segunda-feira, 4 de junho de 2012


Pátria e Utilidade do Texto: Durval Vieira de Aguiar e suas Descrições Práticas da Província da Bahia.

Ruy Medeiros
1. Pátria: de torrão natal a comunidade de sentimentos
A idéia de pátria permeia muitos textos. Está presente em escritos literários, discursos políticos, sermões, textos históricos e outros.
A utilização do vocábulo, à esquerda e à direita, suscita dificuldades conceituais. Contexto em que aparece e finalidade de seu uso causam embaraços à sua definição.
Já se disse, contrariando um dos sentidos mais entranhado, e alguns repetem, que “onde se vive bem aí é a pátria” (ubi bene, ibi pátria), ou “onde me sinto bem, aí é minha pátria”. Mas, essa afirmação tão cosmopolita, que encaminha a certo pendor materialista, não é decisivamente aquilo que domina quando se fala de pátria. “Ubi bene, ibi pátria” esvazia o sentido mais comum desta, pois importa em cisão entre específico solo (território) e pessoa ou geração que nele habita.
O comum é a vinculação entre pátria e território, o que importa dizer que pátria, embora não assimilada totalmente à vinculação pessoa solo, tem no território um de seus componentes e, mesmo quando não se vive no solo pátrio, a este se deve lealdade (patriotismo). Essa é a lição antiga e cotidiana e decorre daquilo que se extrai de miríade de textos: a inafastável lealdade, o amor entranhado, incondicional e eterno (não enquanto dure) à pátria.
Já diz Afonso Celso em livro muitas vezes reeditado, no qual dá motivos para amar o Brasil, mesmo que esse exija sofrimento:
Quero que consagreis sempre ilimitado amor à região onde nascestes, servindo-a com dedicação absoluta, destinando-lhe o melhor de vossa inteligência, os primores de vosso sentimentos, o mais fecundo de vossa atividade, dispostos a quaisquer sacrifícios por ela, inclusive o da vida.
Embora padeceis por causa da pátria, cumpre que lhe voteis alto, firme, desinteressado afeto, o qual, longe de esmorecer, - aumente, mesmo quando desconhecido, injustamente aquilatado, ou ingratamente retribuído, e, jamais, em circunstancia nenhuma, vacile, descreia ou se entibie (1).
Seja, como no pórtico do livro daquele autor: Right or Wrong, my Country.
Autor mais equilibrado, e apesar disso, em página célebre na qual a palavra tem sentido que se dá a nação, Ruy Barbosa igualmente eleva a pátria e ali a definição dessa encontra-se associada à visão liberal:
A pátria não é ninguém: são todos; e cada qual tem no seio dela o mesmo direito à idéia, à palavra, à associação. A pátria não é um sistema, nem uma seita, nem uma forma de governo: é céu, o solo, o povo, a tradição, a consciência, o lar, o berço dos filhos e o túmulo dos antepassados, a comunhão da lei, da língua e da liberdade. Os que a servem são os que não invejam, os que não infamam, os que não conspiram, os que não emudecem, os que não se acorbadam, mas resistem, mas ensinam, mas esforçam, mas discutem, mas praticam a justiça, a admiração, o entusiasmo. Porque todos os sentimentos grandes são benignos, e residem originariamente no amor. No próprio patriotismo armado o mais difícil da vocação, e a sua dignidade, não está no matar, mas no morrer (2).
A territorialidade compõe a idéia de Pátria, e esse é dado que tem profundas raízes no tempo, ora como o lugar de nascimento, ora o país. Encontra-se o termo para significar local (de nascença), referir-se a região ou a vila (município). No entanto não se deve esquecer que, com dose de espiritualização, o termo foi utilizado no sentido de país de origem, ou país. Exemplo disso se colhe na “Crônica de Dom João I”, de autoria de Fernão Lopes: com esta história se mostra com simples e afetado estilo o zelo de honra de Deus e do amor da pátria(3). No mesmo sentido, Camões se expressava, referindo-se a Portugal: vereis amor da pátria, não movido/De prêmio vil, mas alto e quase eterno:/ que não é prêmio vil ser reconhecido/ por um pregão do ninho meu paterno. (4).
Vieira utiliza a palavra com o sentido de País, Estado:
A segunda desgraça de S. Roque foi ser desgraçado com os naturais. Quando S. Roque fez sua peregrinação de França para Itália, havia guerras entre Itália e França, e desta guerra lhe sucederam ao santo duas coisas notáveis: a primeira, que chegando da Itália, os italianos o trataram como inimigo, e o feriram: a segunda, que tornando para França, os franceses o trataram como traidor, e o prenderam por espia. Há maior desgraça que esta? Que em Itália me tratem como inimigo, por que sou de França, e que em França me tratem como traidor, porque venho de Itália? S. Roque peregrinou de França para Itália por amor de Deus, e tornou de Itália para a França, por amor da pátria: e que quando vou em serviço de Deus, me tenham por inimigo, e quando venho em serviço da pátria, me tenham por traidor? Desgraça Grande (5).
No mesmo sermão de São Roque, cujo pequeno passo acima é transcrito, Vieira usa o termo pátria para expressar cidade: Depois de S. Roque haver peregrinado por Itália, recolheu-se outra vez a França, e entrando em Montpellier pátria sua...(6).
O contexto maior do sermão indica que pátria é utilizada pelo “embaixador da língua portuguesa” como país e correspondente estado, pois são autoridades públicas que prendem e acusam São Roque.
O termo de origem latina, usado com o sentido territorial (local de origem), é documentado desde 1476, em Portugal, no mínimo, pois assim apareceu em registrado: deixaram suas terras e pátrias. (7).
No entanto, o sentido restrito do termo (local de nascimento) deu lugar ao sentido do país sob domínio de um monarca.
Apoiando-se em kantorawicz, Jose Gil informa:
Kantorawicz, por exemplo, traça o percurso da palavra “pátria’’ que, tendo caído em desuso durante a Alta Idade Média (conservando apenas o sentido religioso de ‘pátria celeste’ ou ‘reino de Deus’) recupera, depois das cruzadas, o sentido de território onde se exerce o poder monárquico (nomeadamente o de lançar impostos): a defesa da pátria pelas forças do rei (daí a necessidade de imposto) surge como conseqüência natural da defesa de Jerusalém, cidade santa, “pátria dos cristãos” (que é acompanhada do lançamento de impostos). Até a Revolução Francesa, irá desempenhar um papel decisivo, no seio do discurso filosófico e político, no despontar do significado moderno de “nação”. (já que no século XIII, na França de Felipe, o Belo, a palavra ‘pátria’ começara a designar todo o reino e, por esta época, a monarquia territorial- talvez se possa dizer ‘nacional’ – era na França suficientemente forte e organizada para se proclamar a si mesmo communis pátria de todos os seus súditos e para exigir serviços extraordinários em nome da mãe pátria (Kantorowicz, 1957) (8)
Atribui-se à pátria capacidade de fazer aceitar sacrifícios e de mobilizar pessoas, grupos e massas. Como principalmente se percebe nos hinos (ou ficar a Pátria livre/ou morrer pelo Brasil). Esse poder é registrado em texto de enciclopédia francesa que, como a primeira desse nome, ganhou ares de grande autoridade intelectual:
L’idée de Patrie, avec le cortège des sentiments qu’ elle inspire et de devoirs qu’ elle impose, est, sans doute, le plus active e le plus puissante des idées directices de notre civilization moderne. L’amour de la patrie nous parait à la fois naturel et necessaire; si bien que l’antipatriotisme nous fait l’effect de quelque chose monstruex, qui nous étonne encore plus qu’il nos indigne. L’amour de La patrie semble etre aujourd’hui la seule force capable de rèduire au silence, quand il le faut, les passions le plus violentes, comme celles qui divisent les habitants d’un même pays em partis politiques. Nul autre sentiment n’est plus de taille à lui tenir Tête. Lui Seul est capable, quand la patrie est em danger, de séparer les fils de la mere, e’ epoux de l’épouse, de mettre l’épée a la main de ceux même que ont juré de ne pás tuer. Les devoirs le plus pressants, qu’il aient/devoirs pour but la conservation de l’unité familiale ou l’observation des prècepts religieux, le cedent ainsi au devoir envers la patrie, suprematie garantie tant par l’opinion que par les institutions publiques. Au patriotisme en reconnaitra le droit de nous demander le sacrifice absolu de notre personalité. (...) (9).
Em tradução:
*A idéia de pátria, com o cortejo de sentimentos que inspira e dos deveres que impõe, é, sem dúvida, mais ativa e poderosa das idéias diretivas da nossa civilização moderna. O amor à pátria nos parece a um só tempo natural e necessário; tanto como o antipatriotismo nos causa o efeito de qualquer coisa de monstruoso, que nos espanta mais do que nos indigne. O amor à pátria parece hoje a única força capaz de reduzir ao silêncio, quando isso é preciso, as paixões mais violentas, como aquelas que dividem os habitantes de um mesmo país em partidos políticos. Nenhum outro sentimento tem mais corpo para opor-se-lhe. Somente ele é capaz, quando a pátria está em perigo, de separar os filhos da mãe, o esposo da esposa, e de colocar a espada na mão daqueles mesmos que juraram não matar. Os deveres mesmo os mais urgentes, que têm por finalidade a conservação da unidade familiar ou a observância dos preceitos religiosos cedem também diante do dever perante a pátria, supremacia garantida tanto pela opinião quanto pelas instituições públicas.
Em não poucas vezes da história, apelou-se em nome da pátria ou a pátria emitiu apelos. Em horas dramáticas da história ocorreram em massa milhões de pessoas em defesa da pátria. Na França, diante de invasão estrangeira e de rebeliões internas, a assembleia legislativa, sem qualquer sanção real, em 11 de julho de 1792, declarou a pátria em perigo. Logo o decreto era divulgado em 22 e 23 de julho, ao troar dos canhões a espaços de hora. Os cidadãos eram como que atraídos irresistivelmente pela bandeira tricolor carregada por funcionários. Improvisaram-se locais de alistamento e, muitas vezes, serviam de mesa as caixas dos tambores. Os cidadãos marcharam para frente de batalha (Jemmapes e Fleurus) porque sabiam que a pátria está em perigo, como se lia na bandeira.
Que ideia-força é esta capaz de unir adversários, de separar o filho da mãe, o esposo da esposa, de colocar na cintura dos pacifistas a espada?
É evidente que não se trata de um enigma, embora, como em muitos casos em que o sentimento ocupa espaço motivador maior, muita coisa fique por ser dita. Não há nada de misterioso no apelo ao sentimento patriótico e no fato de a pátria em não poucas vezes ser a idéia força em torno da qual se forja provisória unidade de forças sociais díspares. As contradições sociais são obscurecidas pela ideia de unidade, de uma salvaguarda para todos. Justificação de poder nacional - e do Estado - a idéia de pátria busca obter fidelidade, encobrir os conflitos, alienar massivamente a sociedade.
Fazendo parte do aparato do poder, a ideia de patria, como ocorre com toda a alienação (e reificação), ganha vida independente (como na religião) e submete as consciências. A famosa carta de Roland a Luis XVI toma a pátria como ente: A pátria não é de nenhum modo uma palavra a que a imaginação, por comprazer-se aformoseou; é uma entidade á qual se fazem sacrifícios... que se criou com grandes esforços, que se ergueu em meio às inquientudes e que se ama tanto pelo que custa quanto pelo que se espera dela (10).
A pátria física (local de origem, território monárquico), passa a nação, mas se desenvolve como comunidade de sentimento, entidade à qual se fazem sacrifícios, portanto instrumento de dominação. Verdadeira cortina de fumaça que obscurece as consciências, que introduz a mistificação.
No caso da frança de 1792 (a pátria em perigo), a explicação tem base material, nada é mágico:
.... a crise nacional, conjugando-se com a crise econômica multiplicava o ímpeto das massas: impulso nacional e movimento revolucionário são inseparáveis; um conflito de classes subentende e exacerba o patriotismo. Os aristocratas opõem o rei à nação de que encarnecem; os do interior esperam o invasor, os imigrados combatem nas fileiras inimigas. Para os patriotas de noventa e dois trata-se de salvaguardar e de promover a herança de oitenta e nove (11).
Ora a crise nacional, sobreexcitando o sentimento revolucionário, acentua as oposições sociais no próprio seio do antigo Terceiro Estado. Mais ainda que em 1789, ‘a burguesia se inquieta
Era necessário, diante do conflito entre facções do terceiro estado e da insatisfação popular (que, no interior, já se expressava com revoltas), encontrar um móvel que unisse a população em torno de um objetivo comum: a invasão estrangeira criou possibilidade de desvio de cruenta guerra civil para o caminho da defesa do estado Francês. Daí surge o apelo contra os estrangeiros, a consigna da pátria em perigo e o avanço da bandeira tricolor.
Essa distinção entre pátria, considerada território ou pátria-nação e pátria entidade, mito, comunidade de sentimento, ainda não se completou, e a atual geração já percebe o desvanecimento da ideia de pátria; seu desfalecimento parece próximo, e por isso é possível que não se complete.
De qualquer maneira, Hegel já percebia que pátria tomava outro conteúdo desgarrando do sentido que lhe fora atribuído antes. Com efeito, ao falar em sentimento político e patriotismo, Hegel ensinava em seu curso de Filosofia do Direito que:  
O sentimento político, o patriotismo em geral, é como uma certeza que se funda na verdade (uma certeza apenas subjetiva não se funda na verdade, não passa de uma opinião) e é o querer transformado em hábito. Só pode resultar das instituições que existem no Estado pois nelas é que a razão é verdadeiramente dada e real, pois no comportamento em conformidade com estas instituições é que a razão adquire a sua eficácia. Este sentimento é sobretudo o da confiança (que pode vir a ser uma compreensão mais ou menos cultivada) e da certeza de que meu interesse particular e o seu interesse substancial se conservam e persistem dentro do interesse e dos fins de um outro (no caso, o Estado) e, portanto, dentro de sua relação comigo como indivíduo. Daí provém, precisamente, que o Estado não seja para mim algo de alheio e que, neste estado de consciência eu seja livre.(12).
Pretende-se que a solidariedade determinada pela divisão do trabalho e a necessidade de colaboração entre os membros da sociedade sejam os condicionantes do sentimento chamado de amor à pátria. Mas o que está mais próximo da realidade é o condicionamento ideológico: o poder passa a ser visto de maneira invertida. Ele radica na pátria e esta obscurece a verdadeira face daquele poder que é exercido a um só tempo pela pátria a para a pátria, por meros servidores dela. A classe do poder esconde-se sob a pátria. A dominação aparece obscurecida pela idéia de pátria; propaga-se sobre a realidade social com os apaixonantes apelos da pátria. A idéia de pátria, aliena as consciências ao colocar-se como ente que exige sacrifícios, mas que compensará o patriota (aí não se está distante das religiões sacrificais).
2. Escritos patrióticos
Pátria deve ser constantemente alimentada. As repetições do termo, os partidos políticos, a imprensa, a escola e o escritor fornecem alimento constante à entidade que exige sacrifícios: a pátria espera que cada um cumpra seu dever.
Livros escolares foram constantes em apresentar textos patrióticos. Excertos de Ruy Barbosa (trecho de Palavras à Juventude, já aqui referido), de Bilac (A pátria), de Coelho Neto (Mandamentos Cívicos), Silveira Bueno (Palavra aos moços), Dom Aquino Correia (Sede Brasileiro), Joaquim Manoel de Mácedo (O Torrão Natal), Gonçalves Dias (Canção do Exílio) etc, foram, entre 1930 e 1970, presença constante dos livros de ensino dedicados ao segundo grau. O programa ministerial de 15 de julho 1942 faz incidir nos livros escolares temas prevegiando a família, a escola, a terra natal; muitos historiadores e autores de livros didáticos louvaram a pátria e, com seus textos, pretenderam servir a elas, “criando consciência patriótica”. Relevam nos textos o sentimento de amor à pátria, mesmo que à custa da mistificação:
Boa terra! Jamais negou a quem trabalha/ o pão que mata a fome, o teto que agasalha.../ quem com seu suor a fecunda e umedece / vê pago o seu esforço é e feliz e enriquece!/ criança! Não verás país nenhum como esse:/ imita na grandeza a terra em que nasceste (13)
Os textos patrióticos pretendem cumprir o objetivo de moldar consciências e, sobre as contradições sociais, elevar um sentimento que uniformize comportamento, que direcione o esforço para os objetivos do Estado, dentre os quais o de defender o território e o de dissuadir as lutas de classe. Mas serve igualmente de bandeira contra adversários, como se lê em manifestos políticos, á exemplo daquele lançado por monarquistas em 24 de agosto de 1902, concitando os brasileiros às armas, e que, dentre outras coisas, diz:
A terra gloriosa de nossos avós, a nossa amada pátria, outrora invejada pelo estrangeiro como uma das mais felizes do mundo, está transformada em lodaçal, paul pestilento, onde só podem viver as oligarquias, sevadas no tesouro, tripudiando sobre a honra nacional.
Vede como a perversidade de homens sem patriotismo, livres de obediência à moral e afeitos á violência e ao crime, desfigurou a nossa grandeza, desbaratou a nossa riqueza, na orgia infernal que nos deprime e avilta.
Contemplai a miserável situação em que nos achamos...
Fora do país de bárbaros é a nossa fama. O Governo Brasileiro foi proclamado, na Europa, o mais corrupto da terra! Os nossos diplomatas, deslembrados de sua alta missão, são objeto de ridículo nos países civilizados, onde deslustram o nome brasileiro por sua inépcia e ignorância. (14).
Os próprios textos patrióticos são apresentados como um serviço à pátria. É o caso das Descrições Práticas da Província da Bahia, de Durval Vieira de Aguiar. Esse autor pode ser tomado como modelo de escritor patriota, tal como Coelho Neto e Olavo Bilac.
É o que o resumo que segue, com utilização de pequenos trechos de seu livro – Descrições Políticas da Província da Bahia, pretende demonstrar.
 3. Durval Vieira de Aguiar, republicano, útil e patriota.
Pequena noticia nos fornece Deolindo Amorim sobre Durval Vieira de Aguiar:
Em 1888 era Presidente da Província da Bahia o conselheiro José Luiz de Almeida Couto, já pela 2ª vez (...), tendo o seu governo tomado o maior interesse pelo estudo topográfico e histórico das municipalidades da província. Foi incumbido de fazer esse estudo e reunir os seus dados em trabalhos oficiais o Cel. Durval Vieira de Aguiar, comandante do Corpo policial da província, homem estudioso e de muito valor pessoal. È justo recordar que o Cel Durval foi, neste alto posto de comando, uma das figuras principais na Bahia por ocasião da Proclamação da Republica ao lado do grande republicano Cons. Virgilio Damasio. Mas a preferência do governo provincial obedeceu a uma circunstancia importante para o assunto. Sendo o Cel. Durval Oficial de Polícia, teve ocasião de percorrer as diversas regiões do interior baiano, ora comandando destacamentos, ora como oficial subalterno, e até mesmo como capitão, observou bem, fazendo valiosos relatos (de) várias cidades e vilas da Bahia.(15).
Durval Vieira de Aguiar, em 1882, inspecionou destacamentos militares no sertão baiano e foi encarregado por João dos Reis de Souza Dantas, Presidente Interino da Província, para restabelecer paz no município de Xique-xique onde facções políticas (Pedra e Morrão) estavam em conflito armado, desde 1880.
Acusado de ter sido privilegiado com altas ajudas de custo, Durval Vieira conseguiu desmentir as acusações, demonstrando que percebeu apenas os vencimentos do cargo, pagamento de transporte, uma carga, e ordenança, pela tabela vigente ao tempo.
Enquanto cumpria sua missão pelo interior baiano, desde bem antes de 1882, Durval Vieira de Aguiar recolhia informações sobre vilas e povoados, flora, fauna, finanças, municipais, etc, e depois as completou com outras pesquisas. Por intermédio do conselheiro Antonio Carneiro da Rocha, publicou em 1883, artigo sobre aquele assunto no jornal “Diário da Bahia” e posteriormente esse órgão da imprensa publicou-lhe outros textos sobre localidades baianas.
As descrições práticas redigidas por Durval Vieira de Aguiar foram enfeixadas em livro: Descrições Práticas da Província da Bahia: com declaração de todas as distâncias intermediárias das cidades, vilas e povoações. A edição foi realizada pela Tipografia do Diário da Bahia, com data 1888, terminando de imprimir-se em 1889. O livro passou a ser muito consultado e a aparece em bibliografia de trabalhos sobre história, geografia, sociedade, mas, apesar disso, só ganhou segunda edição em 1979 pela livraria Editora Cátedra ( Rio de Janeiro) em convênio com o Instituto Nacional do Livro/Ministério da Educação e Cultura, com prefácio de Fernando Sales.
Referida obra, além de escrito dirigido ao leitor, de oferecimento, de mensagem aos imigrantes e de prefácio, contém descrições de 86 municípios, um texto sobre o Brasil, outro sobre Bahia de Todos os Santos (Salvador) e finaliza com texto alusivo á liberdade, transcrito de artigo de jornal publicado sob pseudônimo de Lamartine. O autor passara a publicar no Diário da Bahia, artigos “sob influência medianímica”, como diz, com assinatura de Voltaire, Diderot, Condorcet e outros.
As Descrições Práticas trazem informações topográficas, históricas, situacionais, culturais, políticas, etc. O leitor é muitas vezes surpreendido por notícias inesperadas ou por manifestações de indignação. Durval Vieira de Aguiar se auto proclama patriota, republicano, e seu livro é fruto de dever patriótico, mas também obra que pudesse servir de utilidade publica.
O autor das Descrições Práticas entendeu que seus escritos publicados no Diário da Bahia e depois reunidos em livro possuíam utilidade. Na dedicatória feita ao Dr. José Luiz de Almeida Couto, diz, do livro, que tivemos a veleidade de considerar de alguma utilidade para a nossa Província e para nossos comprovincianos. (p.3) Informa que desejava chamar a atenção para as atuais condições de vida e de progresso, bem como os dotes e defeitos materiais de nosso solo (p.3), com vista a tornar bastante conhecida a Bahia. Está interessado em demonstrar que a então província era rica em agricultura e em minerais, pois a corrente imigratória dirigia-se para as províncias do sul, desprezando a Bahia, por desconhecê-la. Exatamente por isso e por entender as vantagens de receber imigrantes europeus é que o autor transcreve a Lei Provincial nº 2.604, de 28 de julho de 1888 pela qual o governo ficou autorizado a publicar folheto, vertido em diversas línguas, com informações sobre a Bahia, e dispõe sobre incentivos à imigração (pagamento de traslado, ajuda de custo, etc), formação de núcleos coloniais e arrendamento ou compra de lotes agrários.
A utilidade está sempre presente no texto:
Tendo sido o nosso mais constante e ardente desejo escrever alguma obra que pudesse servir de utilidade pública, esmorecia-nos freqüentemente a insuficiência dos nossos conhecimentos práticos, os quais se bem (que) colhidos em grande número de localidades já por nós percorridas, não satisfariam de certo o espírito público, que necessitava de uma descrição, senão completa, ao menos geral, isto é, da Província inteira (prefácio).
Aqui e alí, a idéia e o conjunto de informações são marcados pela noção de utilidade, na obra de Durval Vieira de Aguiar, que, por mais de uma vez, informa que se trata de colaboração à Província e prova de sua dedicação a esta, como, a exemplo, se lê a página 15:
Sem outra aspiração, viemos apenas dar à nossa Província uma exigua, porém sincera, prova de dedicação, julgando com isso prestar-lhe um serviço, segundo nossa boa intenção, por amor da qual pedimos indulgência à crítica, que não deve ser inexorável com quem não tem a pretensiosidade de julgar-se escritor, e apenas procurar, no seu tanto, ser útil, afastando-se do prejudicial indiferentismo, moléstia contagiosa, e endêmica em nossa Pátria. Isto é, referimo-nos à pátria do nosso berço, aquela em que tivemos a dita de ver a luz, a esta vasta e incomparável Província tão infeliz no progresso, quanto bem dotada pela Providência; tão pobre de indústria, comércio e lavoura, quanto rica, vasta e fértil de território; tão precisa de patriotismo, quanto abundante de inteligências; tão necessitada de benefícios, quanto bem aquinhoada em recursos naturais, que incessantemente nos desafiam ao trabalho e à gloria (p.16).
O militar escritor recupera o sentido de pátria como província de nascimento e crítica a centralização da corte. É um patriota que, embora se refira igualmente à pátria-nação, privilegia a pátria-província:
Não sei se nos julgarão bairristas ante o preceito centralizador do todo pela parte, que nos faz esquecer a Província pelo Império, que não é mais do que a “Corte”, para onde convergem, em curso forçado, todos os nossos recursos materiais e intelectuais, e convergeria, se possível fosse até a nossa pura atmosfera em troca da pestilenta que lá reina em certas estações”(p.16).
A própria defesa que faz da colonização voluntária pelo braço do imigrante é vinculando à idéia de Pátria:
É essa colonização de que precisamos para felicidade da Pátria; porque essa gente é que paga imposto do dinheiro, de sangue e de inteligência, prendendo-se em breve tempo à sua nova Pátria pela sua própria propriedade, pelo produto do seu trabalho e pela progenitura. A essa gente é que devemos esperar com as terras roçadas, estradas feitas, rios navegados, liberdade garantida, escolas abertas; mas não com a polícia prevenida, as cadeias escancaradas e a caridade pública em ação (p.18).
O autor, embora capaz de indignar-se com carências, corrupção, miséria, muitas vezes é ufanista da Bahia, à qual devota seu patriotismo. Mas utiliza o vocábulo pátria para referir-se à Bahia (especialmente) e ao Brasil. Trata-se de patriotismo que deve preponderar mesmo diante de divergência (e, como vimos, uma das funções da idéia de Pátria é uniformizar e obscurecer), como se  constata quando se lê a seção dedicada à Imperial Vila da Vitória; aí o autor, após mencionar atrocidades atribuídas ao fundador dessa vila contra os índios, afirma:
Repugna-nos descrever estas covardes atrocidades deslustradoras dos feitos de homens, que, por serviço à pátria, tem a história o dever de exaltar (p.193).
Durval Vieira de Aguiar publicou o seu livro já quando a República foi proclamada, embora desse conste data de 1888. Ele próprio era republicano e tinha afinidade com os programas do Clube Republicano do Rio de janeiro e contribuiu com a instalação do governo republicano na Bahia.
Em seu livro, o autor registra a Proclamação da República e a exalta:
 Ao terminarmos esta obra, com satisfação dos nossos mais ardentes desejos, permitiu Deus a graça de vermos a 15 do corrente mês de novembro de 1889, surgir a mais auspiciosa era que podíamos desejar ao engrandecimento do Brasil, em boa hora rasgando o negro veu que encobria o seu lindo horizonte, para, em poucas horas, pacificamente, transformar-se em República Federal de Estados-Unidos (p.317).
E depois:
Brasil dos brasileiros! Brasil da liberdade! Que a magnidade dos teus patrióticos sentimentos saiba agora dar o justo valor a grandeza dos teus dotes naturais e a vastidão maravilhosa do teu uberrisimo território. (p.318)
Conclusão
A noção de pátria evoluiu do sentido de lugar de nascimento, para abranger o de território monárquico e, depois, ser assimilado ao conceito de nação para, embora ainda conservando esse, significar sentimento (patriotismo), ou comunidade de sentimento, mitificado. Uma alienação. Um encobrimento da realidade. Isso não impede o uso do sentido de Província de nascimento, que persistiu, como se lê em Durval Vieira de Aguiar.
Estado, suas agências e instituições promovem trabalho contínuo, com apoio em interesses de classe vigentes na sociedade, para introjetar idéia e sentimento de pátria, desde a infância, com o trabalho nas escolas.
Autores cultivam o patriotismo e escrevem livros úteis, quer pelas informações/ conteúdos, quer pela pretensão de desenvolver o sentimento de pátria, alimentá-lo, o que já é serviço útil a essa.
Na Bahia, na virada do século XIX, Durval Vieira de Aguiar é exemplo marcante de autor a um só tempo útil e patriota mas, afora esse sentimento de utilidade e patriotismo, suas “Descrições Práticas da Província da Bahia” é obra de leitura recomendável pelo conjunto de informações que fornece sobre vilas e cidades da Bahia.
                           Notas
(1)       Assis Figueredo – Afonso Celso – Porque me ufano do meu país; Rio de Janeiro: Garnier, 1926.
(2)       Barbosa, Ruy – Palavras à juventude; Rio de Janeiro: Elos, 1961.
(3)       Citado por rigueiro, Luis Forjas – pátria in Polis – enciclopédia Verbo da Sociedade e do Direito. Portuguesa, Lisboa/São Paulo: Lisboa/ São Paulo, s/d.
(4)       Camões. Luiz Vaz – Os Lusíadas; Ponto: Lello e Irmão Editores, 1970.
(5)       Vieira, Antonio – Sermões, Vol. VIII; Lisboa: Lello e Irmão Editores, 1951.
(6)       Vieira, Antonio – Sermões, Vol. VIII; Lisboa: Lello e Irmão Editores, 1951.
(7)       Descobrimentos Portugueses – Documentos para sua historia, citado por – Machado, José Pedro – Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa; Lisboa: Livros Horizonte, 1995.
(8)       Gil, José – Nação, In Enciclopédia Einaudi, Vol. 14 (Estado-Guerra); Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1989.
(9)       G. Bouglé – Patrie, In La Grande Encyclopédie; Paris: Librairie Larousse, 1935.
(10)   Citado por Soboul, Albert – A Revolução Francesa; Pag. 54, São Paulo: Ed. Bertrand do Brasil, São Paulo, 1989.
(11)   Soboul, Albert, op. cit, p. 54.
(12)   Hegel, G.W.F. – Principios de Filosofia do Direito, p. 230; São Paulo: Martins Fontes, 1997.
(13)   Bilac, Olavo G.– A Pátria. Dentre os livros mencionados, podem ser citados Nogueira, Julio - Programas de Português, várias edições pela Companhia Editora Nacional, São Paulo; Nobrega Vandick, e Medeiros, Valter – O Idioma do Brasil, várias edições pela Companhia Editora Nacional, São Paulo; Oliveira, Cleófano, Lopes de – Flor do Lacio, Várias edições pela Edição Saraiva; Sánunes, José de Sá – Lingua Vernácula, Várias edições pela Edição Saraiva.
(14)   Citado por Corone, Edigard – A Primeira Republica, p. 41, São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1969.
(15)   Amorim, Deolindo – Noticia Historica da Vila de Baixa Verde, In Revista do Instituto Geográfico e Historico da Bahia, nº 73, Ano 1949, Salvador.  
Bibliografia
Aguiar, Durval Vieira – Província da Bahia (na 1ª Edição, Descrições Práticas da Província da Bahia), 2ª edição, Rio de Janeiro: Cátedra/Mec, 1979.
Amorim, Deolindo – Notícia Histórica da Vila de Baixa Verde, in Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, nº 73, p. 257 – 275, Salvador, 1946.
Barbosa, Ruy – Palavras à Juventude, Rio de Janeiro: Elos, 1961.
Bouglé, Charles – Patrie, in La Grande Encyclopédie, tome XXVI, Paris: Librairie Larousse, 1936.
Bueno, Silveira – Páginas Literárias, São Paulo: Saraiva, 1949.
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Carnoy, Martin – Estado e Teoria Política, São Paulo: Papirus, 2005
Carone, Edgard – A Primeira República, São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1969.
Figueredo, Afonso Celso de Assis – Porque me ufano do meu País, Rio de Janeiro: Garnier, 1926.
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