A crise que engolfa o Mundo
Ruy
Medeiros
Mais de um
milhão de crianças encarceradas no Mundo. Estados que desmoronam e são “recriados” a partir de fora. Milhões de
desempregados. Fome e miséria. Decréscimo de população na África. Choques
étnicos. Massacres. Genocídios.
O mundo está
imerso numa crise que, sob muitos aspectos, é mais grave que a “grande
depressão” de 1929.
As estatísticas
sociais apenas revelam parte do problema, até porque reduzir sofrimento a
números tem indisfarcável sabor de cinismo. Porém, quando lidas
compreensivamente, extrapolando situações para os números, percebe-se com
nitidez o crime social que ocorre sob nossos olhos, muitas vezes já banalizados
pela repetição minuto a minuto de imagens chocantes. A repetição na forma como
é realizada, sobretudo nas telas de TV, vem desempenhando o trabalho ideológico
de banalizar a tudo, de dar a tudo certo caráter de normalidade ou, o que é
também muito grave, de espetáculo.
Então,
massacres étnicos mostrados de minuto a minuto são lidos por “consumidores” como consequência normal,
banal, da crise e esta sequer é questionada. Ou são veiculados em reportagens
formatadas como espetáculo, como se
tivessem o mesmo valor de uma ficção de “Rambo” ou de outro fascista qualquer.
E a linguagem televisiva tem realmente vendido fascismo, quer quando trabalha
com a ficção, quer quando trabalha com a realidade. As estatísticas - números
frios - chegam já trabalhadas ideologicamente pelos meios de comunicação - chegam-nos esvaziadas ou, o que é pior,
cheia do fascismo tão presente nas programações da TV e das rádios.
Não se pergunta
o que significam mais de um milhão de crianças encarceradas no mundo. A
explicação já vem dada: A crise. Que crise? - Porque? . Como? Por que crianças?
Qual a dor? Qual o sofrimento? Quais as consequências? Basta ao poder dizer:
Sinto muito, é a crise. Tudo explicado? Mesmo a dor mais recôndita? Mesmo o
crime de Estado que isso representa? Sim. Porque punir aí significa ficar
impune quanto aos próprios crimes. E o poder cinicamente - porque é poder - transfere
o seu crime. Criminosos são os outros.
“O inferno são os outros”, diria
Sartre.
Que significa
um continente ( África ) perder quase ou a metade de sua população? - Que crime
tremendo a estatística encobre?
O mundo é cada
vez mais um mundo de poucos, a serviço do bem estar de poucos, mesmo que isto (
ou exatamente porisso) signifique fome, guerra, miséria, “limpezas étnicas”, doenças.
20 grupos
controlam o essencial da economia do mundo e impõem a ditadura, a fome, a
morte.
O mundo está
imerso em profunda crise. Desde os anos 70 (embora possa se recuar a 1964), as
recessões ocorrem mais amiudamente. Momentos de crescimento ( que às vezes não
chegam a ocupar toda capacidade ociosa das empresas) são logo substituídos por
períodos de recessão.
O capitalismo
intensificou o uso industrial de conquistas da ciência para sair da crise, de
forma mais massiva e mais veloz. Ampliou o comércio. Tentou ganhar mais
produtividade. Fez a especulação financeira. Mas nada disso resolveu. E a
situação descamba para um paradoxo: crise mesmo diante de momentos de expansão
econômica (porque a expansão passou a significar destruição de capacidade
produtiva, de máquinas e de produtos).
De todo
acréscimo científico-tecnológico à produção e da concorrência, resultam hoje
desemprego e superprodução. As empresas, para diminuirem custos e aumentarem
lucros, adotaram técnicas e
conhecimentos que tornam absoletos produtos e máquinas. A velocidade em adotar
novas técnicas é fundamental para as empresas, sob pena de sucumbirem na
concorrência com as mais rápidas.
Quem vê a
descrição da linha de montagem nº 4 da Fábrica Tahara ( da Toyota, Japão), pode
imaginar a “loucura”. Sobre aquela linha, William Greider diz,
dentre outras coisas: “A linha de
montagem conhecida como nº 4 assemelha-se a uma louca construção de um jogo de
Erector, com enormes e vagarosos equipamentos industriais movendo peças de um
lado para outro. estranhamente confiantes no que estavam fazendo. Um brilho
fluorescente esverdeado emanava da complexa superestrutura da linha, à medida
que elementos desconectados de um carro flutuavam silenciosamente pela
semi-escuridão. A carcaça vazia de uma carroceria azul deslizava para a frente
lá em cima, capô aberto, sem portas nem motor. Lá embaixo, seus elementos de
força, o motor e a transmissão, continuavam independentemente no chão da linha,
carregados por um veículo baixo sem condutor. Enquanto lá em cima forças
hidráulicas abaixavam a carroceria para encontrar com o chassi, o conjunto dos
controles eletrônicos do carro perfaziam uma rota paralela através do complexo,
aguardando seu momento.
“Um robô
avançava para instalar os assentos. Outro, com olhos de câmera, fixava as
portas. Um outro parafusava as rodas dianteiras. À medida que os elementos do “Lexus”
se reuniam, um enorme engenho de transporte virava os
veículos de lado, em posição mais conveniente para as operações de acabamento a
serem feitas por mãos humanas. As máquinas operavam todas os pesados
levantamentos também a maior parte do trabalho de precisão”. (Greider, William - “O Mundo na corda
Bamba”, Geração Editorial, São Paulo,
1998).
O avanço
tecnológico daquela linha de montagem permitiu à Toyota fabricar o carro “Lexus” com apenas 18,4 horas de trabalho
humano. O carro, na época, que era produzido em menor tempo era o
Continental, da Ford, em Wixom, com 34
horas de trabalho humano.
Pela descrição,
percebe-se o quanto de operários foram dispensados e a brutal corrida das
fábricas americanas para eliminar as vantagens da Toyota e não sucumbirem na
concorrência. Resultado: Novos avanços, dispensa de empregados, maior produção.
A produção de
mercadorias em quantidade maior, que a demanda exigiu, por outro lado, novas
dispensas de mão de obra. A concorrência é intensificada.
O desemprego em
massa de operários passou a ser constante não apenas em países em
desenvolvimento: Em busca de menores salários e de incentivos fiscais, várias
fábricas do “primeiro mundo” fecharam ou passara m
a produzir apenas parte de suas mercadorias. Poderosos grupos econômicos passam
a chantagear operários e suas organizações - afinal podem demonstrar como é
fácil hoje desativar uma fábrica nos Estados Unidos ou na Europa e abrir outra
em países em desenvolvimento - com mão de obra barata e com incentivos fiscais.
Com tal prática comprimem os salários e o movimento dos operários não tem como
responder à ofensiva. Oferecem os grandes grupos nos “países emergentes” fábricas e empregos, mas sempre em troca de um
movimento operário controlado, salários baixos e incentivos fiscais. O
resultado é desemprego em países avançados, crise no movimento sindical,
salários comprimidos em todos os países, perda de direitos ( inclusive previdenciários) por parte dos trabalhadores.
O mundo,
sobretudo em razão do grande número de desempregados, não amplia com a mesma
força a demanda. Mercadorias ficam sem compradores. A concorrência aguça o processo e como a lógica
é diminuir custos, mais pessoas são lançadas ao desemprego e, portanto, menor
fica o mercado consumidor.
A ampliação do
comércio mundial na década de 80 e inícios
dos anos 90 (quando muitas barreiras
foram destruídas) não foi suficiente para que a crise fosse debelada.
A expansão do
comércio foi realmente extraordinária. Em 1991 as 500 maiores multinacionais
venderam 5,2 trilhões de dólares ( em 1971 eram 721 bilhões de dólares), porém o trabalho humano investido
por aquelas diminuiu bastante.
Como nunca, o
capitalismo buscou a especulação financeira. De tal monta foi esta que títulos
e ações e moedas distanciaram-se de sua base material e foi inevitável choque
de reajustes com reflexos nas bolsas de valores de todo o mundo. Não apenas
fundos de pensão eram jogados na especulação de aplicações nas bolsas. Mas
títulos de países, moedas nacionais, etc, circulavam e circulam rapidamente. A
cada boato de dificuldades de empresas ou de países, estabelece-se o pânico.
Joga-se até mesmo na forma de ataques especulativos e os países são obrigados a
dispor de suas reservas contra os ataques e a pagarem juros elevados. A
microeletrônica permite que o movimento econômico-financeiro seja acompanhado
bem de perto. Os grandes investidores retiram seus investimentos rapidamente de
um país para outro. Podem fazê-lo de forma massiva e espantosamente rápido: Em
1989 as transações em moeda estrangeira
correspondiam a 640 bilhões de dólares ao dia, porém no início da década de 90,
aquelas transações eram da ordem de 1,2 trilhão por dia. Ora, as trocas de moedas ocorrem exatamente porque os
investidores precisam de moedas nacionais para comprarem ou venderem ações.
Porisso as transações com moedas são forte indício do movimento desenfreado. Em
1996, William Greider disse, com base estatística, que “o volume total global de títulos
financeiros publicamente comercializados (cerca de 24 trilhões) aumenta a cada
24 dias”.
A especulação
desenfreada, junto ao movimento superprodutivo, em inícios de 1996, quebrou o
México. E o capital financeiro segue desestabilizando países, destruindo
moedas. Ninguém o controla. Como explicar que as ilhas Cayman sejam a quinta
potência mundial em empréstimos bancários?
Mercado
altamente desconfiado, o mercado financeiro não corre -, risco: os
investimentos são transferidos rapidamente de um país para outro ( inclusive
investimentos com dinheiro “sujo”), ou
quando percebem possibilidades de ganhos maiores especulam contra moedas
nacionais. Pouco importam aos fundos de investimento que países inteiros se
desestabilizem, com consequentes efeitos de proliferação da miséria e da
criminalidade.
Não se pense,
no mundo em que o capital vê o globo como um espaço único, que a crise nas
bolsas de valores dos países emergentes da Ásia terminem por aumentar a
hegemonia dos EUA ou da Alemanha. Isso pode ocorrer momentaneamente, porque as
dificuldades financeiras na Ásia terminarão por impedi-la de ter um comércio
comprador mais ativo com os EUA e com a Europa, pois o Dólar ou Marco mais
caros significam dificuldade de compras. E o Japão, grande produtor e grande
especulador ( suas corretoras detêm um terço dos bônus do Tesouro dos Estados
Unidos) tendem a fazer a crise
propagar-se com maior impulso. É a lógica do mercado globalizado: Os momentos
de recessão cada vez mais estão pertos uns dos outros e cada vez mais são
sincronizados mundialmente. A especulação financeira, as quedas nas bolsas, os
desajustes macroeconômicos são apenas manifestações de uma crise muito mais
profunda - a crise do próprio capitalismo.
E não se pode
menosprezar a força da crise. Países inteiros são sucateados. Estados são
destruídos e precisam ser reconstruídos pela “comunidade internacional”, como ocorreu com o Afeganistão, a Libéria e a
Somália.
Dentre outras
coisas, sobre a Libéria, disseram técnicos do Banco Mundial:”
“De início, a
guerra na Libéria deveu-se principalmente a razões sociais e políticas, tendo
como objetivo essencial o controle do Governo Central. O financiamento externo
ajudou a desencadear a guerra. Pouco a pouco, o controle dos ricos recursos
naturais e de outras riquezas do país, além de constituirem um instrumento de
obtenção de fundos para guerra, passou a
ser um fim em si mesmo para as facções em luta.
“Essas fucções
dependem de um suprimento constante de venda gerada pela exportação de
borracha, madeira, minério de ferro, ouro e diamantes. Durante períodos de
conflito intenso, grande parte da venda é utilizada para compra de armas e
munições. Quando não há combate, cria-se um
“excedente” de renda que serve para o enriquecimento pessoal dos líderes
e para as recompensas que mantêm a lealdade dos membros da facção. Isto,
juntamente com riquezas que os membros da facção enfrentam em relação às suas
perspectivas econômicas após a guerra, gera nas fileiras inferiores fortes
pressões pela participação nas sobras. Contudo, os combatentes de baixa hierarquia
raramente recebem pagamento direto, recorrendo ao saque e à pilhagem como meio
de vida.
“Como a luta
realmente esgota o “excedente” enquanto
continuarem altas as perspectivas de enriquecimento privado, as facções ficarão
altamente motivadas a manter o equilíbrio entre situações “nem de guerra nem de paz”. Isso ajuda a explicar as dificuldades de
obtenção de paz duradoura na Libéria”
(“Relatório sobre o
Desenvolvimento Mundial”, Banco
Mundial, Washington, setembro de 1997).
O que fatos
ocorridos nos espaços da ex-Iuguslávia, Afeganistão, Libéria, Somália, Zaire,
etc, anunciam senão a presença cada vez
mais marcante da barbárie?
É isto: O
capitalismo está encaminhando o mundo para a barbárie.
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