terça-feira, 22 de maio de 2012


Cultura Regional e Identidade
21st/fev/2009 . 12:54 am 

Ruy Medeiros
Identidade, Identidade a partir de determinada cultura. Diversidade cultural como identificativo, a contrário senso da identidade.
Há coisas que voltam com outro nome. Os românticos imaginavam o espírito do povo – O volksgeist e, também falou-se no espírito do tempo – O Zeitgeist. O povo mítico, novo agente da história para alguns românticos, historiadores ou não, tem um espírito, vocês sabiam? É o povo, agente romântico da história tem um espírito, dizem os românticos, historiadores ou não. Lamartine, Jules Michelet, são historiadores de seu tempo e neles está um povo dotado de espírito próprio e, às vezes, em outros um povo com u’a missão. Os românticos poetas, inclusive Castro Alves e Taras Shevetchenko, exaltam esse povo:…. Mas que é o povo?
Procura-se o espírito do povo, que depois se transformou em outra coisa: O caráter do povo. Não mais espírito do povo, como diziam os românticos que, depois, seriam indevidamente apropriados pelo nazismo. Hermann de Faleslerben foi um deles, seu Deustchland über alles tornou-se hino do nazismo e Wagner também foi apropriado por Hitler, indevidamente, pois fala de perto o espírito do povo, agora povo-raça ariana.
Como disse, o espírito do povo tornou-se caráter do povo. Cada povinho precisava (e precisa) ter seu caráter. E, então, Paulo Prado elegeu a tristeza como marca do caráter do brasileiro. Ruy Ribeiro Couto, poeta, e Sérgio Buarque de Holanda, falam em homem cordial. Decididamente, a grande contribuição do Brasil é o homem cordial. Outros pretenderam dizer que o que marca a história de nosso povo em andamento é a conciliação, mas outros preferem dizer em transformação conservadora e outros – Como Darcy Ribeiro – falam em atualização histórica. Um país reflexo, que atualiza-se por movimentos quando lá fora já é tudo novo há algum tempo. Seria isso também caráter de nosso povo, de nossa história.
O que era espírito, virou caráter e o que era caráter virou identidade. Pode-se, no entanto, mencionar outras vertentes:
a) A Psicanálise (Freud, Lichtenstein) que, em estudo de identificação, parte da introjeção de pessoas ou objetos externos pela criança. Admitem estudiosos que é possível a permanência da personalidade diante da mudança. Isso não elimina o conflitante da identidade.
b) A identidade vista como processo localizado na cultura da comunidade e no indivíduo, em junção dessas duas identidades (Erick Erickson). Pode ocorrer a crise de identidade, representada pela perda da consciência de continuidade histórica e do senso de igualdade (1945/1968).
c) A idéia de que a sociedade de massa nivela e indiferencia e termina por exigir esforço de busca de identidade. Ocorre a ânsia de a pessoa saber quem realmente ela é (Stein e outros – Identidade e Ansiedade).
d) A partir dos anos 60 do século passado, a utilização do conceito marxista de consciência de classe e dos correlatos classe em si e classe para si, pelos movimentos étnicos, feministas, homossexuais, de jovens, etc, para deixar evidente que tais movimentos desenvolvem e precisam desenvolver autoconsciência para a intervenção política. Trata-se de uma apropriação do conceito com deslocação do foco da classe social para outro grupo dominado econômica, cultural ou socialmente (vários, movimentos da contracultura).
e) A idéia atual de que convergências não apenas políticas estão presentes no modo de vida atual. Forjando identidades e substituindo alinhamentos anteriores.
A identidade tornou-se objeto para os historiadores.
“Ok identidade, você venceu”. Agora é a sua vez. Como você é difícil. Dizem que identidade é sentimento de pertencimento. Eu pertenço ao grupo, eu sinto que pertenço ao grupo, eu me identifico com o grupo, nós temos uma identidade. De repente, mas não tão de repente, percebe-se igualdade entre o eu e outros, sente-se a identidade, mesmo que esta tenha que afirmar-se pela diferença com outros outros. Iguais tomados como homem, diferentes considerados homens. Consciência de pertencimento ao gênero homem, ou consciência de pertencimento à identidade do grupo? Ou seria consciência de pertencimento à realidade de homens divididos, portanto uma não identidade? A cisão, em si, não é identidade, é realidade.
Henri Lefebvre, em o Direito à Cidade, diz de forma otimista que “para se compreender o que se descobre, basta não se deixar cegar”. O que, em verdade, a identidade encobre? Seria ela mera representação? Seria uma alienação? Seria uma fantasmagoria?
Voltemos a um ponto: Os homens tem sentimento de pertencerem a, mas os homens são radicalmente homens. Sua identidade radical é essa: Ser homem. Quando se fala em identidade despreza-se a identidade radical, mas não se busca a origem do sentimento de pertencimento e a origem desse é exatamente a cisão entre os homens. Não há meio caminho, ou se tem consciência da radicalidade de ser homem e da cisão entre os homens, afirmando-se identidade e situação, ou se troca o ideal pelo fantasma. O Fantasma da Ópera? – Não, qualquer fantasmagoria mixuruca. Ai invés de procurar descobrir o que o sentimento de pertencimento significa, buscando o real, patina-se no fenomênico. É uma forma específica de alienação: A “identidade” que substitui a realidade concreta (situação), toma vida independente e comanda. Comanda? – Não. O processo é real. Aí esconde-se o fato de que o homem deve penetrar na sua essência profunda (hominizar-se ou mulherizar-se), na sua identidade radical, e se elege um sentimento de pertencimento etéreo, fantasmagórico, que esconde relações concretas. O homem dividido, alienado, não penetra profunda e radicalmente no ser homem/ser mulher. Ele prefere a situação, a desigualdade, portanto (rico/pobre/explorador/explorado), e disso substitui a sua real identidade (que implica igualdade radical) pelo sentimento de pertencimento a, por uma fantasmagoria. E, no entanto, há historiadores que se deliciam com isso e que transformam a identidade alienada em verdadeira categoria. Exagero do expositor? Talvez. A identidade, em certo tipo de História, não é a consciência da cisão (consciência de classe, de situação concreta do homem na história e na sociedade), mas sentimento de ser desiguais a outros desiguais, mesmo que profundamente (radicalmente) haja identidade-homem entre desiguais. Troca-se a realidade da exploração por um sentir-se igual a um grupo e não ao homem. Limita-se o horizonte do encontro do homem/mulher consigo mesmo/mesma e o faz encontrar-se em mera identidade, conformista. Não se fala como Chaplin: “Homem é que sois”. E quem será o homem/mulher? Nós ou eles? Quem detém esta identidade? Nós ou eles?
Afinal a escolha será: Ver relações reais que são fantasmagonizadas em identidades, ou ver apenas fantasmas e fazer da história o desfilar de almas do outro mundo. Pois é, baby.
Pois bem, meu amor. Agora que a coqueluche do momento é identidade, fala-se em identidade da cidade, identidade da região, brasilidade, baianidade, conquistacidade. Porque o específico tem-se que definir como identidade? Não há coisa tão igual na região-terra-relevo? Não há coisa tão igual nas cidades?
Possivelmente pensando em encontrar uma identidade na cultura regional, vocês pediram-me que lhes falasse sobre cultura regional. Cultural regional. Tenho que saber o que querem dizer com cultura. Ou bem a cultura é o que alguns chamam de modo de vida, ou bem é produto de realizações humanas: do machado de pedra (ou de outro material a que o homem dá sentido diferente da natureza) até a grande poesia de Carlos Drumond de Andrade, ou cultura será modo de vida e criações humanas. As duas coisas. É dose pra leão. Vou tentar o mínimo do mínimo.
O dinamismo interno da colônia e os projetos de governo/expansão combinam-se numa mescla difícil de ser bem equacionada: Colonos, Colonizados e Colonizadores, contraditoriamente, marcharam em direção a um grande espaço situado entre os Rios de Contas e Pardo, na parte em que as árvores grossas tinham seu limite e começava novo tipo de vegetação e novo relevo. Ou seja, aqueles agentes (não é assim que se fala hoje?) armaram-se para ocupar o Sertão da Ressaca. Uma primeira tentativa falhou. Os soldados foram acometidos de sarampo. Numa segunda tentativa, um punhado de portugueses, negros e nativos, recrutados nos sertões de Rio das Contas e Minas Novas acometem o Sertão de Ressaca, travam combates às margens do Rio de Contas, descem esse rio, bastante castigados e são salvos por jesuítas quase próximo da foz (Itacaré atual).
O certo é que voltaram algumas outras vezes. De logo, fique certo: estavam militarizados sob uma chefia. Estar militarizado significa muito: O modo de vida será marcado por uma chefia, regimentada ou não. Com regimento escrito ou apenas intuído. E por uma diferença entre comandantes e comandos, uma hierarquia. Mandar e obedecer era, portanto, um traço-realidadade marcante. Diferença entre membros dos pelotões é outro traço-realidade. A propriedade de homens sobre homens é o terceiro traço. A utilização dos nativos contra outros nativos é outra realidade. Na continuidade do processo de ocupação, João Gonçalves da Costa pedirá que se dê um título militar subalterno a um tal José Rocha a fim de que este lhe obedeça por força da hierarquia. Nativos Camacãs são arregimentados na luta contra Pataxós e Aimorés (Imborés), Homens escravizados trabalham. Então o modo de vida funda-se, para ser radical, num domínio. Este intensifica-se à medida da formação do terço de ordenança e da reação dos Camacãs e Pataxós. O domínio – que é o essencial do modo de vida então – é igualmente domínio da natureza e sua privatização. Isso vem acompanhado da formação de uma parentela que controla os postos militares e a terra (fato bem estudado pela professora Maria Aparecida Souza). A família agrega em torno de si dependentes. A monogamia não é rígida, exceto quanto às mulheres. Teia de relações nucleadas na parentela e grandemente em função da privatização da terra se estabelece firmamente. Os próprios nativos camacãs que se aliaram são, na expressão de Maximiliano de Wied-Neuvied, tiranizados. O elemento pertubador é previsível de certo modo: a reação dos nativos Pataxós e Imborés.
Esse modo de vida conduzia ao genocídio dos nativos e documentos de João Gonçalves e seus filhos indicam que sempre julgaram insuficientes os recursos que tinham para a sua defesa, pois esta era antes um ataque, e tentam frequentemente fazer ver às autoridades distantes que era interesse do Estado a Conquista do Sertão (que era de especial interesse de João Gonçalves e de sua parentela).
A sobrevivência era garantida pela agricultura grandemente indígena, pela caça e pela pesca. Embora aqui e alí tenham logo surgido arraiais, o núcleo social é a fazenda que necessarimente transforma-se em núcleo policultor. Centro territorial da família, a fazenda ideal deveria combinar criação de animais, plantio (mandioca, milho, feijão), casa de farinha e engenhoca de rapadura. A grande propriedade não significava, no entanto, fausto (João Gonçalves esteve metido em dívidas e, velho, buscou do Estado uma pensão alegando não ter como manter-se na velhice).
Gradativamente (porém com rapidez histórica) o modo de vida trazido de fora, adaptado para efeito de melhor sobrevivência em meio que o invasor tornara hostil, às vezes importava em certa regressão. Substitui outro modo de vida, após violentá-lo: Trata-se da organização indígena que é combatida à medida que se combate o próprio homem nativo, ou que é reduzida em alguns aldeiamentos com um diretor. Tudo desaparecerá.
A língua mantêm-se bem portuguesa e não se nota traço de grupos nativos da região. A religião é a católica, com ênfase na idéia do pecado e medo de a alma não salvar-se (como se vê em diversos testamentos e na preocupação de construir casa de oração e ter um Padre que confesse os crentes, os batize e sacramente a união de casais). Isso marcará muito e as festas religiosas (que serão no futuro cooptadas por mercadores), os batizados, as primeiras comunhões e as missas são elementos importantes. Também o são o presépio e as festas de Reis Magos (reisados), as juninas.
A casa é sobretudo a choupana, de início a choça, depois a casa de sopapo com mobiliário rústico e a cama de varas. A olaria para edificação demorou a chegar, apesar de vários lugares apresentarem boa argila. Garantidos estava panelas e vasos de barro (indígena ou não), a cestaria e o rústico tecido de algodão. A tabúa e o ouricuri forneciam material para a esteira, o embornal, o bocapiu, o chapéu…
A luta pela sobrevivência era muito dificultada pelas secas e pelas doenças. Remédios regionais (alguns aprendidos com os nativos) eram utilizados e mesmo enviados para fora da região e para além mar, como acontecia, dentre outros, com a Ipeca e o óleo de copaíba (este enriqueceu Rotodano (dono de armazém nos primórdios de Jequié). Armadilhas aprendidas dos nativos (arapuca, timbó, etc) ajudavam a tarefa da caça para a complementação alimentar. Quando faltava o sal marinho, extraia-se o sal do chão.
Assim era a cultura dos invasores do Sertão da Ressaca, para não alongar.
Vocabulário, costumes, relacionamentos e falar do Sertão da Ressaca estende-se até o norte de Minas Gerais.
Depois, bem, depois vêm as cidades e a expropriação da cultura popular, sua transformação em mercadoria ou seu afastamento (“o deixar de lado”) por substituição pelos objetos novos.
Mas, voltando ao tema inicial: Isso significa uma identidade própria, ou será o processo geral da sociedade brasileira em determinado ponto do território? As sobrevivências, inclusive essa forte reverência pelo passado, com os fantasmas de João Gonçalves da Costa e seus descendentes e descendentes de seus contraparentes, marca uma identidade própria? “Só o poeta saberá”, como diria Jorge de Lima. Haveria especificidades? Decididamente qualquer especificidade marcaria tão só diferenciação mínima, e essa, como dito não define identidade profunda. O modo de vida alterou fundamentalmente e não se pode buscar identidade no passado, aí está refrência do trajeto humano, se não bastasse o fato de que nossa identidade é identidade-homem/mulher = ser humano. A consciência de historicidade, em si, não é identidade.
No entanto a buscar-se a identidade nos resultantes do fazer e pensar humanos (idéias, representações, artefatos…), no limite, pode conduzir a identificar o homem com a sua alienação ou com a mercadoria.
As manifestações religiosas grandemente mantêm suas formas, mas alterou sua motivação. Vejam-se as festas de padroeira/padroeiro de ontem (reverentes), e as de hoje grandemente capturadas pelo mercado informal ou não. “Rodas” e suas cantigas foram expropriadas e transformadas em produto à medida da transformação do modo de vida. Uma coisa é vivenciar, cantar, brincar “a roda”, outra coisa é comprar o disco da Xuxa com as cantigas. Uma é vivência, a outra é mercadoria. Identificar-se com a mercadoria, com o traço da cultura, mesmo quando essa se transforma em mercadoria ou sobrevive como mercadoria? O chamariz de pássaros, feito de madeira da umburaninha, bom para a caça no período anterior, se transforma hoje em brincadeira nos lábios da menina. Com qual chamariz está nossa identidade?
Isso não significa evidentemente desprezo à história cultural – sempre necessária. Significa que é preciso repor o real na história da cultura, teorizar a cultura onde ela se situa: o concreto da vida dos homens/mulheres. A unidade na diversidade relaciona-se ao concreto.
No entanto, vale assinalar que há forte consciência de historicidade na sociedade regional. Mas essa história que transforma o genocídio em heroísmo fizeram para nós. Ela não é nossa consciência, mas a versão dos que se julgaram salvos por seus feitos e crenças. Afinal, Cazuza já dizia: “O nosso amor a gente inventa” Porque “eles” não inventaram o seu amor?
Não me levem a mal! Esqueçam tudo o que lhes disse em troca de apenas uma coisa: Certos historiadores aproximaram-se de alguns outros estudiosos e trocaram o processo real pela fantasmagoria e dela povoaram nosso universo. Decididamente nós não somos a alma de João Gonçalves da Costa. Homens é o que somos.
Muito Obrigado.
(Palestra pronunciada, em 27.05.03, na 2ª Semana de História da UESB, promovida pelos alunos desse Curso)

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