quarta-feira, 30 de maio de 2012


                                   Incêndio de Homens. Incêndio?

                                                                     Ruy Medeiros. (Digitado 03/1999)


 Volta  a imprensa a noticiar novos incêndios de mendigos. No meio de outras matérias, como se tratasse de algo banal, pura e simplesmente se diz que mendigos são assassinados.
A maneira de noticiar em si mesma já denuncia muita coisa: não é um homem, é um mendigo. Não tem nome, nem sobrenome; é um mendigo. Não se trata de assassinato, mas de incêndio.
Em verdade o ato reveste-se do caráter de  “culminância fascista” do tratamento que o homem vem merecendo por parte da sociedade. É exatamente isso: Um tratamento fascista cotidiano contra pessoas, antes seleto, hoje cada vez mais abrangente, culmina com a morte e com a forma de noticiá-la: Mais um mendigo foi incendiado.
A notícia na forma como é transmitida revela um encobrimento de caráter ideológico nitidamente fascista ( repita-se este termo terrível): Não se trata de um assassinato hediondo de um homem; trata-se de um, dois, dez  “incêndios de mendigos”.
É como se estivesse a dizer que finalmente incendiaram, como consequência natural, quem já  “não contava” para a sociedade burguesa ( e alguém conta para essa sociedade em que o valor do homem é posto em sua maior ou menor capacidade de explorar outro homem?).
O fascismo cotidiano da sociedade burguesa, cuja culminância é assassinato de pessoas indefesas, alimenta-se de mil formas.
As pessoas perdem o emprego, ou nunca o conseguem, moram na rua, vasculham lixo em busca de alimento, dormem ao relento, impõem-se-lhes condição de animal,  “animal sem dono”,  sequer sem condições de exercer o dom da liberdade porque cercado pelas grades da fome, da perseguição, das mil muralhas de ódio em que se transformaram as cidades. Assim, as pessoas, tratadas desumanamente, não são vistas como homens, mulheres, Pedro, Maria. São qualquer outra coisa, dessemelhantes; nunca iguais.
De início, não são  “consumidores”,  nem  “contribuintes”,  nem  “clientes”,  nem  “eleitores”,  nem  “alunos”,  nem  “donos”, enfim. É essa maneira de tratar as pessoas a partir de seu adjetivo, ou de seu atributo, é eficaz para não tratá-la como pessoa. É dessa forma que agem os nazistas em seus campos de concentração e nas prisões em que as cidades são transformadas. É assim também que agem os policiais violentos.
Mas adjetivos e atributos não são auto-aplicáveis. Alguém é que define que nome terá aquele  (des)semelhante.
Quando tudo isso que  “conta” para a sociedade burguesa ( ter bens, explorar gente, ser contribuinte, ter clientes, ou ser dono, etc) é complementado pela (des)assistência social dos governos, o quadro vai-se completando: Ora é a (des)assistência que consiste em  “institucionalizar” a mendicância com distribuição de  “esmolas”,  denominadas  cestas básicas; ora é a falta de toda e qualquer atitude. Já notaram a satisfação de certos burocratas da previdência social quando negam a aposentadoria de um miserável homem que sempre trabalhou, mas que nunca teve a carteira assinada pela incúria do próprio Governo?  Aí não bastam as mãos calos, nem o corpo que assumiu a forma ditada pela enxada. É preciso o documento que o burocrata sabe que não existe:  “Minha vida por um papel apodrecido pela assinatura de um sacana”:  explorador premiado pelo direito não reconhecido ao explorado, tudo para honra e glória da previdência (as)social brasileira.
Essa forma de tratar o homem. Essa idéia absurda de que  “previdência social” é um privilégio, tem muito,  é só fascismo. Sua culminância só pode ser o incêndio de homens transformados em  “alguma coisa” (tal como entende a sociedade burguesa)  chamada de  “mendigo”,  algo carburante, que começa a ser destruído com o crime continuado da exclusão social até a culminância do incêndio.
Só um idiota não percebe que estes  “incêndios” de homens são o complemento de políticas econômicas que protegem alguns poucos privilegiados, mesmo que a custa de um país inteiro. Só um bando de imbecis ou desonestos não percebe que estes jovens fascistizados que  “incendeiam”  pessoas são produto e consequência de uma sociedade em que a mercadoria dita o valor das gentes. Só os povos não entendem que políticas governamentais excludentes levam à consequência de existirem mendigos para serem incendiados. Somente esses, e os que lucram assustadoramente com a situação. Esses têm o poder de encobrimento, de transformação de conceitos, de manipulação.
Sim, detendo, como detêm, os grandes meios de comunicação, todos os que lucram com a existência da sociedade burguesa podem dizer  “incêndio de mendigos” ao invés de dizerem:  assassinatos. Podem contar o fato como algo banal e isolado, não como consequência de crimes anteriores que conduzem ao crime da exclusão e, daí, ao assassinato.
Quem pensa que está a salvo do fascismo cotidiano que tece cada vez mais a sociedade burguesa ( sob mil justificativas) deve olhar em seu redor:  Nas cidades pululam ódios, nos cárceres e nas ruas assassinatos.

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