Direito de Resistência
1. Agradecimento
Agradeço-lhes a homenagem da escolha de meu
nome simutaneamente para a denominação
da turma e para a paraninfia.O gesto é mais valioso porque parte de amigos. A
homenagem de adversários, para alguns, é a
suprema homenagem. Não creio
assim, pois satisfação externa com homenagem do adversário tem indiscutível conteúdo de alienação: ou do
homenageado ou do homenageante.Alienação do homenageado que entende ter imposto
domínio sobre o outro. Alienação do homenageado, porque agiu por oportunismo ou se deixou vencer. É evidente
que aqui não se trata da madura e muito
pensada adesão a idéias que se mostram condizentes com a realidade.
Estou falando da homenagem e esta, vindo de amigos não é imposição, nem
subjugação; não é homenagem alienada. É um encontro.Por issso por mais que lhes
agradeça estarei a dever reconhecimento à simpatia de todos vocês. E ainda mais
assim é uma classe brilhante, conforme está documentado em trajetória na sala
de aula, na militância, nos estágios e nas monografias de final de curso.
2.
Explicação/Justifcação para o tema
da preleção –
Direito de Resistência.
Neste momento solene e festivo, talvez fosse mais
adequado um tema leve, romântico, bucólico e alegre. Não sei se eu saberias
sobre issso discorrer, apesar de a emotividade ser componente forte de minha
personalidade. É que vejo-me diante, segundo entendo a realidade do mundo
atual, de um tempo muito difícil e em tempos difíceis há prioridades além do
cantar das belezas das barrigas das serras e das caatingas após a chuva.
É em verdade aquele sentimento de despropósito de
que falava Bertold Brecht
em seu teatro épico, em seu
poema épico, especialmente no grande “Aos que vão nascer”:
Diante disso, não me
rendo. Encontro-me na velha angústia que opõe o feijão e o sonho.
3.
Antígona Resiste.
Todos conhecem a tragédia de Antígona,
através de Sófocles, relembrá-la
serve ao início do nosso tema e, ao mesmo tempo, é homenagem às mulheres
aqui presentes.Antígona, resistiu à ordem injusta, como aliás, outras
mulheres de hoje, que se tornaram, o centro de grupos de defesa da vida: são
elas que estão protegendo seus filhos nos morros e nas favelas da periferia, são elas que adentram
os quartéis em busca dos filhos presos
em cada batida do Estado que, só sobe ao morro vestido de farda e cujo instrumento nunca
são aqueles de produzir e de educar –
são as ferramentas da intimidação e da
morte. Elas, as mulheres, estão
hoje à frente de grupos que
reclamam os corpos desaparecidos de filhos ou parceiros, que estão na Tortura
nunca mais... Relembrando Antígona,
faço o elogio às mulheres que combatem.
Édipo, sem o saber, porque havia sido exilado, ama
sua própria mãe, Jocasta, ao retornar à sua cidade, e com essa gera os
filhos Bmene, Etéocles, e Polinice e Antígona. Em dia, Tirésias, o
adivinho, revelou a Édipo que sua amante, Jocasta, era sua mãe.
Desesperado diante da revelação do incesto,
Édipo vazou seus olhos e saiu de
Tebas.Antígona sua filha predileta e também sua irmã acompanhou o pai cego.
Édipo morreu em
Colono. Antígona retorna a Tebas onde seus irmãos Etéocles e
Polinice disputavam o trono.Polinice
foi expulso de Tebas e, em Argos, formou
uma expedição para recuperar o poder.Mas, em luta, tanto Polinice quanto
Etéocles morrem diante das portas de Tebas.Creonte, tio dos filhos de Édipo,
assume o poder, celebrou funerasi suntuosos para Etéocles, mas proibiu o sepultamento de Polinice por
julgá-lo traidor.Mas Antígona
resistiu à ordem de Creonte: pranteou o irmão e aspergiu sobre o defunto terra,
fazendo o ato sufuciente para
considerá-lo sepultado.Isso
desperta a ira do governante.Sófocles, em sua Antígona , imagina
o diálogo final entre Antígona e Creonte:
“Antígona – Não era um escravo: era igual era irmão.
Creonte –
Vinha contra a terra que o outro defendia.
Antígona –
Pouco importa: a lei da morte iguala a todos.
Creonte –
Mas não diz que o mau tenha o prêmio do justo.
Antígona –
Não será talvez piedade isso entre os mortos?
Creonte –
Embora morto, nunca é amigo um inimigo.
Antígona –
Não nasci para o ódio; apenas para o amor.
Creonte – Se
amar é o que desejas, vai amar os mortos!
Enquanto eu
viver, mulheres não governam”
(Ant.517-525).
Antígona, desobedeceu a lei/ordem do Estado
Governante..Acreditou que havia m direito maior – o direito da traição de seus
deuses e que, em nome disso, poderia opor uma resistência justa.
Aqui muitos ficarão surpresos em que, hoje, diante
da contraditória evoluçãoi do Direito, se lembre de uma história que aponta
para o gosto dos jusnaturalistas, a idéia da norma suprapositiva.
Deve-se realçar, no entanto, a simples idéias de que eu e você nos atribuímos o
direito de reagir à norma legal injusta, o direito de reagir contra a abolição
da norma legal justa.
E, assim, justificando ou negando o direito de resistência, a história caminhou.
Na idade Média, as divergências ou lutas entre a
Igreja e os Príncipes desencadeou o pensamento sobre a resistência.O Arcebispo
Hincmar distingue o rei do tirano e
freqüentemente fala sobre o poder
ilegítimo do último. Tomás de Aquino separa injustiça quanto a origem ou quanto
ao uso do poder. Um poder pode ser
originalmente injusto ou pode ser usado para finalidade injusta. Para o
poder cuja origem é injusta, Tomás de Aquino
entende que insurreição reveste-se de legitimidade, se o novo governante
não foi aceito pelos súditos. Mas se o poder teve origem justa, porém é usado
injustamente o Doutor referido da Igreja justifica a resistência passiva. E,
ainda mais se o poder agir contrariamente às leis divinas, haveria o caminho da
Insurreição.No quadro da idade Médias, a religiosidade era um dado polarizador
e imaginava-se a separação entre comandos humanos e os comandos divinos. Mas
há, ainda, na idade Média sem afastar a noção religiosa, a idéia de que o
domínio do governante se fundamenta em um pacto.Uma idéia Contratualista.
Marcegold Von Lautenbacha, em Ad Gerbhardum Líber , cap. 47, ensina: “O
povo eleva alguém acima de si para que este reine com soberania legalmente
fundada, dê a cada um o que lhe é devido, proteja os fiéis, castigue os ateus,
em suma, exerça justiça para com todos. Se, todavia, romper o contrato na base
do qual foi eleito e perturbar o que devia manter em ordem, é justo e razoável
que ele assim desvincule o povo da obrigação de lhe continuar sujeito, visto
que foi ele próprio o primeiro a faltar à fidelidade que obrigava uma parte
para com a outra” (Apud Zipelins).
Boaventura, no Século XIII, já denunciava a
precariedade do poder injusto.Também, em 1324, Marsílio de Pádua, em seu Defensor Pacis ,
defende a soberania do povo diante do príncipe e justifica a revolta e a
fiscalização contra os príncipes que se apartam da justiça e tiranizam a sociedade.
Mas tarde, Theodoro Beze defende que é lícito o
exercício da resistência, fruto da soberania popular, contra o tirano. E, no
século XVI, protestantes de diversas
nações européias falam da resistência, encontrando-se mesmo a compreensão
legítima do tiranicídio em Boucher, em 1588, e, dentre os Jesuítas, a sua
afirmação por Mariana, no ano de 1598, e Francisco Suarez admite de forma clara
a resistência organizada contra o
governante tirano, no Defensio Fidei, de
1613.
No século XVIII, é Locke quem alerta para o direito
que tem o povo à resistência, quando o soberano usurpa-lhe os direitos. E
estendia esse direito de resistir contra o Parlamento.Existiam idéias da
preexistência de direitos – os chamados direitos naturais. Outros seguem
variantes dos contratualismo para justificar o Direito de Resistência.
O Enciclopedistas incluem-se entre aqueles.
Enfim, veio
a Revolução Francesa e o art. 2º da sua
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, estatuía: Art. 2º.
“O fim de toda a associação política é a conservação
dos direitos naturais e imprescritíveis do homem.Estes direitos são a
liberdade, a propriedade, a segurança, e a resistência à oposição”.
A Constituição
Francesa de 1793, em seu art. 35 prescreve:
“Quando o Governo viola os direitos do povo, a
insurreição é, para o povo e para cada porção do povo, o mais sagrado dos
direitos e o mais indispensável dos deveres”.
O Direito de Resistência, que era algo pensado
suprapositivamente, positivou-se. Benjamim Constant (o francês precursor dos
estudos de Direito Constitucional, “inventor” do poder moderador, não o
brasileiro), entendia o Direito de Resistência como instrumento de retorno à
ordem constitucional.
A positivação do Direito de Resistência passou a
revestir-se de outro conteúdo, pois agora tratava-se de defender os “direitos
positivados”. A burguesia liberal fizera introjetar no povo, como se razão do
povo fosse, a sua própria razão. Agora, uma nova compreensão havia: Direitos
supostamente naturais foram positivados – escritos em artigos de lei – e
cumpria protegê-los para proteger a ordem burguesa. Outra evolução ocorreu com
a transformação do Direito de Resistência num direito individual.
Diferentemente daquilo que estava no art. 35º da Constituição Francesa de 1793,
que conferia o direito de resistência ao povo, a Constituição Portuguesa de
1838, em seu art. 25, o trata como direito do indivíduo:
“É livre a todo o cidadão resistir a qualquer ordem
que manifestamente violar as garantias individuais, se não estiverem suspensas”.
Também em Portugal, a Constituição de 1933, portanto
no século passado, no artigo 8º, inciso 19, consta “o direito de resistir a
quaisquer ordens que infrinjam as garantias individuais, se não estiverem
legalmente suspensas”.Como s vê, agora não se trata de resistência popular.
Nuno Rogeiro, sintetiza a conseqüência da
positivação do Direito de Resistência com as seguintes palavras:
“Quando a ordem positiva reconhece o Direito de
Resistência, não está, por esse facto, a admitir um direito à rebelião: esta é
uma revolta contra a lei e aquela uma reacção à ilegalidade, se bem que a
acessoriedade de actos violentos e a possível passagem à Resistência activa
desperte problemas análogos aos criados pelo “excesso de legítima defesa na
esfera penal”.
O Direito de Resistência, mesmo com a sua releitura
positivada, passou a ser combatido. L. Duguit, entre envergonhado e crítico,
ensina:
“O Direito de insurreição, incontestável em teoria,
é de fato desprovido de eficácia. A lei constitucional de um país não pode
reconhecê-lo sem lançar nesse país um fermento de anarquia”.
É velho temor diante do povo a construir o seu
destino.
Apesar disso, a Lei Fundamental da Alemanha em seu
art. 20, inciso 4, reconhece o direito de resistência, depois de caracterizar o
Estado Democrático:
“Não havendo outra alternativa, todos os alemães têm
o direito de resistir contra essa ordem”.
Em Portugal, a Constituição da República, de 1976,
reafirma o direito de resistir à ordem que contraria direitos, liberdades e
garantias individuais. Ambas essas Constituições, assim, pensam o Direito de
Resistência como direito individual. Ou como meio de limitação do poder
político. Mas, curiosamente, a Constituição da República Democrática Alemã, de
1968, e a Constituição Portuguesa de 1976, reconhecem o direito de insurreição
a outros povos, ou como está escrito: o “direito dos povos à insurreição”.
Esse Direito de Resistência, tão fortemente
discutido na França nos anos 50, por, dentre outros, Laubadere, Debbash e
Nizard, ainda merece, hoje, nosso olhar e nosso estudo?
Penso que sim. Digo que é um tema ainda atual que
não se alimenta apenas da memória da boa Antígona. Porém, as bases de sua
compreensão já são outras. Ainda deve-se cumprir um processo de maturação de
idéias.
É que, hoje, ao lado dos velhos processos de
retirada de direitos, por seu desrespeito ou por sua revogação, há uma forma
imperceptível de usurpação daqueles direitos que implica em mantê-los nos
textos de lei, mas em substituí-los pela lógica perversa e fria do mercado, o
mesmo em deixar a norma, mas raptar-lhe o espírito.
Assim é que, sem alterar cláusulas pétreas,
altera-se profundamente o espírito a constituição à medida que se lhe altera o
cânone, o modelo de constituição dirigente. Extenua-se a finalidade social do
Estado, retira-lhe o caráter nacional e vive-se, no Brasil e no mundo, o
fenômeno da desnacionalização da Constituição econômica. Hoje, até mesmo
cláusulas pétreas sofrem ataque. Após, por forçada interpretação, esvaziou-se o
conteúdo do Mandado de Injunção, ofende-se o direito adquirido (como
recentemente, no caso da reforma de artigos referentes à Previdência Social),
procurando-se jogo de palavras para transformar inconstitucionalidade em
constitucionalidade, sob argumento de que os destinatário da norma protetiva do
direito adquirido é o legislador ordinário, não aquele legislador com o poder
de reforma constitucional, Eles, os poderosos, encontram sempre u’a maneira de
tirar direitos legitima e duramente conquistados.
Mas há outra forma perversa do desrespeito aos
direitos: Não oferecê-los e deixar a fúria do capital transformá-los em
direitos de contratos, direitos que precisam de pagamento para serem gozados.
Quem não sabe que o direito à saúde, garantido pela
Constituição Federal, como direito social, e público subjetivo, cada vez mais é
substituído por vorazes seguradoras com seus planos (seguros) de saúde,
expoliadores e capazes de desviarem a questão da discussão do direito à saúde
para o direito de reajuste de suas prestações. Assim, por exemplo, aquilo que
deveria estar em discussão pela sociedade – o direito à saúde – passa a ser o
valor da prestação legalmente devida aos grupos financeiros que administram
tais planos. E, mesmo Estados, como é o caso do Estado da Bahia, ele mesmo
resolveu, em conúbio com uma seguradora, vender planos de saúde, descontando da
remuneração dos servidores, o valor mensal de referido plano. Aí está o caso em
que a norma garante o direito, mas o mercado avança para transformar o direito
social fundamental em direito contratual, segunda a lógica do capital. E é uma
forma que não revoga a lei.
Outro direito, o direito à segurança, previsto
constitucionalmente como direito fundamental social, passa a depender de
contrato com empresas de segurança, ou com a compra de cercas elétricas, de
equipamentos sofisticados que, a um só tempo, invadem a privacidade e
enriquecem as empresas. Aí também o direito continua previsto, mas o capital
transforma a segurança em fonte de sua reprodução.
Não custa continuar com outros exemplos: O ensino,
direito público subjetivo, de acordo com a Constituição, cada vez mais é
deixado pelo Estado ao oportunismo mercantil da iniciativa privada. Na Bahia,
como em outros lugares, vemos o sucateamento do ensino público, as vagas
insuficientes nas escolas, o uso eleitoreiro de ampliação de cursos
universitários que, uma vez criados, são lançados às mil dificuldades de todos
conhecidas. Enquanto isso, estimula-se o crédito educativo, que financiará a
expansão do ensino privado. Aí também não se revogou a lei maior – a norma
constitucional que garante a educação – mas o processo de transformá-la em
objeto de contrato é acelerado e intenso.
E a cultura? E o desporto? E o lazer? E a
Previdência Social enfraquecida, aí por reformas e pela lógica do capital, para
ser transformada em objeto de contrato-seguro de Previdência Privada.
Sob alegação de liberdade de contratar, para atender
a fúria capitalista, a legislação trabalhista é alterada e cinicamente fala-se
em sua flexibilização.
É o deus mercado. É o Estado omisso, sem compromisso
social nenhum, desmentindo exatamente aqueles que, por má-fé ou ingenuamente,
falaram e falam em Estado neutro, além dos interesses sociais.
Exatamente nesse momento cabe reaver, rediscutir e
buscar novos fundamentos para o Direito de Resistência. Ele retorna como tema
atual – para a conservação de direitos conquistados, para impedir o retrocesso
(e hoje se fala em proibição de retrocesso), e para a criação de patamares de
novos direitos que apontem para direitos novos.
Cabe, nessa, situação, o Direito de
Resistência.
Vou terminando a peroração. Aliás, em lhes peço,
neste momento difícil para a humanidade, neste momento em que vocês continuam a
caminhada intelectual, agora direcionada profissionalmente, que não digam parodiano
Drumond – E agora José? – Mas que repitam as palavras de Carlos Heitor Coni,
quando vivíamos nos tempos negros da ditadura:
“Não há medo: há um futuro e é nele
que creio”.
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