pátria nos parece a um só tempo natural e necessário; tanto como o antipatriotismo nos causa o efeito de qualquer coisa de monstruoso, que nos espanta mais do que nos indigne. O amor à pátria parece hoje a única força capaz de reduzir ao silêncio, quando isso é preciso, as paixões mais violentas, como aquelas que dividem os habitantes de um mesmo país em partidos políticos. Nenhum outro sentimento tem mais corpo para opor-se-lhe. Somente ele é capaz, quando a pátria está em perigo, de separar os filhos da mãe, o esposo da esposa, e de colocar a espada na mão daqueles mesmos que juraram não matar. Os deveres mesmo os mais urgentes, que têm por finalidade a conservação da unidade familiar ou a observância dos preceitos religiosos cedem também diante do dever perante a pátria, supremacia garantida tanto pela opinião quanto pelas instituições públicas.
Em não poucas vezes da história, apelou-se em nome da pátria ou a pátria emitiu apelos. Em horas dramáticas da história ocorreram em massa milhões de pessoas em defesa da pátria. Na França, diante de invasão estrangeira e de rebeliões internas, a assembleia legislativa, sem qualquer sanção real, em 11 de julho de 1792, declarou a pátria em perigo. Logo o decreto era divulgado em 22 e 23 de julho, ao troar dos canhões a espaços de hora. Os cidadãos eram como que atraídos irresistivelmente pela bandeira tricolor carregada por funcionários. Improvisaram-se locais de alistamento e, muitas vezes, serviam de mesa as caixas dos tambores. Os cidadãos marcharam para frente de batalha (Jemmapes e Fleurus) porque sabiam que a pátria está em perigo, como se lia na bandeira.
Que ideia-força é esta capaz de unir adversários, de separar o filho da mãe, o esposo da esposa, de colocar na cintura dos pacifistas a espada?
É evidente que não se trata de um enigma, embora, como em muitos casos em que o sentimento ocupa espaço motivador maior, muita coisa fique por ser dita. Não há nada de misterioso no apelo ao sentimento patriótico e no fato de a pátria em não poucas vezes ser a idéia força em torno da qual se forja provisória unidade de forças sociais díspares. As contradições sociais são obscurecidas pela ideia de unidade, de uma salvaguarda para todos. Justificação de poder nacional - e do Estado - a idéia de pátria busca obter fidelidade, encobrir os conflitos, alienar massivamente a sociedade.
Fazendo parte do aparato do poder, a ideia de patria, como ocorre com toda a alienação (e reificação), ganha vida independente (como na religião) e submete as consciências. A famosa carta de Roland a Luis XVI toma a pátria como ente: A pátria não é de nenhum modo uma palavra a que a imaginação, por comprazer-se aformoseou; é uma entidade á qual se fazem sacrifícios... que se criou com grandes esforços, que se ergueu em meio às inquientudes e que se ama tanto pelo que custa quanto pelo que se espera dela (10).
A pátria física (local de origem, território monárquico), passa a nação, mas se desenvolve como comunidade de sentimento, entidade à qual se fazem sacrifícios, portanto instrumento de dominação. Verdadeira cortina de fumaça que obscurece as consciências, que introduz a mistificação.
No caso da frança de 1792 (a pátria em perigo), a explicação tem base material, nada é mágico:
.... a crise nacional, conjugando-se com a crise econômica multiplicava o ímpeto das massas: impulso nacional e movimento revolucionário são inseparáveis; um conflito de classes subentende e exacerba o patriotismo. Os aristocratas opõem o rei à nação de que encarnecem; os do interior esperam o invasor, os imigrados combatem nas fileiras inimigas. Para os patriotas de noventa e dois trata-se de salvaguardar e de promover a herança de oitenta e nove (11).
Ora a crise nacional, sobreexcitando o sentimento revolucionário, acentua as oposições sociais no próprio seio do antigo Terceiro Estado. Mais ainda que em 1789, ‘a burguesia se inquieta
Era necessário, diante do conflito entre facções do terceiro estado e da insatisfação popular (que, no interior, já se expressava com revoltas), encontrar um móvel que unisse a população em torno de um objetivo comum: a invasão estrangeira criou possibilidade de desvio de cruenta guerra civil para o caminho da defesa do estado Francês. Daí surge o apelo contra os estrangeiros, a consigna da pátria em perigo e o avanço da bandeira tricolor.
Essa distinção entre pátria, considerada território ou pátria-nação e pátria entidade, mito, comunidade de sentimento, ainda não se completou, e a atual geração já percebe o desvanecimento da ideia de pátria; seu desfalecimento parece próximo, e por isso é possível que não se complete.
De qualquer maneira, Hegel já percebia que pátria tomava outro conteúdo desgarrando do sentido que lhe fora atribuído antes. Com efeito, ao falar em sentimento político e patriotismo, Hegel ensinava em seu curso de Filosofia do Direito que:  
O sentimento político, o patriotismo em geral, é como uma certeza que se funda na verdade (uma certeza apenas subjetiva não se funda na verdade, não passa de uma opinião) e é o querer transformado em hábito. Só pode resultar das instituições que existem no Estado pois nelas é que a razão é verdadeiramente dada e real, pois no comportamento em conformidade com estas instituições é que a razão adquire a sua eficácia. Este sentimento é sobretudo o da confiança (que pode vir a ser uma compreensão mais ou menos cultivada) e da certeza de que meu interesse particular e o seu interesse substancial se conservam e persistem dentro do interesse e dos fins de um outro (no caso, o Estado) e, portanto, dentro de sua relação comigo como indivíduo. Daí provém, precisamente, que o Estado não seja para mim algo de alheio e que, neste estado de consciência eu seja livre.(12).
Pretende-se que a solidariedade determinada pela divisão do trabalho e a necessidade de colaboração entre os membros da sociedade sejam os condicionantes do sentimento chamado de amor à pátria. Mas o que está mais próximo da realidade é o condicionamento ideológico: o poder passa a ser visto de maneira invertida. Ele radica na pátria e esta obscurece a verdadeira face daquele poder que é exercido a um só tempo pela pátria a para a pátria, por meros servidores dela. A classe do poder esconde-se sob a pátria. A dominação aparece obscurecida pela idéia de pátria; propaga-se sobre a realidade social com os apaixonantes apelos da pátria. A idéia de pátria, aliena as consciências ao colocar-se como ente que exige sacrifícios, mas que compensará o patriota (aí não se está distante das religiões sacrificais).
2. Escritos patrióticos
Pátria deve ser constantemente alimentada. As repetições do termo, os partidos políticos, a imprensa, a escola e o escritor fornecem alimento constante à entidade que exige sacrifícios: a pátria espera que cada um cumpra seu dever.
Livros escolares foram constantes em apresentar textos patrióticos. Excertos de Ruy Barbosa (trecho de Palavras à Juventude, já aqui referido), de Bilac (A pátria), de Coelho Neto (Mandamentos Cívicos), Silveira Bueno (Palavra aos moços), Dom Aquino Correia (Sede Brasileiro), Joaquim Manoel de Mácedo (O Torrão Natal), Gonçalves Dias (Canção do Exílio) etc, foram, entre 1930 e 1970, presença constante dos livros de ensino dedicados ao segundo grau. O programa ministerial de 15 de julho 1942 faz incidir nos livros escolares temas prevegiando a família, a escola, a terra natal; muitos historiadores e autores de livros didáticos louvaram a pátria e, com seus textos, pretenderam servir a elas, “criando consciência patriótica”. Relevam nos textos o sentimento de amor à pátria, mesmo que à custa da mistificação:
Boa terra! Jamais negou a quem trabalha/ o pão que mata a fome, o teto que agasalha.../ quem com seu suor a fecunda e umedece / vê pago o seu esforço é e feliz e enriquece!/ criança! Não verás país nenhum como esse:/ imita na grandeza a terra em que nasceste (13)
Os textos patrióticos pretendem cumprir o objetivo de moldar consciências e, sobre as contradições sociais, elevar um sentimento que uniformize comportamento, que direcione o esforço para os objetivos do Estado, dentre os quais o de defender o território e o de dissuadir as lutas de classe. Mas serve igualmente de bandeira contra adversários, como se lê em manifestos políticos, á exemplo daquele lançado por monarquistas em 24 de agosto de 1902, concitando os brasileiros às armas, e que, dentre outras coisas, diz:
A terra gloriosa de nossos avós, a nossa amada pátria, outrora invejada pelo estrangeiro como uma das mais felizes do mundo, está transformada em lodaçal, paul pestilento, onde só podem viver as oligarquias, sevadas no tesouro, tripudiando sobre a honra nacional.
Vede como a perversidade de homens sem patriotismo, livres de obediência à moral e afeitos á violência e ao crime, desfigurou a nossa grandeza, desbaratou a nossa riqueza, na orgia infernal que nos deprime e avilta.
Contemplai a miserável situação em que nos achamos...
Fora do país de bárbaros é a nossa fama. O Governo Brasileiro foi proclamado, na Europa, o mais corrupto da terra! Os nossos diplomatas, deslembrados de sua alta missão, são objeto de ridículo nos países civilizados, onde deslustram o nome brasileiro por sua inépcia e ignorância. (14).
Os próprios textos patrióticos são apresentados como um serviço à pátria. É o caso das Descrições Práticas da Província da Bahia, de Durval Vieira de Aguiar. Esse autor pode ser tomado como modelo de escritor patriota, tal como Coelho Neto e Olavo Bilac.
É o que o resumo que segue, com utilização de pequenos trechos de seu livro – Descrições Políticas da Província da Bahia, pretende demonstrar.
 3. Durval Vieira de Aguiar, republicano, útil e patriota.
Pequena noticia nos fornece Deolindo Amorim sobre Durval Vieira de Aguiar:
Em 1888 era Presidente da Província da Bahia o conselheiro José Luiz de Almeida Couto, já pela 2ª vez (...), tendo o seu governo tomado o maior interesse pelo estudo topográfico e histórico das municipalidades da província. Foi incumbido de fazer esse estudo e reunir os seus dados em trabalhos oficiais o Cel. Durval Vieira de Aguiar, comandante do Corpo policial da província, homem estudioso e de muito valor pessoal. È justo recordar que o Cel Durval foi, neste alto posto de comando, uma das figuras principais na Bahia por ocasião da Proclamação da Republica ao lado do grande republicano Cons. Virgilio Damasio. Mas a preferência do governo provincial obedeceu a uma circunstancia importante para o assunto. Sendo o Cel. Durval Oficial de Polícia, teve ocasião de percorrer as diversas regiões do interior baiano, ora comandando destacamentos, ora como oficial subalterno, e até mesmo como capitão, observou bem, fazendo valiosos relatos (de) várias cidades e vilas da Bahia.(15).
Durval Vieira de Aguiar, em 1882, inspecionou destacamentos militares no sertão baiano e foi encarregado por João dos Reis de Souza Dantas, Presidente Interino da Província, para restabelecer paz no município de Xique-xique onde facções políticas (Pedra e Morrão) estavam em conflito armado, desde 1880.
Acusado de ter sido privilegiado com altas ajudas de custo, Durval Vieira conseguiu desmentir as acusações, demonstrando que percebeu apenas os vencimentos do cargo, pagamento de transporte, uma carga, e ordenança, pela tabela vigente ao tempo.
Enquanto cumpria sua missão pelo interior baiano, desde bem antes de 1882, Durval Vieira de Aguiar recolhia informações sobre vilas e povoados, flora, fauna, finanças, municipais, etc, e depois as completou com outras pesquisas. Por intermédio do conselheiro Antonio Carneiro da Rocha, publicou em 1883, artigo sobre aquele assunto no jornal “Diário da Bahia” e posteriormente esse órgão da imprensa publicou-lhe outros textos sobre localidades baianas.
As descrições práticas redigidas por Durval Vieira de Aguiar foram enfeixadas em livro: Descrições Práticas da Província da Bahia: com declaração de todas as distâncias intermediárias das cidades, vilas e povoações. A edição foi realizada pela Tipografia do Diário da Bahia, com data 1888, terminando de imprimir-se em 1889. O livro passou a ser muito consultado e a aparece em bibliografia de trabalhos sobre história, geografia, sociedade, mas, apesar disso, só ganhou segunda edição em 1979 pela livraria Editora Cátedra ( Rio de Janeiro) em convênio com o Instituto Nacional do Livro/Ministério da Educação e Cultura, com prefácio de Fernando Sales.
Referida obra, além de escrito dirigido ao leitor, de oferecimento, de mensagem aos imigrantes e de prefácio, contém descrições de 86 municípios, um texto sobre o Brasil, outro sobre Bahia de Todos os Santos (Salvador) e finaliza com texto alusivo á liberdade, transcrito de artigo de jornal publicado sob pseudônimo de Lamartine. O autor passara a publicar no Diário da Bahia, artigos “sob influência medianímica”, como diz, com assinatura de Voltaire, Diderot, Condorcet e outros.
As Descrições Práticas trazem informações topográficas, históricas, situacionais, culturais, políticas, etc. O leitor é muitas vezes surpreendido por notícias inesperadas ou por manifestações de indignação. Durval Vieira de Aguiar se auto proclama patriota, republicano, e seu livro é fruto de dever patriótico, mas também obra que pudesse servir de utilidade publica.
O autor das Descrições Práticas entendeu que seus escritos publicados no Diário da Bahia e depois reunidos em livro possuíam utilidade. Na dedicatória feita ao Dr. José Luiz de Almeida Couto, diz, do livro, que tivemos a veleidade de considerar de alguma utilidade para a nossa Província e para nossos comprovincianos. (p.3) Informa que desejava chamar a atenção para as atuais condições de vida e de progresso, bem como os dotes e defeitos materiais de nosso solo (p.3), com vista a tornar bastante conhecida a Bahia. Está interessado em demonstrar que a então província era rica em agricultura e em minerais, pois a corrente imigratória dirigia-se para as províncias do sul, desprezando a Bahia, por desconhecê-la. Exatamente por isso e por entender as vantagens de receber imigrantes europeus é que o autor transcreve a Lei Provincial nº 2.604, de 28 de julho de 1888 pela qual o governo ficou autorizado a publicar folheto, vertido em diversas línguas, com informações sobre a Bahia, e dispõe sobre incentivos à imigração (pagamento de traslado, ajuda de custo, etc), formação de núcleos coloniais e arrendamento ou compra de lotes agrários.
A utilidade está sempre presente no texto:
Tendo sido o nosso mais constante e ardente desejo escrever alguma obra que pudesse servir de utilidade pública, esmorecia-nos freqüentemente a insuficiência dos nossos conhecimentos práticos, os quais se bem (que) colhidos em grande número de localidades já por nós percorridas, não satisfariam de certo o espírito público, que necessitava de uma descrição, senão completa, ao menos geral, isto é, da Província inteira (prefácio).
Aqui e alí, a idéia e o conjunto de informações são marcados pela noção de utilidade, na obra de Durval Vieira de Aguiar, que, por mais de uma vez, informa que se trata de colaboração à Província e prova de sua dedicação a esta, como, a exemplo, se lê a página 15:
Sem outra aspiração, viemos apenas dar à nossa Província uma exigua, porém sincera, prova de dedicação, julgando com isso prestar-lhe um serviço, segundo nossa boa intenção, por amor da qual pedimos indulgência à crítica, que não deve ser inexorável com quem não tem a pretensiosidade de julgar-se escritor, e apenas procurar, no seu tanto, ser útil, afastando-se do prejudicial indiferentismo, moléstia contagiosa, e endêmica em nossa Pátria. Isto é, referimo-nos à pátria do nosso berço, aquela em que tivemos a dita de ver a luz, a esta vasta e incomparável Província tão infeliz no progresso, quanto bem dotada pela Providência; tão pobre de indústria, comércio e lavoura, quanto rica, vasta e fértil de território; tão precisa de patriotismo, quanto abundante de inteligências; tão necessitada de benefícios, quanto bem aquinhoada em recursos naturais, que incessantemente nos desafiam ao trabalho e à gloria (p.16).
O militar escritor recupera o sentido de pátria como província de nascimento e crítica a centralização da corte. É um patriota que, embora se refira igualmente à pátria-nação, privilegia a pátria-província:
Não sei se nos julgarão bairristas ante o preceito centralizador do todo pela parte, que nos faz esquecer a Província pelo Império, que não é mais do que a “Corte”, para onde convergem, em curso forçado, todos os nossos recursos materiais e intelectuais, e convergeria, se possível fosse até a nossa pura atmosfera em troca da pestilenta que lá reina em certas estações”(p.16).
A própria defesa que faz da colonização voluntária pelo braço do imigrante é vinculando à idéia de Pátria:
É essa colonização de que precisamos para felicidade da Pátria; porque essa gente é que paga imposto do dinheiro, de sangue e de inteligência, prendendo-se em breve tempo à sua nova Pátria pela sua própria propriedade, pelo produto do seu trabalho e pela progenitura. A essa gente é que devemos esperar com as terras roçadas, estradas feitas, rios navegados, liberdade garantida, escolas abertas; mas não com a polícia prevenida, as cadeias escancaradas e a caridade pública em ação (p.18).
O autor, embora capaz de indignar-se com carências, corrupção, miséria, muitas vezes é ufanista da Bahia, à qual devota seu patriotismo. Mas utiliza o vocábulo pátria para referir-se à Bahia (especialmente) e ao Brasil. Trata-se de patriotismo que deve preponderar mesmo diante de divergência (e, como vimos, uma das funções da idéia de Pátria é uniformizar e obscurecer), como se  constata quando se lê a seção dedicada à Imperial Vila da Vitória; aí o autor, após mencionar atrocidades atribuídas ao fundador dessa vila contra os índios, afirma:
Repugna-nos descrever estas covardes atrocidades deslustradoras dos feitos de homens, que, por serviço à pátria, tem a história o dever de exaltar (p.193).
Durval Vieira de Aguiar publicou o seu livro já quando a República foi proclamada, embora desse conste data de 1888. Ele próprio era republicano e tinha afinidade com os programas do Clube Republicano do Rio de janeiro e contribuiu com a instalação do governo republicano na Bahia.
Em seu livro, o autor registra a Proclamação da República e a exalta:
 Ao terminarmos esta obra, com satisfação dos nossos mais ardentes desejos, permitiu Deus a graça de vermos a 15 do corrente mês de novembro de 1889, surgir a mais auspiciosa era que podíamos desejar ao engrandecimento do Brasil, em boa hora rasgando o negro veu que encobria o seu lindo horizonte, para, em poucas horas, pacificamente, transformar-se em República Federal de Estados-Unidos (p.317).
E depois:
Brasil dos brasileiros! Brasil da liberdade! Que a magnidade dos teus patrióticos sentimentos saiba agora dar o justo valor a grandeza dos teus dotes naturais e a vastidão maravilhosa do teu uberrisimo território. (p.318)
Conclusão
A noção de pátria evoluiu do sentido de lugar de nascimento, para abranger o de território monárquico e, depois, ser assimilado ao conceito de nação para, embora ainda conservando esse, significar sentimento (patriotismo), ou comunidade de sentimento, mitificado. Uma alienação. Um encobrimento da realidade. Isso não impede o uso do sentido de Província de nascimento, que persistiu, como se lê em Durval Vieira de Aguiar.
Estado, suas agências e instituições promovem trabalho contínuo, com apoio em interesses de classe vigentes na sociedade, para introjetar idéia e sentimento de pátria, desde a infância, com o trabalho nas escolas.
Autores cultivam o patriotismo e escrevem livros úteis, quer pelas informações/ conteúdos, quer pela pretensão de desenvolver o sentimento de pátria, alimentá-lo, o que já é serviço útil a essa.
Na Bahia, na virada do século XIX, Durval Vieira de Aguiar é exemplo marcante de autor a um só tempo útil e patriota mas, afora esse sentimento de utilidade e patriotismo, suas “Descrições Práticas da Província da Bahia” é obra de leitura recomendável pelo conjunto de informações que fornece sobre vilas e cidades da Bahia.
                           Notas
(1)       Assis Figueredo – Afonso Celso – Porque me ufano do meu país; Rio de Janeiro: Garnier, 1926.
(2)       Barbosa, Ruy – Palavras à juventude; Rio de Janeiro: Elos, 1961.
(3)       Citado por rigueiro, Luis Forjas – pátria in Polis – enciclopédia Verbo da Sociedade e do Direito. Portuguesa, Lisboa/São Paulo: Lisboa/ São Paulo, s/d.
(4)       Camões. Luiz Vaz – Os Lusíadas; Ponto: Lello e Irmão Editores, 1970.
(5)       Vieira, Antonio – Sermões, Vol. VIII; Lisboa: Lello e Irmão Editores, 1951.
(6)       Vieira, Antonio – Sermões, Vol. VIII; Lisboa: Lello e Irmão Editores, 1951.
(7)       Descobrimentos Portugueses – Documentos para sua historia, citado por – Machado, José Pedro – Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa; Lisboa: Livros Horizonte, 1995.
(8)       Gil, José – Nação, In Enciclopédia Einaudi, Vol. 14 (Estado-Guerra); Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1989.
(9)       G. Bouglé – Patrie, In La Grande Encyclopédie; Paris: Librairie Larousse, 1935.
(10)   Citado por Soboul, Albert – A Revolução Francesa; Pag. 54, São Paulo: Ed. Bertrand do Brasil, São Paulo, 1989.
(11)   Soboul, Albert, op. cit, p. 54.
(12)   Hegel, G.W.F. – Principios de Filosofia do Direito, p. 230; São Paulo: Martins Fontes, 1997.
(13)   Bilac, Olavo G.– A Pátria. Dentre os livros mencionados, podem ser citados Nogueira, Julio - Programas de Português, várias edições pela Companhia Editora Nacional, São Paulo; Nobrega Vandick, e Medeiros, Valter – O Idioma do Brasil, várias edições pela Companhia Editora Nacional, São Paulo; Oliveira, Cleófano, Lopes de – Flor do Lacio, Várias edições pela Edição Saraiva; Sánunes, José de Sá – Lingua Vernácula, Várias edições pela Edição Saraiva.
(14)   Citado por Corone, Edigard – A Primeira Republica, p. 41, São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1969.
(15)   Amorim, Deolindo – Noticia Historica da Vila de Baixa Verde, In Revista do Instituto Geográfico e Historico da Bahia, nº 73, Ano 1949, Salvador.  
Bibliografia
Aguiar, Durval Vieira – Província da Bahia (na 1ª Edição, Descrições Práticas da Província da Bahia), 2ª edição, Rio de Janeiro: Cátedra/Mec, 1979.
Amorim, Deolindo – Notícia Histórica da Vila de Baixa Verde, in Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, nº 73, p. 257 – 275, Salvador, 1946.
Barbosa, Ruy – Palavras à Juventude, Rio de Janeiro: Elos, 1961.
Bouglé, Charles – Patrie, in La Grande Encyclopédie, tome XXVI, Paris: Librairie Larousse, 1936.
Bueno, Silveira – Páginas Literárias, São Paulo: Saraiva, 1949.
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Carnoy, Martin – Estado e Teoria Política, São Paulo: Papirus, 2005
Carone, Edgard – A Primeira República, São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1969.
Figueredo, Afonso Celso de Assis – Porque me ufano do meu País, Rio de Janeiro: Garnier, 1926.
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Memória e Cultura – Denúncia da Memória. A questão da Cultura Escolar

Ruy Hermann Araújo Medeiros[1]


1. Plurivocidade: as muitas memórias.
Memória não é termo unívoco. Muitos são os seus sentidos. Até a máquina já tem “memória”. A plurivocidade da palavra se impõe:
Graciliano Ramos escreveu suas Memórias do Cárcere, isto é, suas reminiscências; Samuel Wainer redigiu suas memórias de um repórter (Minha Razão de Viver), como um corte autobiográfico; Afonso Arinos publicou suas memórias (“A Escalada”) também o fez Herberto Sales (Subsidiário), e muitos outros o fizeram. São reminiscências autobiográficas.
Mas também obras de ficção são escritas como memórias. Machado de Assis escreveu as Memórias Póstumas de Brás Cubas e, com maestria irônica, avisou: “eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor”. Carlos Heitor Cony jogou no papel sua “Quase Memória” e, depois de dizer que esse livro “oscila entre crônica, reportagem e ficção”, prefere qualificá-lo como “quase-romance”. Marguerite Yourcenar produziu as Memórias de Adriano, que não são suas reminiscências, mas grande ficção.
Já se vê que, em literatura, memória é reminiscência e é ficção.
Memória é também faculdade da consciência em reter imagens, informação, etc.
É memória também apenas o tipo de memória: memória acústica, olfativa, visual...
Mas o lugar onde está a memória designa muitas vezes a própria memória. Memória repleta das imagens do verão passado.
É objeto, às vezes.
A memória confunde-se muitas vezes com a História. Muitos antepassados escreveram História com o nome de Memória: Memória Histórica da Bahia.
Publicam-se livros e fazem-se congressos científicos ou literários em memória de determinada pessoa.
Há memória de computador. Há memória relato: João Gonçalves da Costa escreveu Memória Sumária e compendiosa da Conquista do Rio Pardo[2]. De tantos significados de memória (não a falta de seu significado, nota bem), o conceito fica indeterminado. E aí já há uma contradição: um conceito com vários significados resulta em conceito indeterminado, ou seja, a plurivocidade faz com que o conteúdo e extensão do conceito fiquem incertos, pelo menos em seu estado plurívoco. Pesquisa filosófica, psicológica, psicanalítica, neurocientífica, sociológica, antropológica e histórica... têm intentado conhecer e conceituar memória. Cada um, de seu turno, procurou entendê-la e conceituá-la.
Para mim, no âmbito das ciências sociais, memória é a tensão entre o registro e o seu esquecimento e o seu uso. Isto é, tensão entre registro e esquecimento, a tensão entre o registro e seu uso, inclusive interpretação. Encontra-se aqui tanto como registro simplesmente dado na consciência (inclusive percepção mantida de e consciência de) como registro lançado num suporte, (como o texto escrito).
Pode-se objetar que conceituar a partir de um predicado, não é apropriado. Mas prefiro um predicado amplo e operacional para fixar o conceito a trabalhar com conceito indeterminado. Parece-me mais eficaz metodologicamente. Também é inevitável incluir o seu contrário, no caso de memória.
Dizem que não é bom começar por definição (nunca me deram explicação convincente disso). Por isso “talvez” fosse melhor utilizar o método que Platão, dizendo-se Sócrates, usou em “Sofista”, construindo aos poucos o conceito procurado. Mas se o pensamento já estabeleceu como quer ser escrito, definindo o ato de vontade do autor, mantêm-se aqui a definição, como começo, embora na consciência ela não tenha estado no início.
Como acima eu disse que memória é tensão, minha tarefa é aquela de denunciar a memória e, sobretudo de, prática e teoricamente, dizer algo daquilo que expressa a própria tensão.
Um bom caminho, penso, é denunciar com contraposições, com as incoerências e contradições, a memória. Para desvelar a memória, devo denunciá-la. O contrário é chamado para formular a definição inevitavelmente.
Dou, a título de exemplo, como a rir de meu ofício de professor, a volubilidade da memória ou daquilo que assim se possa chamar. Ou será o que fizeram da memória? De seu uso?
Veja se posso sugerir ao leitor “a tensão” antes mencionada entre registro e esquecimento e entre registro e uso do registro, com as seguintes teses sobre a memória:

A memória é perigosa, cumpre destruir/preservar a memória – Sentença de Tiradentes. Destrói-se a memória do revoltado, mantêm-se a memória do criminoso. Lê-se, no Mandado de Enforcamento de Tiradentes[3], dentre outras coisas:

MANDADO DE ENFORCAMENTO

Justiça que a Rainha Nossa Senhora manda fazer a este infame Réu Joaquim José da Silva Xavier pelo horroroso crime de rebelião e alta traição de que se constituiu chefe, e cabeça na Capitania de Minas Geraes, com a mais escandalosa temeridade contra a Real Soberania, e Suprema autoridade da mesma Senhora que Deus guarde.
MANDA que com baraço e pregão seja levado pelas ruas publicas desta Cidade ao lugar da força, e nella morra morte natural para sempre e que separada a cabeça do corpo seja levada a Villa Rica, donde será conservada em poste alto junto ao lugar da habitação, até que o tempo a consuma; que seu corpo seja dividido em quartos, e pregados em iguaes postes pela estrada de Minas nos lugares mais publicos, principalmente no da Varginha, e Cebolas; que a casa da sua habitação seja arrazada, e salgada, e no meio de suas ruínas levantado um Padrão em que se conserve para a posteridade a memória de tão abominavel Réu, e delicto, e que ficando infame para seus filhos, e netos lhe sejam confiscados seus bens para a Coroa e Camara Real.

Rio de Janeiro, 21 de abril de 1792. Eu o Desembargador Francisco Luis Álvares Rocha, Escrivão da Commissão que o escrevi.
                                                   Seb.ão  X.er  de  Vas.los  Cout.o

Aí, pede-se que se conserve a “memória de tão abominável réu e delito”, para intimidar, destruir qualquer veleidade de sonho pela independência. Posteriormente, gerações seguintes preservaram a memória como ato heróico de um mártir da luta pela liberdade. Em certos momentos, no entanto, a memória de Tiradentes voltou a ser perigosa, a circular na zona de pensamento perigoso.

A memória é esteio da segurança, é necessário proteger a memória – Registros de propriedades, registros de subversivos, registros de Escravos. Registramos contratos, propriedades, nascimento, casamento, diplomas, certificados... Tudo para garantir direitos, prerrogativas, etc. Queremos segurança e os suportes da memória servem para isso.

A memória é reacionária, é necessário aniquilar essa deusa do passado – Marinetti, no Manifesto Futurista[4], escreveu.

E que mais se pode ver num quadro velho, senão a trabalhosa contorção do artista que se esforçou por quebrar as barreiras insuperáveis opostas a seu desejo de exprimir inteiramente seu sonho? Admirar um quadro antigo equivale a verter nossa sensibilidade numa urna funerária, ao invés de projetá-la para longe, em violentos jatos de criação e de ação.
Quereis portanto desperdiçar todas as vossas melhores forças, nesta eterna e inútil admiração do passado, da qual saís fatalmente exaustos, diminuídos e pisados?
Na verdade vos declaro que a freqüência cotidiana aos museus, às bibliotecas e às academias (cemitérios de vão esforços, calvários de sonhos crucificados, registros de impulsos truncados!...) é, para os artistas, tão danosa quanto a tutela prolongada dos pais sobre certos jovens embriagados pelo próprio engenho e pela própria vontade ambiciosa. Para os moribundos, para os enfermos, para os prisioneiros, seja assim: o admirável passado é talvez um bálsamo para seus males, pois para eles o futuro está impedido.... Mas nós não queremos mais saber do passado, nós jovens e fortes futuristas!

Mas, pode-se dizer, ao contrário, que a memória é revolucionária, viva a memória – É necessário sistematizar a memória de nossas lutas, aprender com ela para dar um salto à frente. E Lenin[5]: “Ser depositário da herança não significa de modo algum limitar-se à herança”.

A memória permite a contradição do discurso, louvar ou desqualificar – O General João Batista Figueiredo, ao visitar o Paraguai, em 09 de abril de 1980, levou consigo documentos paraguaios e objetos pessoais da família do Marechal Francisco Solano Lopez, e os devolveu a Don Alfredo Stroesner. Na ocasião, disse[6]:

Tenho a elevada honra de, em nome do Governo e do povo brasileiros, restituir à nobre Nação paraguaia os documentos do Arquivo Nacional deste País, que devido a vicissitudes da História estavam depositados no Brasil. Durante mais de cem anos, o acervo ora devolvido à República do Paraguai foi zelosamente catalogado e conservado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Ali esteve à disposição dos historiadores e pesquisadores paraguaios, que procuraram consultar os documentos que o integram. Nas últimas três décadas, foram proporcionados aos estudiosos desta Nação cópias e microfilmes de todo o material de seu interesse. Bem conheço, porém o apego do povo guarani à sua história e à sua tradição. Daí reconhecer a procedência do desejo deste País de ter mais do que a simples possibilidade de acesso ao conteúdo dessa coleção valiosíssima para sua História. Mas, sim de poder abrigar, dentro de suas próprias fronteiras, os documentos originais que representam, por si, verdadeiro e eloqüente monumento histórico do mais alto significado. A guerra passa a “vicissitudes da História”, a nação paraguaia passou a ser “nobre”. Nada como o velho discurso oficial e ensino nas escolas sobre o Paraguai, caracterizado como nação fanática, e o Marechal Lopez como bandido.

A memória é desnecessária à coerência e à biografia: – “Esqueça o que eu escrevi”. (Fernando Henrique Cardoso). “Esqueça o que eu disse” (Luís Inácio Lula da Silva). “O Senhor Deputado sabe, naturalmente, o respeito que tenho pelas suas posições, mas em política a coerência nem sempre paga”[7].

A memória é necessária à coerência. Qualquer raciocínio parte de dados anteriores da memória. Operamos sempre com aquilo que elaboramos na memória.

A memória e seus signos são um valor: “Hospede-se no Hotel Pousada dos Santos e fique cercado de todo o clima de nossos antepassados, porém com todo o conforto do mundo moderno”.

Mas, igualmente, a memória e seus signos são um desvalor: “Minha propriedade foi “tombada”, não posso construir um edifício de apartamentos no local. É um prejuízo”.

A memória só vive por causa do esquecimento: Só há luta pela preservação da memória por que há esquecimento. Ela é afirmação contra o esquecimento.

A memória serve a múltiplos usos: Políticas culturais da Memória, programas didáticos, motivação ideológica.

 A memória é contra a ciência – É preciso libertar-se contra os ídolos; que residem na memória. Bacon[8], sobre alguns desses ídolos, disse:

Os ídolos do teatro, ou das teorias, são numerosos, e podem ser, e certamente o serão, ainda em muito maior número. Com efeito, se já por tantos séculos não tivesse a mente humana se ocupado de religião e teologia; e se os governos civis (principalmente as monarquias) não tivessem sido tão adversos para com as novidades, mesmo nas especulações filosóficas – a tal ponto que os homens que as tentam sujeitam-se a riscos, ao desvalimento de sua fortuna, e, sem nenhum prêmio, expõem-se ao desprezo e ao ódio; se assim não fosse, sem dúvida, muitas outras seitas filosóficas e outras teorias teriam sido introduzidas, tais como floresceram tão grandemente diversificadas entre os gregos. Pois, do mesmo modo que se podem formular muitas teorias do céu a partir dos fenômenos celestes; igualmente, com mais razão, sobre os fenômenos de que se ocupa a filosofia se podem fundar e constituir muitos dogmas. E acontece com as fábulas deste teatro o mesmo que no teatro dos poetas. As narrações feitas para a cena são mais ordenadas e elegantes e aprazem mais que as verdadeiras narrações tomadas da história.

No entanto pode-se afirmar que só há ciência se houver memória: - O próprio raciocínio ocorre com o uso da memória.

Os estudiosos da sociedade pretendem tratar cientificamente a memória. Isso é possível com a condição de que se entenda que ela é tão concreta, como indicam seus signos, e tão volátil como indica o esquecimento. A memória pode ser estudada da mesma forma como se estuda o comportamento volúvel do amante ou da amante: Ora amor, ora engano.

A memória une: Estamos aqui em torno dela. A memória desune eternamente. A tradição baiana, recolhida nos velhos textos de “História da Bahia”, quer o ódio aos antigos colonizadores, por isso, dentre outras coisas, traz a sóror Joana Angélica impedindo que os portugueses penetrem no convento da Lapa: “Para trás, bárbaros. Respeitai a casa de Deus. Antes de conseguirdes o vosso infame desígnio, passareis por sobre o meu cadáver”. Assim, estávamos determinados à desunião.

Após afirmações (“teses”?) contraditórias, o leitor pode estar sorrindo do despropósito que elas encerram, mas seu sorriso será apenas tênue se ele se der conta que o despropósito corresponde ao real (mesmo que este seja tido como ironia) e que o esfacelamento da contradição se obtém como conceito-forma, capaz de elidí-la. Às vezes a forma de espancar contradição real (insolúvel porque decorrente da própria realidade do mundo) é o conceito-forma.
Não se pense que memória seja isenta de ideologia. Carregada de sentindo, aí a ideologia se intromete. Por isso esforço analítico deve ser desenvolvido.

2. Tormento da Criação e Ideologia.
A memória, essa tensão entre o registro e o esquecimento, impõe a cada “analista” do registro a tormentosa tarefa da interpretação. Essa é tarefa criadora, que não se resolve com mera aplicação de silogismo, porque se trata de preencher de conteúdo significativo o registro. Os conteúdos significativos são relacionados com os objetivos para aquilo que se interpreta e também para o uso que se quer da interpretação. Um contrato não nasce exatamente como negócio jurídico, nem como mera interação, ou instrumento econômico, muito menos como fonte da História. Mas será tudo isso, mas é tudo isso, a depender do objeto do estudioso[9].
Na análise-interpretação do registro (texto, etc.), considerando que há sempre criação (a não ser que estejamos iludidos com o positivismo), a ideologia pode penetrar profundamente. Certamente que um dos tormentos da criação é afastar o meramente ideológico para atingir-se o verdadeiro, no caso, o verdadeiro sentido. Tomo ideologia aqui no sentido utilizado por Marx-Engels em A Ideologia Alemã[10].
Também, quanto ao uso da memória, a questão ideológica se impõe, exatamente porque se trata de uso, de memória com conteúdo imediatamente útil (e “hábil para”, muitas vezes) a determinada finalidade.
No próprio estabelecimento do sentido de cada registro, portanto, o tormento nos assalta. A tensão que está na origem da memória, que é memória (tensão entre o registro e o esquecimento) como que se transporta para o próprio momento em que se trata de conferir conteúdo significativo ao registro (documento, etc.): o momento da interpretação. A inteligência se debate em redor do registro, examina-lhe os diversos aspectos, vai do todo às partes, retorna das partes ao todo, relaciona-o, contextualiza-o, percebe que o registro está inserido em outras tensões, está relacionado a, ou relacionado com. Tome-se o seguinte telegrama de Juracy Magalhães, Interventor que a Revolução de 1930, impôs à Bahia: “Ministro da Justiça – Rio – Reposta comunicação vossência cabe-me dizer-lhe aguardo designação substituto, pois governo Bahia tem orientação doutrinária conhecida. Atenciosas Saudações. (Juraci Magalhães, 10.11.37)”[11].

A segura interpretação literal e lógica é insuficiente para preencher de significado histórico o texto. Na simples literalidade há um vazio que precisa ser preenchido pelo intérprete. Este fará um esforço para descobrir o sentido do texto, para preenchê-lo de significado histórico. O historiador não seria historiador se não possuísse a capacidade de preencher o texto de conteúdo significativo para seu ofício. Se bastasse apenas saber interpretar gramatical ou logicamente, qualquer alfabetizado seria historiador, pois a tarefa ficaria reduzida aos marcos da literalidade do documento. O ofício do historiador exige mais. A cada documento, ele sabe que podem corresponder outras fontes. Para ele, a data do telegrama mencionado é sugestiva (quase eu escrevia “emblemática”): é a data do Estado Novo. Logo, há mil vinculações a fazer, inclusive com o ambiente sócio-político da época. O historiador vai aos arquivos e encontra outro documento que provocou a existência de mencionado telegrama:

10-11-1937 – “Comunico vossência que o governo com o apoio das Forças Armadas acaba de promulgar a nova Constituição, dissolvendo a Câmara e o Senado. O país entra, assim, num regime novo em que são devidamente assegurados os interesses da Nação. Comunicando vossência o importante acontecimento, espero que vossência sobre ele se manifeste com a necessária urgência. Cordiais Saudações – Francisco Campos – Ministro da Justiça”. (...)[12].

Depois mais outro, mais outro... É a série. Trata-se de documentação referente ao golpe do Estado Novo e da deposição do governador que não o aceitou.
Mas, se o contexto informa o documento, este informa o contexto. É uma troca. E o historiador irá perceber que, além da hermenêutica da fonte, ele necessitará de uma hermenêutica da própria história, em esforço como aquele desenvolvido por Marx e Engels quando pensaram o Materialismo Histórico, por exemplo. Não há História sem uma hermenêutica correspondente. A brilhante interpretação de uma fonte torna-se insuficiente se não for acompanhada de uma hermenêutica da própria história.
Para uso teórico ou científico, radical e metódico da fonte, o tormento é bem maior do que aquele simples uso cínico ou mercantil do registro: imagine-se a publicidade (propaganda), o uso do registro para fins publicitários. Aí, a memória que o registro evoca, deslocada, recebe um tratamento potencializador e ingressa no mundo do capital. Considerações de apatia, estética, humor, etc., são utilizados ad nauseam. Procura-se a sintonia com os destinatários, a assonância, e a permanência da mensagem-serviço-mercadoria no maior tempo possível na consciência e busca o convencimento prático: o consumo, mesmo que seja o consumo alienado ou, sobretudo, esse. Algumas das formulações que vinculam esses usos são brilhantes. Da memória coletiva de inúmeras jovens quanto ao uso do sutiã, se faz a formulação com imagens de jovem: “O primeiro sutiã nunca se esquece”. E também a publicidade vira memória.
Cumpre, assim, mesmo tendo a denúncia da memória permitido partir da indeterminação do conceito até atingir-se, em teoria social, a definição de memória como tensão entre o registro e o esquecimento, denunciar o sentido estabelecido do registro. Esse sentido, como visto antes, é tormento da criação, e tormento maior quando o próprio intérprete tem que precaver-se de, denunciando um preenchimento de conteúdo significativo, ele próprio atingir apenas uma interpretação denunciável: uma troca ideológica, uma opção entre duas ideologias. Enfim: uma interpretação ideológica permutada por outra interpretação também ideológica. Método e radicalidade são instrumentos necessários, ainda mais quando se quer provar que o próprio registro é falso, quando o registro quer fazer memória sobre algo que não corresponde à verdade.
A memória é campo de batalha, portanto, no fazer História. Imagine-se o confronto entre Nelson Werneck Sodré e Jacobina Lacombe, em torno da História Nova do Brasil[13]:

Em fins de junho, os co-autores da História Nova, professores Maurício Martins de Mello, Pedro de Alcântara Figueira e Joel Rufino dos Santos, presos a 26 e a 31 de maio e a 7 de junho, respectivamente, aproximavam-se de um mês de prisão, com paralisação de suas atividades, perda de empregos, angústia das famílias. Nada anunciava que os encarregados dos IPMs e seus mandantes imediatos tivessem a intenção de libertá-los, embora já tivessem sido ouvidos. Foi a essa altura que tais responsáveis começaram a alegar, justificando continuarem presos aqueles professores, a necessidade preliminar da tomada do meu depoimento. Em sua edição de 21 de junho, por exemplo, Última Hora informava que “o depoimento do Sr. Nelson Werneck Sodré nos IPMs seria uma das condições impostas pelo general Edson de Figueiredo para a libertação dos co-autores da História Nova, Srs. Pedro de Alcântara Figueira, Maurício Martins de Mello e Joel Rufino dos Santos, que até hoje não prestaram depoimento, pois as autoridades do IPM querem ouvir em primeiro lugar o Sr. Werneck Sodré. (...) Segundo fontes militares, a convocação do general Werneck Sodré, considerando pelo general Edson de Figueiredo como “o mentor espiritual” da História Nova do Brasil, já poderia ter sido feita, mas entrou em compasso de espera para permitir que o major Cleber Bonecker consiga informações “altamente comprometedoras” sobre o escritor. O major Cleber Bonecker espera conseguir tais informações através do processo que ele mesmo chama de “tratamento psicológico”, e ao qual submeteu os historiadores Pedro de Alcântara Figueira, Maurício Martins de Mello e Joel Rufino dos Santos”.

Como se sabe Américo Jacobina Lacombe tornou-se um dos principais opositores da obra História Nova do Brasil. Dentre outras coisas, em seu referido parecer, ele diz sobre aquele livro:

“Além de deformar a mentalidade juvenil com conceitos errôneos e falsos, abomina e despreza tudo quanto aprendemos na maneira de interpretar história. A mesquinha o culto cívico e deslustra os mais memoráveis fatos da nacionalidade”. E, em outro passo: “Essa ação (transformadora das condições do povo brasileiro) deve consistir, pelo que se deduz da leitura do folheto, em extinguir os privilégios da ‘classe que permanece no poder político a quatorze anos’. Quando comenta trecho do livro que fala da oposição conservadora dos senhores de terra.

A leitura do debate por certo indica aspecto da questão ora dissertada. Quem, dentre os contendores – Werneck ou Lacombe – é guardião da memória?

3. Memória e a questão da cultura escolar
Mas que tem isso que ver com a cultura escolar? Tem muito que ver. Tem-no tensamente, tormentosamente, agonizadamente. Memória e cultura escolar é um bom tema. Aproximemos um pouco disso.
A cultura, em sua conceituação de conjunto de objetos com significado, ou de saberes, ou com o sentido de “modos” ou “estilos” de vida, impõe que se considere o conjunto de registros examinados: Livros, cadernos de apontamento, provas, fichas escolares, palmatória, farda, carapuça, sineta, quadro negro, carteiras, farda ... (objetos), fila para entrada em sala de aula, levantamento à entrada do professor, saudação, gesto para perguntar, cantata do hino, recreio, métodos didáticos, práticas, usos, promoções, recompensas, “clima”, rituais... (modos e estilos de vida)[14].
Ora, não há cultura sem memória. A cultura escolar “está aí”, mas também “esteve aí”. Aquilo que se pode contar como castigos corporais, ainda transposta a segunda metade do século XX, guardado em memória individual ou coletiva, choca a sensibilidade (não apenas isso!) e nos faz recuar até a pregação de Abílio César Borges contra a palmatória, no Século XIX. Aquilo que se pode dizer da cultura escolar hoje, a seu turno, é igualmente chocante (não apenas isso!). Certamente que podemos – num museu do livro didático, numa brinquedoteca escolar, no museu de objetos da escola – deduzir formas de cultura específica da escola, e quanto mais visualizamos os objetos e indagamos àqueles que viveram o tempo desses, sabemos que aquela cultura tinha múltiplos sentidos: da disciplina à alienação. E que ela era também contraditória porque, apesar de revelar alienação, necessitava em parte dissipá-la para atingir certas finalidades porque, finalmente, o poder precisava ter desde o operário com algum grau de iniciativa até o futuro dirigente público.
Isso tudo é possível saber em razão dos suportes da memória, dos registros (quer estejam radicados na consciência, quer se expressem em documentos, objetos, etc.). Às vezes essa universalidade é tão extensa (que fique o pleonasmo!), que o esforço teórico exigirá a busca da ficção como um dos elementos necessários à compreensão. Afinal de contas, livros como “O Ateneu”, de Raul Pompéia, tem muito a informar sobre o “clima” (atenção, “o clima” escolar precisa ser estudado) em que se desenvolvia a educação, e saborosamente eu sei que muito daquilo que os romances ficcionam não é exatamente inverídico, nem simplesmente inverossímil (salta aos olhos a verossimilhança). Mas sua análise, para fins da história é diferente da crítica literária, por exemplo. Há coisas que só puderam ser ditas por ficção, como metáfora.
Abro um parêntese. Isso não se dá apenas quanto ao campo da História. Mas a ficção vale igualmente para a hermenêutica de outros objetos. Imagino o sentido profundo de uma carta para qualquer pessoa. Penso que muito me ajudará, para isso, a leitura do poema seguinte[15]:

A Carta

A carta do amigo é paz
e andorinhas
fiéis à velha igreja do Divino.

As mesmas
que um dia farão com que o céu
seja leve sobre o meu túmulo.

A carta do amigo conta mais
do que conta.
Conta o próprio amigo
com seu passo sereno na memória.

Conta
palavras e gestos
e até o que, sem perceber, o amigo
revelou: certo indefinível
movimento de alma,
um hálito
dos amplos espaços recônditos
onde
brincam crianças,
essas
que sempre despertam quando
repousamos nossas mãos
cheias de trabalho e vento que passa.

A carta reúne
resgata
o amigo e quem a lê.

E caminhamos
ruas antigas; entre árvores
pensativas ao sol frio
da tarde;
e tantos rostos
nítidos em sua definitiva
ausência.

E tudo vem de longe,
em azul
sobre o papel,
de uma casa
luminosa em seu silêncio,
de uma mesa
dessa casa, onde se debruça
e escreve
e nos saúda e abençoa
o poeta Affonso Manta
em sua compassiva solidão.

Não posso deixar de entender que a hermenêutica de uma carta de amigo/amiga para nós é, sobretudo, conjunto de sugestões, de evocações, etc., não apenas o que está escrito: Sim. “A carta do amigo conta mais do que conta”. Afinal conta subentendidos, relações, fonte de simpatia. E, para quem sabe que o destinatário e o emissor da carta são ambos poetas que viveram a infância em Poções, saberá que a “carta” conta muito mais. A igreja do Divino, ruas, coretos, casas, brincadeiras de Poções e a solidão de Afonso Manta, poeta, em sua doença derradeira.  
Fecho o parêntese.
No caso da memória escolar e da cultura escolar, um aspecto fundamental deve estar presente, e é importante para sua interpretação/compreensão: mesmo a educação canhestra que se dá em cada presente (o passado foi presente de outros, e o nosso futuro será passado para aqueles que nos sucederem, é obvio) visa a gerar resultado, ou conseqüências, no futuro, para nós[16]. Ou seja, enquanto as outras “instituições” estão para o passado, a educação está para o futuro. Isso introduz necessidade de um cuidado teórico redobrado, porque a busca de resultados institucionais em futuro significa opção política, escolhas ideológicas para currículos, etc. Às vezes a própria lei indica tais objetivos e indica como se conformar aos mesmos (é bom reler a LDB e denunciá-la). Entenda-se, portanto: a cultura do presente (passado) estabelece já o destino que quer para as gerações futuras. Esse componente da cultura escolar e de sua memória – “ditar” para a geração que ocupará nossos (“nossos”?) postos no futuro acarreta conflito (não bastassem outros elementos conflituais), que não é um simples “conflito de gerações”, ou uma luta de jovens contra carcomidos.
Ali, na cultura escolar, a memória demonstra todo o seu caráter de tensão e não adianta dizer que ela é revolucionária/retrógrada, necessária/desnecessária, útil/inútil, boa/má, etc. Viveremos o conflito de querer determinar de antemão o destino dos que virão após, ou o mundo em que viverão, ou o mundo que não conseguimos criar, tudo como exigência da consciência insatisfeita, e em repúdio contra a opressão. Alguns quererão legar um mundo melhor. Outros quererão continuar com este mundo atual, mas sempre quererão dizer em que mundo a geração futura deve viver (viver?). Essa observação é necessária, porque – não é demais lembrar o óbvio: ciência e saber têm uso.
Entendo que “memória escolar” não é só passado, mas presente (com as permanências do passado) e futuro pensado ou entrevisto, ou desejado. Afinal sonhos, desejos e utopias fazem parte da cultura.
E só haverá denúncia (necessária ao desvelamento) da cultura escolar se, além de entender memória como tensão, o estudioso pesquisar, esclarecer, interpretar e teorizar a educação também considerando o conflito específico decorrente do caráter da instituição – ensino: o desejo permanente de obter resultados para o futuro da geração que está nas salas de aula, ou de adestrá-la para a opressão como querem muitos.
A memória escolar não é um encontro de paz (vejam as práticas intramuros de todas as escolas e das universidades). É um campo de guerra. A interpretação de registros memoráveis responde a conflitos reais da vida social, ou é mesmo forma ideacional de como os conflitos aparecem, especialmente quanto a seu uso.

4. Para (não) concluir.
A chatice do pai não deve mais incomodar. A luta não é só questão de combate à chatice das escolas/pais. As expressões superestruturais dos conflitos precisam elas próprias serem denunciadas.
Premidos por muitas necessidades, sem haver substituído o reino dessas pelo reino da liberdade (estamos cada vez mais “metidos a ferros”, como diria Rousseau), sujeitos à intensa colonização da mente (e mesmo ao “rapto” dessa) e à despersonalização, não nos damos conta de que a condição para o desempenho do ofício de historiador da educação é e será conhecer a cultura da escola e evitar as armadilhas da memória, buscando entendê-las conflitualmente. De nada nos servirá uma História sem a cultura, ou uma História que não denuncie o caráter da cultura como condição de seu desvelamento (há muita coisa encoberta!) e que não denuncie igualmente os múltiplos usos da memória, demonstrando que essa deusa não é tão vestal como se pensa. Ela está a sonhar com o pecado, permanentemente.

Vitória da Conquista, Bahia, 08 de dezembro de 2005.

Referências

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Carone, Edgard. São Paulo: O Tenentismo, Difel, 1975.
Sodré, Nelson Werneck – História da História Nova. Petrópolis: Editora Vozes, 1987;
Lacombe, Américo Jacobina – História Nova do Brasil. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, volume 263, abril/junho de 1964.
Klein, Ota, e Richta, Radovan – As Opções da Nova Sociedade. São Paulo: Editora Documentos Ltda., 1969.
Geertz, Cliford – A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1989.
 Laplantine, François. Aprender Antropologia. São Paulo: Editora Brasiliense, 2005;
Linton, Ralph. O Homem – Uma Introdução à Antropologia. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1968;
Macfarlane, Alan. A Cultura do Capitalismo, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989.
Marcuse, Herbert. Cultura e Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
Morin, Edgar. Cultura de Massas no Século XX. Rio de Janeiro: Forense, 1963;
Thompson, John B. Ideologia e Cultura Moderna. Petrópolis: Editora Vozes, 1995.
spinheira Filho, Ruy. Poesia Reunida e Inéditos. Rio de Janeiro: Editora Record, 1998.
Radice, Lombardo. A Educação da Mente. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1968.






[1] Docente da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, UESB. Membro do Museu Pedagógico: a educação não escolar – UESB-HISTEDBR/UNICAMP/HISTED-BA. Linha de Pesquisas: Fundamentos da educação: cultura e arte no sudoeste baiano
[2] Sigo, aqui, alterando, modificando e complementando, sugestão de Maria Lúcia de Aragão, em Memórias e Temporalidades, in Afrânio Coutinho e Outros – Estudos Universitários de Língua e Literatura em Homenagem ao Prof. Dr. Leodegário A. de Azevedo Filho, Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1993.

[3] Mandado de Enforcamento. Publicado, dentre outros lugares, em – Torres, Luis Wanderley – Tiradentes – A Áspera Estrada da Liberdade, Obelisco, Rio de Janeiro. 1965.

[4] Manifesto Futurista – Publicado, dentre outros lugares, em – Faustino, Mario – Artesanatos de Poesia, Companhia das Letras, 2005.

[5] A Lênin – V.I – A que herança renunciamos. in: Obras Escolhidas, Vol. I, Edições Avante, Lisboa 1977.
(5) Figueiredo, João – Discursos do Presidente João Figueiredo, Volume II – 1980, Presidência da República, Brasília, 1981.

[6] Figueiredo, João – Discursos do Presidente João Figueiredo, Volume II – 1980, Presidência da República, Brasília, 1981.

[7] Diário da Assembléia da República, de 03.04.1992, citado em Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, Verbo, Lisboa, 2001.

[8] Bacon, Francis – Novum Organum, Abril Cultural, São Paulo, 1973.
[9] Tormento da Criação. Não me lembro onde li essa expressão. Talvez em algum texto de Jacob Gorender. Ficou na memória. É estético e operacional.

[10] Marx, Karl, Engels, F. – A Ideologia Alemã, Editora Martins Fontes, São Paulo, 1985. Sobre interpretação, ver, dentre outros: Gadamer – Hans – Georg – Verdade e Método (I e II), Editora Vozes, Petrópolis, Rio de Janeiro, 2003; Habermas, Jürgen – Dialética e Hermenêutica, LPM Editores, Porto Alegre, 1987; Ricoeur, Paul – Teoria da Interpretação, Edições 70, Lisboa, 1996; Saldanha, Nelson – Ordem e hermenêutica, Renovar, Rio de Janeiro, 2003; Schleiermacher, Friedrich D.E. – Hermenêutica, Editora vozes, Petrópolis, 2003.

[13] Houve, no caso, forte polêmica sobre a História Nova do Brasil, especialmente, entre Nelson Werneck Sodré e Américo Jacobina Lacombe. Ver: Sodré, Nelson Werneck – História da História Nova, Editora Vozes, Petrópolis, 1987; e Lacombe, Américo Jacobina – História Nova do Brasil (Parecer), revista do Instituto Histórico e Geográfico brasileiro, volume 263, abril/junho de 1964.

[14] Sobre estilo de vida e modo de vida ver: Klein, Ota, e Richta, Radovan – As Opções da Nova Sociedade, Editora Documentos Ltda, São Paulo, 1969. Sobre cultura, dentre outros: Geertz, Cliford – A Interpretação das Culturas, Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., Rio de Janeiro, 1989; Laplantine François – Aprender Antropologia, Editora Brasiliense, São Paulo, 2005; Linton, Ralph – O Homem – Uma Introdução à Antropologia, Livraria Martins Editora, São Paulo, 1968; Macfarlane, Alan – A Cultura do Capitalismo, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1989; Marcuse, Herbert – Cultura e Sociedade, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1998; Morin, Edgar – Cultura de Massas no Século XX, Forense, Rio de Janeiro, 1963; Thompson, John B – Ideologia e Cultura Moderna, Editora Vozes, Petrópolis, 1995.

[15] Espinheira Filho, Ruy – Poesia Reunida e Inéditos. Rio de Janeiro: Editora Record, 1998.

[16] Radice, Lombardo. A Educação da Mente. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1968.


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