segunda-feira, 4 de junho de 2012

Memória e Cultura – Denúncia da Memória. A questão da Cultura Escolar

Ruy Hermann Araújo Medeiros[1]


1. Plurivocidade: as muitas memórias.
Memória não é termo unívoco. Muitos são os seus sentidos. Até a máquina já tem “memória”. A plurivocidade da palavra se impõe:
Graciliano Ramos escreveu suas Memórias do Cárcere, isto é, suas reminiscências; Samuel Wainer redigiu suas memórias de um repórter (Minha Razão de Viver), como um corte autobiográfico; Afonso Arinos publicou suas memórias (“A Escalada”) também o fez Herberto Sales (Subsidiário), e muitos outros o fizeram. São reminiscências autobiográficas.
Mas também obras de ficção são escritas como memórias. Machado de Assis escreveu as Memórias Póstumas de Brás Cubas e, com maestria irônica, avisou: “eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor”. Carlos Heitor Cony jogou no papel sua “Quase Memória” e, depois de dizer que esse livro “oscila entre crônica, reportagem e ficção”, prefere qualificá-lo como “quase-romance”. Marguerite Yourcenar produziu as Memórias de Adriano, que não são suas reminiscências, mas grande ficção.
Já se vê que, em literatura, memória é reminiscência e é ficção.
Memória é também faculdade da consciência em reter imagens, informação, etc.
É memória também apenas o tipo de memória: memória acústica, olfativa, visual...
Mas o lugar onde está a memória designa muitas vezes a própria memória. Memória repleta das imagens do verão passado.
É objeto, às vezes.
A memória confunde-se muitas vezes com a História. Muitos antepassados escreveram História com o nome de Memória: Memória Histórica da Bahia.
Publicam-se livros e fazem-se congressos científicos ou literários em memória de determinada pessoa.
Há memória de computador. Há memória relato: João Gonçalves da Costa escreveu Memória Sumária e compendiosa da Conquista do Rio Pardo[2]. De tantos significados de memória (não a falta de seu significado, nota bem), o conceito fica indeterminado. E aí já há uma contradição: um conceito com vários significados resulta em conceito indeterminado, ou seja, a plurivocidade faz com que o conteúdo e extensão do conceito fiquem incertos, pelo menos em seu estado plurívoco. Pesquisa filosófica, psicológica, psicanalítica, neurocientífica, sociológica, antropológica e histórica... têm intentado conhecer e conceituar memória. Cada um, de seu turno, procurou entendê-la e conceituá-la.
Para mim, no âmbito das ciências sociais, memória é a tensão entre o registro e o seu esquecimento e o seu uso. Isto é, tensão entre registro e esquecimento, a tensão entre o registro e seu uso, inclusive interpretação. Encontra-se aqui tanto como registro simplesmente dado na consciência (inclusive percepção mantida de e consciência de) como registro lançado num suporte, (como o texto escrito).
Pode-se objetar que conceituar a partir de um predicado, não é apropriado. Mas prefiro um predicado amplo e operacional para fixar o conceito a trabalhar com conceito indeterminado. Parece-me mais eficaz metodologicamente. Também é inevitável incluir o seu contrário, no caso de memória.
Dizem que não é bom começar por definição (nunca me deram explicação convincente disso). Por isso “talvez” fosse melhor utilizar o método que Platão, dizendo-se Sócrates, usou em “Sofista”, construindo aos poucos o conceito procurado. Mas se o pensamento já estabeleceu como quer ser escrito, definindo o ato de vontade do autor, mantêm-se aqui a definição, como começo, embora na consciência ela não tenha estado no início.
Como acima eu disse que memória é tensão, minha tarefa é aquela de denunciar a memória e, sobretudo de, prática e teoricamente, dizer algo daquilo que expressa a própria tensão.
Um bom caminho, penso, é denunciar com contraposições, com as incoerências e contradições, a memória. Para desvelar a memória, devo denunciá-la. O contrário é chamado para formular a definição inevitavelmente.
Dou, a título de exemplo, como a rir de meu ofício de professor, a volubilidade da memória ou daquilo que assim se possa chamar. Ou será o que fizeram da memória? De seu uso?
Veja se posso sugerir ao leitor “a tensão” antes mencionada entre registro e esquecimento e entre registro e uso do registro, com as seguintes teses sobre a memória:

A memória é perigosa, cumpre destruir/preservar a memória – Sentença de Tiradentes. Destrói-se a memória do revoltado, mantêm-se a memória do criminoso. Lê-se, no Mandado de Enforcamento de Tiradentes[3], dentre outras coisas:

MANDADO DE ENFORCAMENTO

Justiça que a Rainha Nossa Senhora manda fazer a este infame Réu Joaquim José da Silva Xavier pelo horroroso crime de rebelião e alta traição de que se constituiu chefe, e cabeça na Capitania de Minas Geraes, com a mais escandalosa temeridade contra a Real Soberania, e Suprema autoridade da mesma Senhora que Deus guarde.
MANDA que com baraço e pregão seja levado pelas ruas publicas desta Cidade ao lugar da força, e nella morra morte natural para sempre e que separada a cabeça do corpo seja levada a Villa Rica, donde será conservada em poste alto junto ao lugar da habitação, até que o tempo a consuma; que seu corpo seja dividido em quartos, e pregados em iguaes postes pela estrada de Minas nos lugares mais publicos, principalmente no da Varginha, e Cebolas; que a casa da sua habitação seja arrazada, e salgada, e no meio de suas ruínas levantado um Padrão em que se conserve para a posteridade a memória de tão abominavel Réu, e delicto, e que ficando infame para seus filhos, e netos lhe sejam confiscados seus bens para a Coroa e Camara Real.

Rio de Janeiro, 21 de abril de 1792. Eu o Desembargador Francisco Luis Álvares Rocha, Escrivão da Commissão que o escrevi.
                                                   Seb.ão  X.er  de  Vas.los  Cout.o

Aí, pede-se que se conserve a “memória de tão abominável réu e delito”, para intimidar, destruir qualquer veleidade de sonho pela independência. Posteriormente, gerações seguintes preservaram a memória como ato heróico de um mártir da luta pela liberdade. Em certos momentos, no entanto, a memória de Tiradentes voltou a ser perigosa, a circular na zona de pensamento perigoso.

A memória é esteio da segurança, é necessário proteger a memória – Registros de propriedades, registros de subversivos, registros de Escravos. Registramos contratos, propriedades, nascimento, casamento, diplomas, certificados... Tudo para garantir direitos, prerrogativas, etc. Queremos segurança e os suportes da memória servem para isso.

A memória é reacionária, é necessário aniquilar essa deusa do passado – Marinetti, no Manifesto Futurista[4], escreveu.

E que mais se pode ver num quadro velho, senão a trabalhosa contorção do artista que se esforçou por quebrar as barreiras insuperáveis opostas a seu desejo de exprimir inteiramente seu sonho? Admirar um quadro antigo equivale a verter nossa sensibilidade numa urna funerária, ao invés de projetá-la para longe, em violentos jatos de criação e de ação.
Quereis portanto desperdiçar todas as vossas melhores forças, nesta eterna e inútil admiração do passado, da qual saís fatalmente exaustos, diminuídos e pisados?
Na verdade vos declaro que a freqüência cotidiana aos museus, às bibliotecas e às academias (cemitérios de vão esforços, calvários de sonhos crucificados, registros de impulsos truncados!...) é, para os artistas, tão danosa quanto a tutela prolongada dos pais sobre certos jovens embriagados pelo próprio engenho e pela própria vontade ambiciosa. Para os moribundos, para os enfermos, para os prisioneiros, seja assim: o admirável passado é talvez um bálsamo para seus males, pois para eles o futuro está impedido.... Mas nós não queremos mais saber do passado, nós jovens e fortes futuristas!

Mas, pode-se dizer, ao contrário, que a memória é revolucionária, viva a memória – É necessário sistematizar a memória de nossas lutas, aprender com ela para dar um salto à frente. E Lenin[5]: “Ser depositário da herança não significa de modo algum limitar-se à herança”.

A memória permite a contradição do discurso, louvar ou desqualificar – O General João Batista Figueiredo, ao visitar o Paraguai, em 09 de abril de 1980, levou consigo documentos paraguaios e objetos pessoais da família do Marechal Francisco Solano Lopez, e os devolveu a Don Alfredo Stroesner. Na ocasião, disse[6]:

Tenho a elevada honra de, em nome do Governo e do povo brasileiros, restituir à nobre Nação paraguaia os documentos do Arquivo Nacional deste País, que devido a vicissitudes da História estavam depositados no Brasil. Durante mais de cem anos, o acervo ora devolvido à República do Paraguai foi zelosamente catalogado e conservado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Ali esteve à disposição dos historiadores e pesquisadores paraguaios, que procuraram consultar os documentos que o integram. Nas últimas três décadas, foram proporcionados aos estudiosos desta Nação cópias e microfilmes de todo o material de seu interesse. Bem conheço, porém o apego do povo guarani à sua história e à sua tradição. Daí reconhecer a procedência do desejo deste País de ter mais do que a simples possibilidade de acesso ao conteúdo dessa coleção valiosíssima para sua História. Mas, sim de poder abrigar, dentro de suas próprias fronteiras, os documentos originais que representam, por si, verdadeiro e eloqüente monumento histórico do mais alto significado. A guerra passa a “vicissitudes da História”, a nação paraguaia passou a ser “nobre”. Nada como o velho discurso oficial e ensino nas escolas sobre o Paraguai, caracterizado como nação fanática, e o Marechal Lopez como bandido.

A memória é desnecessária à coerência e à biografia: – “Esqueça o que eu escrevi”. (Fernando Henrique Cardoso). “Esqueça o que eu disse” (Luís Inácio Lula da Silva). “O Senhor Deputado sabe, naturalmente, o respeito que tenho pelas suas posições, mas em política a coerência nem sempre paga”[7].

A memória é necessária à coerência. Qualquer raciocínio parte de dados anteriores da memória. Operamos sempre com aquilo que elaboramos na memória.

A memória e seus signos são um valor: “Hospede-se no Hotel Pousada dos Santos e fique cercado de todo o clima de nossos antepassados, porém com todo o conforto do mundo moderno”.

Mas, igualmente, a memória e seus signos são um desvalor: “Minha propriedade foi “tombada”, não posso construir um edifício de apartamentos no local. É um prejuízo”.

A memória só vive por causa do esquecimento: Só há luta pela preservação da memória por que há esquecimento. Ela é afirmação contra o esquecimento.

A memória serve a múltiplos usos: Políticas culturais da Memória, programas didáticos, motivação ideológica.

 A memória é contra a ciência – É preciso libertar-se contra os ídolos; que residem na memória. Bacon[8], sobre alguns desses ídolos, disse:

Os ídolos do teatro, ou das teorias, são numerosos, e podem ser, e certamente o serão, ainda em muito maior número. Com efeito, se já por tantos séculos não tivesse a mente humana se ocupado de religião e teologia; e se os governos civis (principalmente as monarquias) não tivessem sido tão adversos para com as novidades, mesmo nas especulações filosóficas – a tal ponto que os homens que as tentam sujeitam-se a riscos, ao desvalimento de sua fortuna, e, sem nenhum prêmio, expõem-se ao desprezo e ao ódio; se assim não fosse, sem dúvida, muitas outras seitas filosóficas e outras teorias teriam sido introduzidas, tais como floresceram tão grandemente diversificadas entre os gregos. Pois, do mesmo modo que se podem formular muitas teorias do céu a partir dos fenômenos celestes; igualmente, com mais razão, sobre os fenômenos de que se ocupa a filosofia se podem fundar e constituir muitos dogmas. E acontece com as fábulas deste teatro o mesmo que no teatro dos poetas. As narrações feitas para a cena são mais ordenadas e elegantes e aprazem mais que as verdadeiras narrações tomadas da história.

No entanto pode-se afirmar que só há ciência se houver memória: - O próprio raciocínio ocorre com o uso da memória.

Os estudiosos da sociedade pretendem tratar cientificamente a memória. Isso é possível com a condição de que se entenda que ela é tão concreta, como indicam seus signos, e tão volátil como indica o esquecimento. A memória pode ser estudada da mesma forma como se estuda o comportamento volúvel do amante ou da amante: Ora amor, ora engano.

A memória une: Estamos aqui em torno dela. A memória desune eternamente. A tradição baiana, recolhida nos velhos textos de “História da Bahia”, quer o ódio aos antigos colonizadores, por isso, dentre outras coisas, traz a sóror Joana Angélica impedindo que os portugueses penetrem no convento da Lapa: “Para trás, bárbaros. Respeitai a casa de Deus. Antes de conseguirdes o vosso infame desígnio, passareis por sobre o meu cadáver”. Assim, estávamos determinados à desunião.

Após afirmações (“teses”?) contraditórias, o leitor pode estar sorrindo do despropósito que elas encerram, mas seu sorriso será apenas tênue se ele se der conta que o despropósito corresponde ao real (mesmo que este seja tido como ironia) e que o esfacelamento da contradição se obtém como conceito-forma, capaz de elidí-la. Às vezes a forma de espancar contradição real (insolúvel porque decorrente da própria realidade do mundo) é o conceito-forma.
Não se pense que memória seja isenta de ideologia. Carregada de sentindo, aí a ideologia se intromete. Por isso esforço analítico deve ser desenvolvido.

2. Tormento da Criação e Ideologia.
A memória, essa tensão entre o registro e o esquecimento, impõe a cada “analista” do registro a tormentosa tarefa da interpretação. Essa é tarefa criadora, que não se resolve com mera aplicação de silogismo, porque se trata de preencher de conteúdo significativo o registro. Os conteúdos significativos são relacionados com os objetivos para aquilo que se interpreta e também para o uso que se quer da interpretação. Um contrato não nasce exatamente como negócio jurídico, nem como mera interação, ou instrumento econômico, muito menos como fonte da História. Mas será tudo isso, mas é tudo isso, a depender do objeto do estudioso[9].
Na análise-interpretação do registro (texto, etc.), considerando que há sempre criação (a não ser que estejamos iludidos com o positivismo), a ideologia pode penetrar profundamente. Certamente que um dos tormentos da criação é afastar o meramente ideológico para atingir-se o verdadeiro, no caso, o verdadeiro sentido. Tomo ideologia aqui no sentido utilizado por Marx-Engels em A Ideologia Alemã[10].
Também, quanto ao uso da memória, a questão ideológica se impõe, exatamente porque se trata de uso, de memória com conteúdo imediatamente útil (e “hábil para”, muitas vezes) a determinada finalidade.
No próprio estabelecimento do sentido de cada registro, portanto, o tormento nos assalta. A tensão que está na origem da memória, que é memória (tensão entre o registro e o esquecimento) como que se transporta para o próprio momento em que se trata de conferir conteúdo significativo ao registro (documento, etc.): o momento da interpretação. A inteligência se debate em redor do registro, examina-lhe os diversos aspectos, vai do todo às partes, retorna das partes ao todo, relaciona-o, contextualiza-o, percebe que o registro está inserido em outras tensões, está relacionado a, ou relacionado com. Tome-se o seguinte telegrama de Juracy Magalhães, Interventor que a Revolução de 1930, impôs à Bahia: “Ministro da Justiça – Rio – Reposta comunicação vossência cabe-me dizer-lhe aguardo designação substituto, pois governo Bahia tem orientação doutrinária conhecida. Atenciosas Saudações. (Juraci Magalhães, 10.11.37)”[11].

A segura interpretação literal e lógica é insuficiente para preencher de significado histórico o texto. Na simples literalidade há um vazio que precisa ser preenchido pelo intérprete. Este fará um esforço para descobrir o sentido do texto, para preenchê-lo de significado histórico. O historiador não seria historiador se não possuísse a capacidade de preencher o texto de conteúdo significativo para seu ofício. Se bastasse apenas saber interpretar gramatical ou logicamente, qualquer alfabetizado seria historiador, pois a tarefa ficaria reduzida aos marcos da literalidade do documento. O ofício do historiador exige mais. A cada documento, ele sabe que podem corresponder outras fontes. Para ele, a data do telegrama mencionado é sugestiva (quase eu escrevia “emblemática”): é a data do Estado Novo. Logo, há mil vinculações a fazer, inclusive com o ambiente sócio-político da época. O historiador vai aos arquivos e encontra outro documento que provocou a existência de mencionado telegrama:

10-11-1937 – “Comunico vossência que o governo com o apoio das Forças Armadas acaba de promulgar a nova Constituição, dissolvendo a Câmara e o Senado. O país entra, assim, num regime novo em que são devidamente assegurados os interesses da Nação. Comunicando vossência o importante acontecimento, espero que vossência sobre ele se manifeste com a necessária urgência. Cordiais Saudações – Francisco Campos – Ministro da Justiça”. (...)[12].

Depois mais outro, mais outro... É a série. Trata-se de documentação referente ao golpe do Estado Novo e da deposição do governador que não o aceitou.
Mas, se o contexto informa o documento, este informa o contexto. É uma troca. E o historiador irá perceber que, além da hermenêutica da fonte, ele necessitará de uma hermenêutica da própria história, em esforço como aquele desenvolvido por Marx e Engels quando pensaram o Materialismo Histórico, por exemplo. Não há História sem uma hermenêutica correspondente. A brilhante interpretação de uma fonte torna-se insuficiente se não for acompanhada de uma hermenêutica da própria história.
Para uso teórico ou científico, radical e metódico da fonte, o tormento é bem maior do que aquele simples uso cínico ou mercantil do registro: imagine-se a publicidade (propaganda), o uso do registro para fins publicitários. Aí, a memória que o registro evoca, deslocada, recebe um tratamento potencializador e ingressa no mundo do capital. Considerações de apatia, estética, humor, etc., são utilizados ad nauseam. Procura-se a sintonia com os destinatários, a assonância, e a permanência da mensagem-serviço-mercadoria no maior tempo possível na consciência e busca o convencimento prático: o consumo, mesmo que seja o consumo alienado ou, sobretudo, esse. Algumas das formulações que vinculam esses usos são brilhantes. Da memória coletiva de inúmeras jovens quanto ao uso do sutiã, se faz a formulação com imagens de jovem: “O primeiro sutiã nunca se esquece”. E também a publicidade vira memória.
Cumpre, assim, mesmo tendo a denúncia da memória permitido partir da indeterminação do conceito até atingir-se, em teoria social, a definição de memória como tensão entre o registro e o esquecimento, denunciar o sentido estabelecido do registro. Esse sentido, como visto antes, é tormento da criação, e tormento maior quando o próprio intérprete tem que precaver-se de, denunciando um preenchimento de conteúdo significativo, ele próprio atingir apenas uma interpretação denunciável: uma troca ideológica, uma opção entre duas ideologias. Enfim: uma interpretação ideológica permutada por outra interpretação também ideológica. Método e radicalidade são instrumentos necessários, ainda mais quando se quer provar que o próprio registro é falso, quando o registro quer fazer memória sobre algo que não corresponde à verdade.
A memória é campo de batalha, portanto, no fazer História. Imagine-se o confronto entre Nelson Werneck Sodré e Jacobina Lacombe, em torno da História Nova do Brasil[13]:

Em fins de junho, os co-autores da História Nova, professores Maurício Martins de Mello, Pedro de Alcântara Figueira e Joel Rufino dos Santos, presos a 26 e a 31 de maio e a 7 de junho, respectivamente, aproximavam-se de um mês de prisão, com paralisação de suas atividades, perda de empregos, angústia das famílias. Nada anunciava que os encarregados dos IPMs e seus mandantes imediatos tivessem a intenção de libertá-los, embora já tivessem sido ouvidos. Foi a essa altura que tais responsáveis começaram a alegar, justificando continuarem presos aqueles professores, a necessidade preliminar da tomada do meu depoimento. Em sua edição de 21 de junho, por exemplo, Última Hora informava que “o depoimento do Sr. Nelson Werneck Sodré nos IPMs seria uma das condições impostas pelo general Edson de Figueiredo para a libertação dos co-autores da História Nova, Srs. Pedro de Alcântara Figueira, Maurício Martins de Mello e Joel Rufino dos Santos, que até hoje não prestaram depoimento, pois as autoridades do IPM querem ouvir em primeiro lugar o Sr. Werneck Sodré. (...) Segundo fontes militares, a convocação do general Werneck Sodré, considerando pelo general Edson de Figueiredo como “o mentor espiritual” da História Nova do Brasil, já poderia ter sido feita, mas entrou em compasso de espera para permitir que o major Cleber Bonecker consiga informações “altamente comprometedoras” sobre o escritor. O major Cleber Bonecker espera conseguir tais informações através do processo que ele mesmo chama de “tratamento psicológico”, e ao qual submeteu os historiadores Pedro de Alcântara Figueira, Maurício Martins de Mello e Joel Rufino dos Santos”.

Como se sabe Américo Jacobina Lacombe tornou-se um dos principais opositores da obra História Nova do Brasil. Dentre outras coisas, em seu referido parecer, ele diz sobre aquele livro:

“Além de deformar a mentalidade juvenil com conceitos errôneos e falsos, abomina e despreza tudo quanto aprendemos na maneira de interpretar história. A mesquinha o culto cívico e deslustra os mais memoráveis fatos da nacionalidade”. E, em outro passo: “Essa ação (transformadora das condições do povo brasileiro) deve consistir, pelo que se deduz da leitura do folheto, em extinguir os privilégios da ‘classe que permanece no poder político a quatorze anos’. Quando comenta trecho do livro que fala da oposição conservadora dos senhores de terra.

A leitura do debate por certo indica aspecto da questão ora dissertada. Quem, dentre os contendores – Werneck ou Lacombe – é guardião da memória?

3. Memória e a questão da cultura escolar
Mas que tem isso que ver com a cultura escolar? Tem muito que ver. Tem-no tensamente, tormentosamente, agonizadamente. Memória e cultura escolar é um bom tema. Aproximemos um pouco disso.
A cultura, em sua conceituação de conjunto de objetos com significado, ou de saberes, ou com o sentido de “modos” ou “estilos” de vida, impõe que se considere o conjunto de registros examinados: Livros, cadernos de apontamento, provas, fichas escolares, palmatória, farda, carapuça, sineta, quadro negro, carteiras, farda ... (objetos), fila para entrada em sala de aula, levantamento à entrada do professor, saudação, gesto para perguntar, cantata do hino, recreio, métodos didáticos, práticas, usos, promoções, recompensas, “clima”, rituais... (modos e estilos de vida)[14].
Ora, não há cultura sem memória. A cultura escolar “está aí”, mas também “esteve aí”. Aquilo que se pode contar como castigos corporais, ainda transposta a segunda metade do século XX, guardado em memória individual ou coletiva, choca a sensibilidade (não apenas isso!) e nos faz recuar até a pregação de Abílio César Borges contra a palmatória, no Século XIX. Aquilo que se pode dizer da cultura escolar hoje, a seu turno, é igualmente chocante (não apenas isso!). Certamente que podemos – num museu do livro didático, numa brinquedoteca escolar, no museu de objetos da escola – deduzir formas de cultura específica da escola, e quanto mais visualizamos os objetos e indagamos àqueles que viveram o tempo desses, sabemos que aquela cultura tinha múltiplos sentidos: da disciplina à alienação. E que ela era também contraditória porque, apesar de revelar alienação, necessitava em parte dissipá-la para atingir certas finalidades porque, finalmente, o poder precisava ter desde o operário com algum grau de iniciativa até o futuro dirigente público.
Isso tudo é possível saber em razão dos suportes da memória, dos registros (quer estejam radicados na consciência, quer se expressem em documentos, objetos, etc.). Às vezes essa universalidade é tão extensa (que fique o pleonasmo!), que o esforço teórico exigirá a busca da ficção como um dos elementos necessários à compreensão. Afinal de contas, livros como “O Ateneu”, de Raul Pompéia, tem muito a informar sobre o “clima” (atenção, “o clima” escolar precisa ser estudado) em que se desenvolvia a educação, e saborosamente eu sei que muito daquilo que os romances ficcionam não é exatamente inverídico, nem simplesmente inverossímil (salta aos olhos a verossimilhança). Mas sua análise, para fins da história é diferente da crítica literária, por exemplo. Há coisas que só puderam ser ditas por ficção, como metáfora.
Abro um parêntese. Isso não se dá apenas quanto ao campo da História. Mas a ficção vale igualmente para a hermenêutica de outros objetos. Imagino o sentido profundo de uma carta para qualquer pessoa. Penso que muito me ajudará, para isso, a leitura do poema seguinte[15]:

A Carta

A carta do amigo é paz
e andorinhas
fiéis à velha igreja do Divino.

As mesmas
que um dia farão com que o céu
seja leve sobre o meu túmulo.

A carta do amigo conta mais
do que conta.
Conta o próprio amigo
com seu passo sereno na memória.

Conta
palavras e gestos
e até o que, sem perceber, o amigo
revelou: certo indefinível
movimento de alma,
um hálito
dos amplos espaços recônditos
onde
brincam crianças,
essas
que sempre despertam quando
repousamos nossas mãos
cheias de trabalho e vento que passa.

A carta reúne
resgata
o amigo e quem a lê.

E caminhamos
ruas antigas; entre árvores
pensativas ao sol frio
da tarde;
e tantos rostos
nítidos em sua definitiva
ausência.

E tudo vem de longe,
em azul
sobre o papel,
de uma casa
luminosa em seu silêncio,
de uma mesa
dessa casa, onde se debruça
e escreve
e nos saúda e abençoa
o poeta Affonso Manta
em sua compassiva solidão.

Não posso deixar de entender que a hermenêutica de uma carta de amigo/amiga para nós é, sobretudo, conjunto de sugestões, de evocações, etc., não apenas o que está escrito: Sim. “A carta do amigo conta mais do que conta”. Afinal conta subentendidos, relações, fonte de simpatia. E, para quem sabe que o destinatário e o emissor da carta são ambos poetas que viveram a infância em Poções, saberá que a “carta” conta muito mais. A igreja do Divino, ruas, coretos, casas, brincadeiras de Poções e a solidão de Afonso Manta, poeta, em sua doença derradeira.  
Fecho o parêntese.
No caso da memória escolar e da cultura escolar, um aspecto fundamental deve estar presente, e é importante para sua interpretação/compreensão: mesmo a educação canhestra que se dá em cada presente (o passado foi presente de outros, e o nosso futuro será passado para aqueles que nos sucederem, é obvio) visa a gerar resultado, ou conseqüências, no futuro, para nós[16]. Ou seja, enquanto as outras “instituições” estão para o passado, a educação está para o futuro. Isso introduz necessidade de um cuidado teórico redobrado, porque a busca de resultados institucionais em futuro significa opção política, escolhas ideológicas para currículos, etc. Às vezes a própria lei indica tais objetivos e indica como se conformar aos mesmos (é bom reler a LDB e denunciá-la). Entenda-se, portanto: a cultura do presente (passado) estabelece já o destino que quer para as gerações futuras. Esse componente da cultura escolar e de sua memória – “ditar” para a geração que ocupará nossos (“nossos”?) postos no futuro acarreta conflito (não bastassem outros elementos conflituais), que não é um simples “conflito de gerações”, ou uma luta de jovens contra carcomidos.
Ali, na cultura escolar, a memória demonstra todo o seu caráter de tensão e não adianta dizer que ela é revolucionária/retrógrada, necessária/desnecessária, útil/inútil, boa/má, etc. Viveremos o conflito de querer determinar de antemão o destino dos que virão após, ou o mundo em que viverão, ou o mundo que não conseguimos criar, tudo como exigência da consciência insatisfeita, e em repúdio contra a opressão. Alguns quererão legar um mundo melhor. Outros quererão continuar com este mundo atual, mas sempre quererão dizer em que mundo a geração futura deve viver (viver?). Essa observação é necessária, porque – não é demais lembrar o óbvio: ciência e saber têm uso.
Entendo que “memória escolar” não é só passado, mas presente (com as permanências do passado) e futuro pensado ou entrevisto, ou desejado. Afinal sonhos, desejos e utopias fazem parte da cultura.
E só haverá denúncia (necessária ao desvelamento) da cultura escolar se, além de entender memória como tensão, o estudioso pesquisar, esclarecer, interpretar e teorizar a educação também considerando o conflito específico decorrente do caráter da instituição – ensino: o desejo permanente de obter resultados para o futuro da geração que está nas salas de aula, ou de adestrá-la para a opressão como querem muitos.
A memória escolar não é um encontro de paz (vejam as práticas intramuros de todas as escolas e das universidades). É um campo de guerra. A interpretação de registros memoráveis responde a conflitos reais da vida social, ou é mesmo forma ideacional de como os conflitos aparecem, especialmente quanto a seu uso.

4. Para (não) concluir.
A chatice do pai não deve mais incomodar. A luta não é só questão de combate à chatice das escolas/pais. As expressões superestruturais dos conflitos precisam elas próprias serem denunciadas.
Premidos por muitas necessidades, sem haver substituído o reino dessas pelo reino da liberdade (estamos cada vez mais “metidos a ferros”, como diria Rousseau), sujeitos à intensa colonização da mente (e mesmo ao “rapto” dessa) e à despersonalização, não nos damos conta de que a condição para o desempenho do ofício de historiador da educação é e será conhecer a cultura da escola e evitar as armadilhas da memória, buscando entendê-las conflitualmente. De nada nos servirá uma História sem a cultura, ou uma História que não denuncie o caráter da cultura como condição de seu desvelamento (há muita coisa encoberta!) e que não denuncie igualmente os múltiplos usos da memória, demonstrando que essa deusa não é tão vestal como se pensa. Ela está a sonhar com o pecado, permanentemente.

Vitória da Conquista, Bahia, 08 de dezembro de 2005.

Referências

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spinheira Filho, Ruy. Poesia Reunida e Inéditos. Rio de Janeiro: Editora Record, 1998.
Radice, Lombardo. A Educação da Mente. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1968.






[1] Docente da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, UESB. Membro do Museu Pedagógico: a educação não escolar – UESB-HISTEDBR/UNICAMP/HISTED-BA. Linha de Pesquisas: Fundamentos da educação: cultura e arte no sudoeste baiano
[2] Sigo, aqui, alterando, modificando e complementando, sugestão de Maria Lúcia de Aragão, em Memórias e Temporalidades, in Afrânio Coutinho e Outros – Estudos Universitários de Língua e Literatura em Homenagem ao Prof. Dr. Leodegário A. de Azevedo Filho, Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1993.

[3] Mandado de Enforcamento. Publicado, dentre outros lugares, em – Torres, Luis Wanderley – Tiradentes – A Áspera Estrada da Liberdade, Obelisco, Rio de Janeiro. 1965.

[4] Manifesto Futurista – Publicado, dentre outros lugares, em – Faustino, Mario – Artesanatos de Poesia, Companhia das Letras, 2005.

[5] A Lênin – V.I – A que herança renunciamos. in: Obras Escolhidas, Vol. I, Edições Avante, Lisboa 1977.
(5) Figueiredo, João – Discursos do Presidente João Figueiredo, Volume II – 1980, Presidência da República, Brasília, 1981.

[6] Figueiredo, João – Discursos do Presidente João Figueiredo, Volume II – 1980, Presidência da República, Brasília, 1981.

[7] Diário da Assembléia da República, de 03.04.1992, citado em Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, Verbo, Lisboa, 2001.

[8] Bacon, Francis – Novum Organum, Abril Cultural, São Paulo, 1973.
[9] Tormento da Criação. Não me lembro onde li essa expressão. Talvez em algum texto de Jacob Gorender. Ficou na memória. É estético e operacional.

[10] Marx, Karl, Engels, F. – A Ideologia Alemã, Editora Martins Fontes, São Paulo, 1985. Sobre interpretação, ver, dentre outros: Gadamer – Hans – Georg – Verdade e Método (I e II), Editora Vozes, Petrópolis, Rio de Janeiro, 2003; Habermas, Jürgen – Dialética e Hermenêutica, LPM Editores, Porto Alegre, 1987; Ricoeur, Paul – Teoria da Interpretação, Edições 70, Lisboa, 1996; Saldanha, Nelson – Ordem e hermenêutica, Renovar, Rio de Janeiro, 2003; Schleiermacher, Friedrich D.E. – Hermenêutica, Editora vozes, Petrópolis, 2003.

[13] Houve, no caso, forte polêmica sobre a História Nova do Brasil, especialmente, entre Nelson Werneck Sodré e Américo Jacobina Lacombe. Ver: Sodré, Nelson Werneck – História da História Nova, Editora Vozes, Petrópolis, 1987; e Lacombe, Américo Jacobina – História Nova do Brasil (Parecer), revista do Instituto Histórico e Geográfico brasileiro, volume 263, abril/junho de 1964.

[14] Sobre estilo de vida e modo de vida ver: Klein, Ota, e Richta, Radovan – As Opções da Nova Sociedade, Editora Documentos Ltda, São Paulo, 1969. Sobre cultura, dentre outros: Geertz, Cliford – A Interpretação das Culturas, Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., Rio de Janeiro, 1989; Laplantine François – Aprender Antropologia, Editora Brasiliense, São Paulo, 2005; Linton, Ralph – O Homem – Uma Introdução à Antropologia, Livraria Martins Editora, São Paulo, 1968; Macfarlane, Alan – A Cultura do Capitalismo, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1989; Marcuse, Herbert – Cultura e Sociedade, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1998; Morin, Edgar – Cultura de Massas no Século XX, Forense, Rio de Janeiro, 1963; Thompson, John B – Ideologia e Cultura Moderna, Editora Vozes, Petrópolis, 1995.

[15] Espinheira Filho, Ruy – Poesia Reunida e Inéditos. Rio de Janeiro: Editora Record, 1998.

[16] Radice, Lombardo. A Educação da Mente. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1968.


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