quinta-feira, 24 de maio de 2012


Correspondência Poética

(Em o 90º ano do nascimento de Eurico Alves Boaventura e 25º de sua morte).
      Ruy Medeiros.

 Em  “Belo Belo”,  livro datado de 1948, saído com a 2ª edição das (até então)  “Poesias Completas” de Manuel Bandeira, há um poema denominado  “Escusa”.  Neste, o poeta pernambucano refere-se a  “Eurico Alves, poeta baiano, salpicado de orvalho, leite cru e tenro cocô de cabrito”.
Trata-se de uma bela poesia-resposta ao poeta Eurico Alves Boaventura. Um poema de peito aberto, confidente.
Quem é este Eurico Alves, que mereceu uma das mais belas poesias de Bandeira?
-Eurico Alves Boaventura nasceu em Feira de Santana, no dia 27 de junho de 1909. Poeta modernista, formou-se em Direito, em 1930. Foi vinculado aos escritores do grupo/revista  “Arco e Flexa”. Em 1933, após aprovação em concurso público, assumiu cargo de Juiz em Direito, tendo inclusive passado pela vizinha Comarca de Poções e,  após exercer o cargo em diversas localidades, assumiu seu posto em Salvador, onde passou a residir. Costumava, no entanto, passar uns tempos na  “Fazenda Ponte Nova”,  herdada de seu pai, em Feira de Santana.
Em 1974, em 4 de julho, o poeta baiano faleceu em Salvador.
Eurico Alves não foi apenas juiz e poeta (como se  “apenas” se casasse com  “poeta”,  triste limitação do articulista), deixou também um dos melhores livros de história social sertaneja: “Fidalgos e Vaqueiros”, do qual Wilson Lins diz tratar-se de “um estudo sobre a formação e o desenvolvimento da aristocracia rural, nos adustos sertões da Bahia”, de um trabalho que “mostra uma aristocracia suarenta, requeimada de sol que, em vez de se deixar transportar pelos escravos, nas padiolas, rasgava as roupas no cerrado, correndo atrás do boi bravo, nos seus cavalos de campo”.
E, realmente, aquele compêndio de história social sertaneja trata da sociedade gerada nas fazendas de gado.
No livro, Eurico Alves faz dividir parágrafos não tão longos por parágrafos curtíssimos e belos. Parágrafos formados de um período apenas, as mais das vezes, de construção elegante. Eis alguns desses parágrafos:
“A música do aboio despertou o Brasil, porém”.
“Todo o sertão se viu movimentado pela civilização pastoril”
“A cana secou e era já o passado nas nossas vizinhanças”
“A aventura do ouro, das minas também cansou o bandeirante
“ Não criaram o sertão os preadores de índios”
A alternância, aqui e alí, de parágrafos mais longos com parágrafos curtíssimos, condensadores, aprofunda a beleza do texto.
Mas, para voltar ao começo: Manuel Bandeira responde, com  “Escusa”,  ao poeta Eurico Alves. Digo responde porque é o certo.
Eurico Alves Boaventura dirigira a Manuel Bandeira uma poesia -  “Elegia para Manuel Bandeira”, e este respondera àquele com outra poesia. Se os poemas isolados são bonitos, juntos ficam mais compreensivelmente belos. Porisso os transcrevo.
Faço-o em homenagem aos 90º ano de nascimento do Poeta de Feira de Santana e ao 25º ano de sua morte:

Elegia para Manuel Bandeira
                                   (Eurico Alves Boaventura)
“Estou tão longe da terra e tão perto do céu,
quando venho de subir esta serra tão alta...

Serra de São José das Itapororocas,
afogada no céu, quando a noite se despe
e crucificada no sol se o dia gargalha.
Estou no recanto da terra onde as mãos de mil virgens tecem céus de corolas para o meu acalanto.
Perdi completamente a melancolia da cidade
e espalho vibrações da minha força na paisagem.

Os bois escavam o chão para sentir o aroma da terra,
e é como se arranhassem um seio verde, moreno.

Manuel Bandeira, a subida da serra é um plágio da vida.
Poeta, me dê esta mão tão magra acostumada a bater nas teclas
da desumanizada máquina fria
e venha ver a vida da paisagem
onde o sol faz cócegas nos pulmões que passam e enche a alma de gritos da madrugada.
Não desprezo os montes escalvados
tal o meu romântico homônimo de Guerra Junqueiro.

Bebo leite aromático do candeial em flor
e sorvo a volúpia da manhã na cavalgada.
Visto os couros do vaqueiro
e na corrida do cavalo sinto o chão pequeno para a galopada.

Aqui come-se carne cheia de sangue, cheirando a sol.

Que poeta nada! Sou vaqueiro.
Manuel Bandeira, todo tabaréu traz a manhã nascendo nos olhos e sabe de um grito atemorizar o sol.

Feira de Sant’Ana!  Alegria!

Alegria nas estradas, que são convites para a vida na vaquejada,
alegria nos currais de cheiro sadio,
alegria masculina das vaquejadas, que levam para a vida
e arrastam também para a morte!
Alegria de ser bruto e ter terra nas mãos selvagens!
Que lindo poema cor de mel esta alvorada!

A manhã veio deitar-se sobre o sempre verde.

Manuel Bandeira, dê um pulo a Feira de Sant’Ana
e venha comer pirão de leite com carne assada de volta do curral
e venha sentir o perfume de eternidade que há nestas casas de fazenda
nestes solares que os séculos escondem nos cabelos desnastrados
                                                                                              [das noites eternas
venha ver como o céu aqui é céu de verdade
e o tabaréu como até se parece com Nosso Senhor”.

                                   Escusa
                                   (Manuel Bandeira)
“Eurico Alves, poeta baiano,
Salpicado de orvalho, leite cru e tenro cocô de cabrito,
Sinto muito, mas não posso ir a Feira de Sant’Ana.

Sou poeta da cidade.
Meus pulmões viraram máquinas inumanas e aprenderam a respirar
                                                [o gás carbônico das salas de cinema.
Como o pão que o diabo amassou.
Bebo leite de lata.
Falo com A,  que é ladrão.
Aperto a mão de B., que é assassino.
Há anos que não vejo romper o sol, que não lavo os olhos nas cores
                                                                              [ das madrugadas.
Eurico Alves, poeta baiano,
Não sou mais digno de respirar o ar puro dos currais da roça”.

Agora o leitor não pode acusar-me de não falar de poesia. 

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