Pátria e Utilidade do Texto: Durval
Vieira de Aguiar e suas Descrições Práticas da Província da Bahia.
Ruy Medeiros
1.
Pátria: de torrão natal a comunidade de sentimentos
A idéia de pátria
permeia muitos textos. Está presente em escritos literários, discursos
políticos, sermões, textos históricos e outros.
A utilização do
vocábulo, à esquerda e à direita, suscita dificuldades conceituais. Contexto em
que aparece e finalidade de seu uso causam embaraços à sua definição.
Já se disse,
contrariando um dos sentidos mais entranhado, e alguns repetem, que “onde se vive bem aí é a pátria” (ubi bene, ibi pátria), ou “onde me sinto bem, aí é minha pátria”.
Mas, essa afirmação tão cosmopolita, que encaminha a certo pendor materialista,
não é decisivamente aquilo que domina quando se fala de pátria. “Ubi bene, ibi pátria” esvazia o sentido
mais comum desta, pois importa em cisão entre específico solo (território) e
pessoa ou geração que nele habita.
O comum é a vinculação
entre pátria e território, o que importa dizer que pátria, embora não assimilada totalmente à vinculação pessoa solo,
tem no território um de seus componentes e, mesmo quando não se vive no solo
pátrio, a este se deve lealdade (patriotismo). Essa é a lição antiga e
cotidiana e decorre daquilo que se extrai de miríade de textos: a inafastável
lealdade, o amor entranhado, incondicional e eterno (não enquanto dure) à pátria.
Já diz Afonso Celso em
livro muitas vezes reeditado, no qual dá motivos para amar o Brasil, mesmo que
esse exija sofrimento:
Quero
que consagreis sempre ilimitado amor à região onde nascestes, servindo-a com
dedicação absoluta, destinando-lhe o melhor de vossa inteligência, os primores
de vosso sentimentos, o mais fecundo de vossa atividade, dispostos a quaisquer
sacrifícios por ela, inclusive o da vida.
Embora
padeceis por causa da pátria, cumpre que lhe voteis alto, firme, desinteressado
afeto, o qual, longe de esmorecer, - aumente, mesmo quando desconhecido,
injustamente aquilatado, ou ingratamente retribuído, e, jamais, em circunstancia
nenhuma, vacile, descreia ou se entibie (1).
Seja, como no pórtico do
livro daquele autor: Right or Wrong, my
Country.
Autor mais equilibrado,
e apesar disso, em página célebre na qual a palavra tem sentido que se dá a
nação, Ruy Barbosa igualmente eleva a pátria e ali a definição dessa
encontra-se associada à visão liberal:
A
pátria não é ninguém: são todos; e cada qual tem no seio dela o mesmo direito à
idéia, à palavra, à associação. A pátria não é um sistema, nem uma seita, nem
uma forma de governo: é céu, o solo, o povo, a tradição, a consciência, o lar,
o berço dos filhos e o túmulo dos antepassados, a comunhão da lei, da língua e
da liberdade. Os que a servem são os que não invejam, os que não infamam, os
que não conspiram, os que não emudecem, os que não se acorbadam, mas resistem,
mas ensinam, mas esforçam, mas discutem, mas praticam a justiça, a admiração, o
entusiasmo. Porque todos os sentimentos grandes são benignos, e residem
originariamente no amor. No próprio patriotismo armado o mais difícil da
vocação, e a sua dignidade, não está no matar, mas no morrer (2).
A territorialidade
compõe a idéia de Pátria, e esse é dado que tem profundas raízes no tempo, ora
como o lugar de nascimento, ora o país. Encontra-se o termo para significar
local (de nascença), referir-se a região ou a vila (município). No entanto não
se deve esquecer que, com dose de espiritualização, o termo foi utilizado no
sentido de país de origem, ou país. Exemplo disso se colhe na “Crônica de Dom
João I”, de autoria de Fernão Lopes: com
esta história se mostra com simples e afetado estilo o zelo de honra de Deus e
do amor da pátria – (3). No
mesmo sentido, Camões se expressava, referindo-se a Portugal: vereis amor da pátria, não movido/De prêmio
vil, mas alto e quase eterno:/ que não é prêmio vil ser reconhecido/ por um
pregão do ninho meu paterno. (4).
Vieira utiliza a palavra
com o sentido de País, Estado:
A
segunda desgraça de S. Roque foi ser desgraçado com os naturais. Quando S.
Roque fez sua peregrinação de França para Itália, havia guerras entre Itália e
França, e desta guerra lhe sucederam ao santo duas coisas notáveis: a primeira,
que chegando da Itália, os italianos o trataram como inimigo, e o feriram: a
segunda, que tornando para França, os franceses o trataram como traidor, e o
prenderam por espia. Há maior desgraça que esta? Que em Itália me tratem como
inimigo, por que sou de França, e que em França me tratem como traidor, porque
venho de Itália? S. Roque peregrinou de França para Itália por amor de Deus, e
tornou de Itália para a França, por amor da pátria: e que quando vou em serviço
de Deus, me tenham por inimigo, e quando venho em serviço da pátria, me tenham
por traidor? Desgraça Grande
(5).
No mesmo sermão de São
Roque, cujo pequeno passo acima é transcrito, Vieira usa o termo pátria para
expressar cidade: Depois de S. Roque
haver peregrinado por Itália, recolheu-se outra vez a França, e entrando em
Montpellier pátria sua...(6).
O contexto maior do
sermão indica que pátria é utilizada
pelo “embaixador da língua portuguesa” como país e correspondente estado, pois
são autoridades públicas que prendem e acusam São Roque.
O termo de origem
latina, usado com o sentido territorial (local de origem), é documentado desde
1476, em Portugal, no mínimo, pois assim apareceu em registrado: deixaram suas terras e pátrias. (7).
No entanto, o sentido
restrito do termo (local de nascimento) deu lugar ao sentido do país sob
domínio de um monarca.
Apoiando-se em kantorawicz,
Jose Gil informa:
Kantorawicz, por
exemplo, traça o percurso da palavra “pátria’’
que, tendo caído em desuso durante a Alta Idade Média (conservando apenas o
sentido religioso de ‘pátria celeste’ ou ‘reino de Deus’) recupera, depois das
cruzadas, o sentido de território onde se exerce o poder monárquico (nomeadamente
o de lançar impostos): a defesa da pátria pelas forças do rei (daí a necessidade
de imposto) surge como conseqüência natural da defesa de Jerusalém, cidade
santa, “pátria dos cristãos” (que é acompanhada do lançamento de impostos). Até
a Revolução Francesa, irá desempenhar um papel decisivo, no seio do discurso
filosófico e político, no despontar do significado moderno de “nação”. (já que
no século XIII, na França de Felipe, o Belo, a palavra ‘pátria’ começara a
designar todo o reino e, por esta época, a monarquia territorial- talvez se
possa dizer ‘nacional’ – era na França suficientemente forte e organizada para
se proclamar a si mesmo communis pátria de todos os seus súditos e para exigir
serviços extraordinários em nome da mãe pátria (Kantorowicz, 1957) (8)
Atribui-se à pátria
capacidade de fazer aceitar sacrifícios e de mobilizar pessoas, grupos e
massas. Como principalmente se percebe nos hinos (ou ficar a Pátria livre/ou morrer pelo Brasil). Esse poder é
registrado em texto de enciclopédia francesa que, como a primeira desse nome,
ganhou ares de grande autoridade intelectual:
L’idée
de Patrie, avec le cortège des sentiments qu’ elle inspire et de devoirs qu’
elle impose, est, sans doute, le plus active e le plus puissante des idées
directices de notre civilization moderne. L’amour de la patrie nous parait à la
fois naturel et necessaire; si bien que l’antipatriotisme nous fait l’effect de
quelque chose monstruex, qui nous étonne encore plus qu’il nos indigne. L’amour
de La patrie semble etre aujourd’hui la seule force capable de rèduire au
silence, quand il le faut, les passions le plus violentes, comme celles qui
divisent les habitants d’un même pays em partis politiques. Nul autre sentiment
n’est plus de taille à lui tenir Tête. Lui Seul est capable, quand la patrie
est em danger, de séparer les fils de la mere, e’ epoux de l’épouse, de mettre
l’épée a la main de ceux même que ont juré de ne pás tuer. Les devoirs le plus
pressants, qu’il aient/devoirs pour but la conservation de l’unité familiale ou
l’observation des prècepts religieux, le cedent ainsi au devoir envers la
patrie, suprematie garantie tant par l’opinion que par les institutions
publiques. Au patriotisme en reconnaitra le droit de nous demander le sacrifice
absolu de notre personalité.
(...) (9).
Em tradução:
*A
idéia de pátria, com o cortejo de sentimentos que inspira e dos deveres que
impõe, é, sem dúvida, mais ativa e poderosa das idéias diretivas da nossa
civilização moderna. O amor à pátria nos parece a um só tempo natural e necessário;
tanto como o antipatriotismo nos causa o efeito de qualquer coisa de
monstruoso, que nos espanta mais do que nos indigne. O amor à pátria parece
hoje a única força capaz de reduzir ao silêncio, quando isso é preciso, as
paixões mais violentas, como aquelas que dividem os habitantes de um mesmo país
em partidos políticos. Nenhum outro sentimento tem mais corpo para opor-se-lhe.
Somente ele é capaz, quando a pátria está em perigo, de separar os filhos da
mãe, o esposo da esposa, e de colocar a espada na mão daqueles mesmos que
juraram não matar. Os deveres mesmo os mais urgentes, que têm por finalidade a
conservação da unidade familiar ou a observância dos preceitos religiosos cedem
também diante do dever perante a pátria, supremacia garantida tanto pela opinião
quanto pelas instituições públicas.
Em não poucas vezes da
história, apelou-se em nome da pátria ou a pátria emitiu apelos. Em horas
dramáticas da história ocorreram em massa milhões de pessoas em defesa da
pátria. Na França, diante de invasão estrangeira e de rebeliões internas, a
assembleia legislativa, sem qualquer sanção real, em 11 de julho de 1792,
declarou a pátria em perigo. Logo o
decreto era divulgado em 22 e 23 de julho, ao troar dos canhões a espaços de
hora. Os cidadãos eram como que atraídos irresistivelmente pela bandeira
tricolor carregada por funcionários. Improvisaram-se locais de alistamento e,
muitas vezes, serviam de mesa as caixas dos tambores. Os cidadãos marcharam para frente de batalha (Jemmapes e Fleurus)
porque sabiam que a pátria está em perigo,
como se lia na bandeira.
Que ideia-força é esta capaz
de unir adversários, de separar o filho da
mãe, o esposo da esposa, de colocar na cintura dos pacifistas a espada?
É evidente que não se
trata de um enigma, embora, como em muitos casos em que o sentimento ocupa
espaço motivador maior, muita coisa fique por ser dita. Não há nada de misterioso
no apelo ao sentimento patriótico e no fato de a pátria em não poucas vezes ser
a idéia força em torno da qual se forja provisória unidade de forças sociais díspares.
As contradições sociais são obscurecidas pela ideia de unidade, de uma
salvaguarda para todos. Justificação de poder nacional - e do Estado - a idéia
de pátria busca obter fidelidade, encobrir os conflitos, alienar massivamente a
sociedade.
Fazendo parte do aparato
do poder, a ideia de patria, como ocorre com toda a alienação (e reificação),
ganha vida independente (como na
religião) e submete as consciências. A famosa carta de Roland a Luis XVI toma a
pátria como ente: A pátria não é de
nenhum modo uma palavra a que a imaginação, por comprazer-se aformoseou; é uma
entidade á qual se fazem sacrifícios... que se criou com grandes esforços, que
se ergueu em meio às inquientudes e que se ama tanto pelo que custa quanto pelo
que se espera dela (10).
A pátria física (local
de origem, território monárquico), passa a nação, mas se desenvolve como
comunidade de sentimento, entidade à qual
se fazem sacrifícios, portanto instrumento de dominação. Verdadeira cortina
de fumaça que obscurece as consciências, que introduz a mistificação.
No caso da frança de
1792 (a pátria em perigo), a
explicação tem base material, nada é mágico:
.... a crise nacional, conjugando-se com a crise
econômica multiplicava o ímpeto das massas: impulso nacional e movimento
revolucionário são inseparáveis; um conflito de classes subentende e exacerba o
patriotismo. Os aristocratas opõem o rei à nação de que encarnecem; os do
interior esperam o invasor, os imigrados combatem nas fileiras inimigas. Para
os patriotas de noventa e dois trata-se de salvaguardar e de promover a herança
de oitenta e nove (11).
Ora a crise nacional,
sobreexcitando o sentimento revolucionário, acentua as oposições sociais no
próprio seio do antigo Terceiro Estado. Mais ainda que em 1789, ‘a burguesia se inquieta’
Era necessário, diante
do conflito entre facções do terceiro estado e da insatisfação popular (que, no
interior, já se expressava com revoltas), encontrar um móvel que unisse a
população em torno de um objetivo comum: a invasão estrangeira criou
possibilidade de desvio de cruenta guerra civil para o caminho da defesa do
estado Francês. Daí surge o apelo contra os estrangeiros, a consigna da pátria em perigo e o avanço da bandeira tricolor.
Essa distinção entre
pátria, considerada território ou pátria-nação e pátria entidade, mito, comunidade de sentimento, ainda não se completou, e
a atual geração já percebe o desvanecimento da ideia de pátria; seu
desfalecimento parece próximo, e por isso é possível que não se complete.
De qualquer maneira,
Hegel já percebia que pátria tomava
outro conteúdo desgarrando do sentido que lhe fora atribuído antes. Com efeito,
ao falar em sentimento político e patriotismo, Hegel ensinava em seu curso de
Filosofia do Direito que:
O
sentimento político, o patriotismo em geral, é como uma certeza que se funda na
verdade (uma certeza apenas subjetiva não se funda na verdade, não passa de uma
opinião) e é o querer transformado em hábito. Só pode resultar das instituições
que existem no Estado pois nelas é que a razão é verdadeiramente dada e real,
pois no comportamento em conformidade com estas instituições é que a razão
adquire a sua eficácia. Este sentimento é sobretudo o da confiança (que pode
vir a ser uma compreensão mais ou menos cultivada) e da certeza de que meu
interesse particular e o seu interesse substancial se conservam e persistem
dentro do interesse e dos fins de um outro (no caso, o Estado) e, portanto,
dentro de sua relação comigo como indivíduo. Daí provém, precisamente, que o
Estado não seja para mim algo de alheio e que, neste estado de consciência eu
seja livre.(12).
Pretende-se que a
solidariedade determinada pela divisão do trabalho e a necessidade de
colaboração entre os membros da sociedade sejam os condicionantes do sentimento
chamado de amor à pátria. Mas o que está mais próximo da realidade é o
condicionamento ideológico: o poder passa a ser visto de maneira invertida. Ele
radica na pátria e esta obscurece a
verdadeira face daquele poder que é exercido a um só tempo pela pátria a para a
pátria, por meros servidores dela. A classe do poder esconde-se sob a pátria. A dominação aparece obscurecida
pela idéia de pátria; propaga-se sobre a realidade social com os apaixonantes
apelos da pátria. A idéia de pátria,
aliena as consciências ao colocar-se como ente que exige sacrifícios, mas que
compensará o patriota (aí não se está distante das religiões sacrificais).
2. Escritos patrióticos
Pátria
deve ser
constantemente alimentada. As repetições do termo, os partidos políticos, a
imprensa, a escola e o escritor fornecem alimento constante à entidade que
exige sacrifícios: a pátria espera que
cada um cumpra seu dever.
Livros escolares foram
constantes em apresentar textos patrióticos. Excertos de Ruy Barbosa (trecho de
Palavras à Juventude, já aqui referido), de Bilac (A pátria), de Coelho Neto (Mandamentos
Cívicos), Silveira Bueno (Palavra aos
moços), Dom Aquino Correia (Sede Brasileiro),
Joaquim Manoel de Mácedo (O Torrão Natal),
Gonçalves Dias (Canção do Exílio)
etc, foram, entre 1930 e 1970, presença constante dos livros de ensino
dedicados ao segundo grau. O programa ministerial de 15 de julho 1942 faz
incidir nos livros escolares temas prevegiando a família, a escola, a terra
natal; muitos historiadores e autores de livros didáticos louvaram a pátria e,
com seus textos, pretenderam servir a elas, “criando consciência patriótica”.
Relevam nos textos o sentimento de amor à pátria, mesmo que à custa da
mistificação:
Boa
terra! Jamais negou a quem trabalha/ o pão que mata a fome, o teto que agasalha.../
quem com seu suor a fecunda e umedece / vê pago o seu esforço é e feliz e
enriquece!/ criança! Não verás país nenhum como esse:/ imita na grandeza a
terra em que nasceste
(13)
Os textos patrióticos
pretendem cumprir o objetivo de moldar consciências e, sobre as contradições
sociais, elevar um sentimento que uniformize comportamento, que direcione o
esforço para os objetivos do Estado, dentre os quais o de defender o território
e o de dissuadir as lutas de classe. Mas serve igualmente de bandeira contra adversários,
como se lê em manifestos políticos, á exemplo daquele lançado por monarquistas
em 24 de agosto de 1902, concitando os brasileiros às armas, e que, dentre
outras coisas, diz:
A
terra gloriosa de nossos avós, a nossa amada pátria, outrora invejada pelo
estrangeiro como uma das mais felizes do mundo, está transformada em lodaçal, paul
pestilento, onde só podem viver as oligarquias, sevadas no tesouro, tripudiando
sobre a honra nacional.
Vede
como a perversidade de homens sem patriotismo, livres de obediência à moral e afeitos
á violência e ao crime, desfigurou a nossa grandeza, desbaratou a nossa
riqueza, na orgia infernal que nos deprime e avilta.
Contemplai
a miserável situação em que nos achamos...
Fora
do país de bárbaros é a nossa fama. O Governo Brasileiro foi proclamado, na
Europa, o mais corrupto da terra! Os nossos diplomatas, deslembrados de sua alta
missão, são objeto de ridículo nos países civilizados, onde deslustram o nome
brasileiro por sua inépcia e ignorância. (14).
Os próprios textos patrióticos
são apresentados como um serviço à pátria. É o caso das Descrições Práticas da Província da Bahia, de Durval Vieira de
Aguiar. Esse autor pode ser tomado como modelo de escritor patriota, tal como
Coelho Neto e Olavo Bilac.
É o que o resumo que
segue, com utilização de pequenos trechos de seu livro – Descrições Políticas da Província da Bahia, pretende demonstrar.
3. Durval Vieira de Aguiar, republicano, útil
e patriota.
Pequena noticia nos
fornece Deolindo Amorim sobre Durval Vieira de Aguiar:
Em
1888 era Presidente da Província da Bahia o conselheiro José Luiz de Almeida
Couto, já pela 2ª vez (...), tendo o seu governo tomado o maior interesse pelo
estudo topográfico e histórico das municipalidades da província. Foi incumbido
de fazer esse estudo e reunir os seus dados em trabalhos oficiais o Cel. Durval
Vieira de Aguiar, comandante do Corpo policial da província, homem estudioso e
de muito valor pessoal. È justo recordar que o Cel Durval foi, neste alto posto
de comando, uma das figuras principais na Bahia por ocasião da Proclamação da
Republica ao lado do grande republicano Cons. Virgilio Damasio. Mas a
preferência do governo provincial obedeceu a uma circunstancia importante para
o assunto. Sendo o Cel. Durval Oficial de Polícia, teve ocasião de percorrer as
diversas regiões do interior baiano, ora comandando destacamentos, ora como
oficial subalterno, e até mesmo como capitão, observou bem, fazendo valiosos
relatos (de) várias cidades e vilas da Bahia.(15).
Durval Vieira de Aguiar,
em 1882, inspecionou destacamentos militares no sertão baiano e foi encarregado
por João dos Reis de Souza Dantas, Presidente Interino da Província, para
restabelecer paz no município de Xique-xique onde facções políticas (Pedra e
Morrão) estavam em conflito armado, desde 1880.
Acusado de ter sido
privilegiado com altas ajudas de custo, Durval Vieira conseguiu desmentir as
acusações, demonstrando que percebeu apenas os vencimentos do cargo, pagamento
de transporte, uma carga, e ordenança, pela tabela vigente ao tempo.
Enquanto cumpria sua
missão pelo interior baiano, desde bem antes de 1882, Durval Vieira de Aguiar
recolhia informações sobre vilas e povoados, flora, fauna, finanças,
municipais, etc, e depois as completou com outras pesquisas. Por intermédio do conselheiro
Antonio Carneiro da Rocha, publicou em 1883, artigo sobre aquele assunto no
jornal “Diário da Bahia” e posteriormente esse órgão da imprensa publicou-lhe
outros textos sobre localidades baianas.
As descrições práticas
redigidas por Durval Vieira de Aguiar foram enfeixadas em livro: Descrições Práticas da Província da Bahia: com
declaração de todas as distâncias intermediárias das cidades, vilas e povoações.
A edição foi realizada pela Tipografia do Diário da Bahia, com data 1888,
terminando de imprimir-se em 1889. O livro passou a ser muito consultado e a
aparece em bibliografia de trabalhos sobre história, geografia, sociedade, mas,
apesar disso, só ganhou segunda edição em 1979 pela livraria Editora Cátedra (
Rio de Janeiro) em convênio com o Instituto Nacional do Livro/Ministério da
Educação e Cultura, com prefácio de Fernando Sales.
Referida obra, além de
escrito dirigido ao leitor, de oferecimento, de mensagem aos imigrantes e de
prefácio, contém descrições de 86 municípios, um texto sobre o Brasil, outro
sobre Bahia de Todos os Santos (Salvador) e finaliza com texto alusivo á
liberdade, transcrito de artigo de jornal publicado sob pseudônimo de
Lamartine. O autor passara a publicar no Diário da Bahia, artigos “sob
influência medianímica”, como diz, com assinatura de Voltaire, Diderot, Condorcet
e outros.
As Descrições Práticas trazem informações topográficas, históricas,
situacionais, culturais, políticas, etc. O leitor é muitas vezes surpreendido
por notícias inesperadas ou por manifestações de indignação. Durval Vieira de
Aguiar se auto proclama patriota, republicano, e seu livro é fruto de dever
patriótico, mas também obra que pudesse
servir de utilidade publica.
O autor das Descrições
Práticas entendeu que seus escritos publicados no Diário da Bahia e depois
reunidos em livro possuíam utilidade. Na dedicatória feita ao Dr. José Luiz de
Almeida Couto, diz, do livro, que tivemos
a veleidade de considerar de alguma utilidade para a nossa Província e para
nossos comprovincianos. (p.3) Informa que desejava chamar a atenção para as
atuais condições de vida e de progresso,
bem como os dotes e defeitos materiais de nosso solo (p.3), com vista a
tornar bastante conhecida a Bahia. Está interessado em demonstrar que a então
província era rica em agricultura e em minerais, pois a corrente imigratória
dirigia-se para as províncias do sul, desprezando a Bahia, por desconhecê-la.
Exatamente por isso e por entender as vantagens de receber imigrantes europeus
é que o autor transcreve a Lei Provincial nº 2.604, de 28 de julho de 1888 pela
qual o governo ficou autorizado a publicar folheto, vertido em diversas
línguas, com informações sobre a Bahia, e dispõe sobre incentivos à imigração
(pagamento de traslado, ajuda de custo, etc), formação de núcleos coloniais e
arrendamento ou compra de lotes agrários.
A utilidade está sempre presente no texto:
Tendo
sido o nosso mais constante e ardente desejo escrever alguma obra que pudesse
servir de utilidade pública, esmorecia-nos freqüentemente a insuficiência dos
nossos conhecimentos práticos, os quais se bem (que) colhidos em grande número
de localidades já por nós percorridas, não satisfariam de certo o espírito
público, que necessitava de uma descrição, senão completa, ao menos geral, isto
é, da Província inteira
(prefácio).
Aqui e alí, a idéia e o
conjunto de informações são marcados pela noção de utilidade, na obra de Durval
Vieira de Aguiar, que, por mais de uma vez, informa que se trata de colaboração
à Província e prova de sua dedicação a esta, como, a exemplo, se lê a página
15:
Sem
outra aspiração, viemos apenas dar à nossa Província uma exigua, porém sincera,
prova de dedicação, julgando com isso prestar-lhe um serviço, segundo nossa boa
intenção, por amor da qual pedimos indulgência à crítica, que não deve ser inexorável
com quem não tem a pretensiosidade de julgar-se escritor, e apenas procurar, no
seu tanto, ser útil, afastando-se do prejudicial indiferentismo, moléstia
contagiosa, e endêmica em nossa Pátria. Isto é, referimo-nos à pátria do nosso
berço, aquela em que tivemos a dita de ver a luz, a esta vasta e incomparável
Província tão infeliz no progresso, quanto bem dotada pela Providência; tão
pobre de indústria, comércio e lavoura, quanto rica, vasta e fértil de
território; tão precisa de patriotismo, quanto abundante de inteligências; tão
necessitada de benefícios, quanto bem aquinhoada em recursos naturais, que
incessantemente nos desafiam ao trabalho e à gloria (p.16).
O militar escritor
recupera o sentido de pátria como
província de nascimento e crítica a centralização da corte. É um patriota que,
embora se refira igualmente à pátria-nação, privilegia a pátria-província:
Não
sei se nos julgarão bairristas ante o preceito centralizador do todo pela
parte, que nos faz esquecer a Província pelo Império, que não é mais do que a
“Corte”, para onde convergem, em curso forçado, todos os nossos recursos materiais
e intelectuais, e convergeria, se possível fosse até a nossa pura atmosfera em
troca da pestilenta que lá reina em certas estações”(p.16).
A própria defesa que faz
da colonização voluntária pelo braço do imigrante é vinculando à idéia de
Pátria:
É
essa colonização de que precisamos para felicidade da Pátria; porque essa gente
é que paga imposto do dinheiro, de sangue e de inteligência, prendendo-se em breve
tempo à sua nova Pátria pela sua própria propriedade, pelo produto do seu
trabalho e pela progenitura. A essa gente é que devemos esperar com as terras
roçadas, estradas feitas, rios navegados, liberdade garantida, escolas abertas;
mas não com a polícia prevenida, as cadeias escancaradas e a caridade pública
em ação (p.18).
O autor, embora capaz de
indignar-se com carências, corrupção, miséria, muitas vezes é ufanista da
Bahia, à qual devota seu patriotismo. Mas utiliza o vocábulo pátria para
referir-se à Bahia (especialmente) e ao Brasil. Trata-se de patriotismo que
deve preponderar mesmo diante de divergência (e, como vimos, uma das funções da
idéia de Pátria é uniformizar e obscurecer), como se constata quando se lê a seção dedicada à
Imperial Vila da Vitória; aí o autor, após mencionar atrocidades atribuídas ao
fundador dessa vila contra os índios, afirma:
Repugna-nos
descrever estas covardes atrocidades deslustradoras dos feitos de homens, que,
por serviço à pátria, tem a história o dever de exaltar (p.193).
Durval Vieira de Aguiar
publicou o seu livro já quando a República foi proclamada, embora desse conste
data de 1888. Ele próprio era republicano e tinha afinidade com os programas do
Clube Republicano do Rio de janeiro e contribuiu com a instalação do governo republicano
na Bahia.
Em seu livro, o autor
registra a Proclamação da República e a exalta:
Ao
terminarmos esta obra, com satisfação dos nossos mais ardentes desejos,
permitiu Deus a graça de vermos a 15 do corrente mês de novembro de 1889, surgir
a mais auspiciosa era que podíamos desejar ao engrandecimento do Brasil, em boa
hora rasgando o negro veu que encobria o seu lindo horizonte, para, em poucas
horas, pacificamente, transformar-se em República Federal de Estados-Unidos
(p.317).
E depois:
Brasil
dos brasileiros! Brasil da liberdade! Que a magnidade dos teus patrióticos
sentimentos saiba agora dar o justo valor a grandeza dos teus dotes naturais e
a vastidão maravilhosa do teu uberrisimo território. (p.318)
Conclusão
A noção de pátria evoluiu
do sentido de lugar de nascimento, para abranger o de território monárquico e,
depois, ser assimilado ao conceito de nação para, embora ainda conservando
esse, significar sentimento (patriotismo), ou comunidade de sentimento,
mitificado. Uma alienação. Um encobrimento da realidade. Isso não impede o uso
do sentido de Província de nascimento, que persistiu, como se lê em Durval
Vieira de Aguiar.
Estado, suas agências e
instituições promovem trabalho contínuo, com apoio em interesses de classe
vigentes na sociedade, para introjetar idéia e sentimento de pátria, desde a
infância, com o trabalho nas escolas.
Autores cultivam o
patriotismo e escrevem livros úteis, quer pelas informações/ conteúdos, quer
pela pretensão de desenvolver o sentimento de pátria, alimentá-lo, o que já é
serviço útil a essa.
Na Bahia, na virada do
século XIX, Durval Vieira de Aguiar é exemplo marcante de autor a um só tempo
útil e patriota mas, afora esse sentimento de utilidade e patriotismo, suas
“Descrições Práticas da Província da Bahia” é obra de leitura recomendável pelo
conjunto de informações que fornece sobre vilas e cidades da Bahia.
Notas
(1)
Assis
Figueredo – Afonso Celso – Porque me ufano do meu país; Rio de Janeiro:
Garnier, 1926.
(2)
Barbosa,
Ruy – Palavras à juventude; Rio de Janeiro: Elos, 1961.
(3)
Citado
por rigueiro, Luis Forjas – pátria in Polis – enciclopédia Verbo da Sociedade e
do Direito. Portuguesa, Lisboa/São Paulo: Lisboa/ São Paulo, s/d.
(4)
Camões.
Luiz Vaz – Os Lusíadas; Ponto: Lello e Irmão Editores, 1970.
(5)
Vieira,
Antonio – Sermões, Vol. VIII; Lisboa: Lello e Irmão Editores, 1951.
(6)
Vieira,
Antonio – Sermões, Vol. VIII; Lisboa: Lello e Irmão Editores, 1951.
(7)
Descobrimentos
Portugueses – Documentos para sua historia, citado por – Machado, José Pedro –
Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa; Lisboa: Livros Horizonte, 1995.
(8)
Gil,
José – Nação, In Enciclopédia Einaudi, Vol. 14 (Estado-Guerra); Lisboa:
Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1989.
(9)
G. Bouglé – Patrie, In La Grande Encyclopédie; Paris:
Librairie Larousse, 1935.
(10)
Citado
por Soboul, Albert – A Revolução Francesa; Pag. 54, São Paulo: Ed. Bertrand do
Brasil, São Paulo, 1989.
(11)
Soboul, Albert, op. cit, p. 54.
(12)
Hegel,
G.W.F. – Principios de Filosofia do Direito, p. 230; São Paulo: Martins Fontes,
1997.
(13)
Bilac,
Olavo G.– A Pátria. Dentre os livros mencionados, podem ser citados Nogueira,
Julio - Programas de Português, várias edições pela Companhia Editora Nacional,
São Paulo; Nobrega Vandick, e Medeiros, Valter – O Idioma do Brasil, várias
edições pela Companhia Editora Nacional, São Paulo; Oliveira, Cleófano, Lopes
de – Flor do Lacio, Várias edições pela Edição Saraiva; Sánunes, José de Sá –
Lingua Vernácula, Várias edições pela Edição Saraiva.
(14)
Citado
por Corone, Edigard – A Primeira Republica, p. 41, São Paulo: Difusão Europeia
do Livro, 1969.
(15)
Amorim,
Deolindo – Noticia Historica da Vila de Baixa Verde, In Revista do Instituto
Geográfico e Historico da Bahia, nº 73, Ano 1949, Salvador.
Bibliografia
Aguiar, Durval Vieira – Província da
Bahia (na 1ª Edição, Descrições Práticas da Província da Bahia), 2ª edição, Rio
de Janeiro: Cátedra/Mec, 1979.
Amorim, Deolindo – Notícia Histórica
da Vila de Baixa Verde, in Revista do Instituto Geográfico e Histórico da
Bahia, nº 73, p. 257 – 275, Salvador, 1946.
Barbosa, Ruy – Palavras à Juventude,
Rio de Janeiro: Elos, 1961.
Bouglé,
Charles – Patrie, in La Grande Encyclopédie, tome XXVI, Paris: Librairie
Larousse, 1936.
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Literárias, São Paulo: Saraiva, 1949.
Camões, Luis Vaz de – Os Lusíadas,
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Carnoy, Martin – Estado e Teoria
Política, São Paulo: Papirus, 2005
Carone, Edgard – A Primeira
República, São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1969.
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Hegel, G.W.F. – Filosofia do
Direito, São Paulo: Martins Fontes, 1997.
Machado, José Pedro – Dicionário
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Nóbrega, Vandick L., e Medeiros
Valter – O Idioma do Brasil, Vol. I (1ª e 2ª Séries do Curso Ginasial), São
Paulo: Cia Editora Nacional, 1965.
________ O Idioma do Brasil, volume
3º (3ª Série do curso secundário, São Paulo: Cia Editora Nacional, 1966.
Nogueira, Julio – Programa de
Português, São Paulo: Cia Editora Nacional, 1945.
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Vernácula, São Paulo: Saraiva: 1949.
Soboul, Albert – A Revolução
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Verbo/ Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa, s/d.
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