Correspondência
Poética
(Em o 90º ano do nascimento de
Eurico Alves Boaventura e 25º de sua morte).
Ruy Medeiros.
Em
“Belo Belo”, livro datado de
1948, saído com a 2 ª
edição das (até então) “Poesias
Completas” de Manuel Bandeira, há um poema denominado “Escusa”.
Neste, o poeta pernambucano refere-se a
“Eurico Alves, poeta baiano, salpicado de orvalho, leite cru e tenro
cocô de cabrito”.
Trata-se
de uma bela poesia-resposta ao poeta Eurico Alves Boaventura. Um poema de peito
aberto, confidente.
Quem
é este Eurico Alves, que mereceu uma das mais belas poesias de Bandeira?
-Eurico
Alves Boaventura nasceu em Feira de Santana, no dia 27 de junho de 1909. Poeta
modernista, formou-se em Direito, em 1930. Foi vinculado aos escritores do
grupo/revista “Arco e Flexa”. Em 1933,
após aprovação em concurso público, assumiu cargo de Juiz em Direito, tendo
inclusive passado pela vizinha Comarca de Poções e, após exercer o cargo em diversas localidades,
assumiu seu posto em Salvador, onde passou a residir. Costumava, no entanto,
passar uns tempos na “Fazenda Ponte
Nova”, herdada de seu pai, em Feira de Santana.
Em
1974, em 4 de julho, o poeta baiano faleceu em Salvador.
Eurico
Alves não foi apenas juiz e poeta (como se
“apenas” se casasse com
“poeta”, triste limitação do
articulista), deixou também um dos melhores livros de história social
sertaneja: “Fidalgos e Vaqueiros”, do qual Wilson Lins diz tratar-se de “um
estudo sobre a formação e o desenvolvimento da aristocracia rural, nos adustos
sertões da Bahia”, de um trabalho que “mostra uma aristocracia suarenta,
requeimada de sol que, em vez de se deixar transportar pelos escravos, nas
padiolas, rasgava as roupas no cerrado, correndo atrás do boi bravo, nos seus
cavalos de campo”.
E,
realmente, aquele compêndio de história social sertaneja trata da sociedade
gerada nas fazendas de gado.
No
livro, Eurico Alves faz dividir parágrafos não tão longos por parágrafos
curtíssimos e belos. Parágrafos formados de um período apenas, as mais das
vezes, de construção elegante. Eis alguns desses parágrafos:
“A
música do aboio despertou o Brasil, porém”.
“Todo
o sertão se viu movimentado pela civilização pastoril”
“A
cana secou e era já o passado nas nossas vizinhanças”
“A
aventura do ouro, das minas também cansou o bandeirante
“
Não criaram o sertão os preadores de índios”
A
alternância, aqui e alí, de parágrafos mais longos com parágrafos curtíssimos,
condensadores, aprofunda a beleza do texto.
Mas,
para voltar ao começo: Manuel Bandeira responde, com “Escusa”,
ao poeta Eurico Alves. Digo responde porque é o certo.
Eurico
Alves Boaventura dirigira a Manuel Bandeira uma poesia - “Elegia para Manuel Bandeira”, e este
respondera àquele com outra poesia. Se os poemas isolados são bonitos, juntos
ficam mais compreensivelmente belos. Porisso os transcrevo.
Faço-o
em homenagem aos 90º ano de nascimento do Poeta de Feira de Santana e ao 25º
ano de sua morte:
Elegia para Manuel Bandeira
(Eurico Alves
Boaventura)
“Estou
tão longe da terra e tão perto do céu,
quando
venho de subir esta serra tão alta...
Serra
de São José das Itapororocas,
afogada
no céu, quando a noite se despe
e
crucificada no sol se o dia gargalha.
Estou
no recanto da terra onde as mãos de mil virgens tecem céus de corolas para o
meu acalanto.
Perdi
completamente a melancolia da cidade
e
espalho vibrações da minha força na paisagem.
Os
bois escavam o chão para sentir o aroma da terra,
e
é como se arranhassem um seio verde, moreno.
Manuel
Bandeira, a subida da serra é um plágio da vida.
Poeta,
me dê esta mão tão magra acostumada a bater nas teclas
da
desumanizada máquina fria
e
venha ver a vida da paisagem
onde
o sol faz cócegas nos pulmões que passam e enche a alma de gritos da madrugada.
Não
desprezo os montes escalvados
tal
o meu romântico homônimo de Guerra Junqueiro.
Bebo
leite aromático do candeial em flor
e
sorvo a volúpia da manhã na cavalgada.
Visto
os couros do vaqueiro
e
na corrida do cavalo sinto o chão pequeno para a galopada.
Aqui
come-se carne cheia de sangue, cheirando a sol.
Que
poeta nada! Sou vaqueiro.
Manuel
Bandeira, todo tabaréu traz a manhã nascendo nos olhos e sabe de um grito
atemorizar o sol.
Feira
de Sant’Ana! Alegria!
Alegria
nas estradas, que são convites para a vida na vaquejada,
alegria
nos currais de cheiro sadio,
alegria
masculina das vaquejadas, que levam para a vida
e
arrastam também para a morte!
Alegria
de ser bruto e ter terra nas mãos selvagens!
Que
lindo poema cor de mel esta alvorada!
A
manhã veio deitar-se sobre o sempre verde.
Manuel
Bandeira, dê um pulo a Feira de Sant’Ana
e
venha comer pirão de leite com carne assada de volta do curral
e
venha sentir o perfume de eternidade que há nestas casas de fazenda
nestes
solares que os séculos escondem nos cabelos desnastrados
[das
noites eternas
venha
ver como o céu aqui é céu de verdade
e
o tabaréu como até se parece com Nosso Senhor”.
Escusa
(Manuel
Bandeira)
“Eurico Alves, poeta baiano,
Salpicado de orvalho, leite cru e tenro cocô de cabrito,
Sinto muito, mas não posso ir a Feira de Sant’Ana.
Sou poeta da cidade.
Meus pulmões viraram máquinas inumanas e aprenderam a
respirar
[o gás carbônico das salas de cinema.
Como o pão que o diabo amassou.
Bebo leite de lata.
Falo com A, que é
ladrão.
Aperto a mão de B., que é assassino.
Há anos que não vejo romper o sol, que não lavo os olhos nas
cores
[ das madrugadas.
Eurico Alves, poeta baiano,
Não sou mais digno de respirar o ar puro dos currais da
roça”.
Agora o leitor não pode acusar-me de não falar de poesia.
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