Incêndio de Homens. Incêndio?
Ruy Medeiros. (Digitado 03/1999)
Volta a imprensa a noticiar novos incêndios de
mendigos. No meio de outras matérias, como se tratasse de algo banal, pura e
simplesmente se diz que mendigos são assassinados.
A maneira de noticiar em si mesma já denuncia muita coisa: não é um
homem, é um mendigo. Não tem nome, nem sobrenome; é um mendigo. Não se trata de
assassinato, mas de incêndio.
Em verdade o ato reveste-se do caráter de
“culminância fascista” do tratamento que o homem vem merecendo por parte
da sociedade. É exatamente isso: Um tratamento fascista cotidiano contra
pessoas, antes seleto, hoje cada vez mais abrangente, culmina com a morte e com
a forma de noticiá-la: Mais um mendigo foi incendiado.
A notícia na forma como é transmitida revela um encobrimento de caráter ideológico
nitidamente fascista ( repita-se este termo terrível): Não se trata de um
assassinato hediondo de um homem; trata-se de um, dois, dez “incêndios de mendigos”.
É como se estivesse a dizer que finalmente incendiaram, como consequência
natural, quem já “não contava” para a
sociedade burguesa ( e alguém conta para essa sociedade em que o valor do homem
é posto em sua maior ou menor capacidade de explorar outro homem?).
O fascismo cotidiano da sociedade burguesa, cuja culminância é
assassinato de pessoas indefesas, alimenta-se de mil formas.
As pessoas perdem o emprego, ou nunca o conseguem, moram na rua,
vasculham lixo em busca de alimento, dormem ao relento, impõem-se-lhes condição
de animal, “animal sem dono”, sequer sem condições de exercer o dom da
liberdade porque cercado pelas grades da fome, da perseguição, das mil muralhas
de ódio em que se transformaram as cidades. Assim, as pessoas, tratadas
desumanamente, não são vistas como homens, mulheres, Pedro, Maria. São qualquer
outra coisa, dessemelhantes; nunca iguais.
De início, não são
“consumidores”, nem “contribuintes”, nem
“clientes”, nem “eleitores”,
nem “alunos”, nem
“donos”, enfim. É essa maneira de tratar as pessoas a partir de seu
adjetivo, ou de seu atributo, é eficaz para não tratá-la como pessoa. É dessa
forma que agem os nazistas em seus campos de concentração e nas prisões em que
as cidades são transformadas. É assim também que agem os policiais violentos.
Mas adjetivos e atributos não são auto-aplicáveis. Alguém é que define
que nome terá aquele (des)semelhante.
Quando tudo isso que “conta” para
a sociedade burguesa ( ter bens, explorar gente, ser contribuinte, ter
clientes, ou ser dono, etc) é complementado pela (des)assistência social dos
governos, o quadro vai-se completando: Ora é a (des)assistência que consiste
em “institucionalizar” a mendicância com
distribuição de “esmolas”, denominadas
cestas básicas; ora é a falta de toda e qualquer atitude. Já notaram a satisfação
de certos burocratas da previdência social quando negam a aposentadoria de um
miserável homem que sempre trabalhou, mas que nunca teve a carteira assinada
pela incúria do próprio Governo? Aí não
bastam as mãos calos, nem o corpo que assumiu a forma ditada pela enxada. É
preciso o documento que o burocrata sabe que não existe: “Minha vida por um papel apodrecido pela
assinatura de um sacana”: explorador
premiado pelo direito não reconhecido ao explorado, tudo para honra e glória da
previdência (as)social brasileira.
Essa forma de tratar o homem. Essa idéia absurda de que “previdência social” é um privilégio, tem
muito, é só fascismo. Sua culminância só
pode ser o incêndio de homens transformados em
“alguma coisa” (tal como entende a sociedade burguesa) chamada de
“mendigo”, algo carburante, que
começa a ser destruído com o crime continuado da exclusão social até a
culminância do incêndio.
Só um idiota não percebe que estes
“incêndios” de homens são o complemento de políticas econômicas que protegem
alguns poucos privilegiados, mesmo que a custa de um país inteiro. Só um bando
de imbecis ou desonestos não percebe que estes jovens fascistizados que “incendeiam”
pessoas são produto e consequência de uma sociedade em que a mercadoria
dita o valor das gentes. Só os povos não entendem que políticas governamentais
excludentes levam à consequência de existirem mendigos para serem incendiados.
Somente esses, e os que lucram assustadoramente com a situação. Esses têm o
poder de encobrimento, de transformação de conceitos, de manipulação.
Sim, detendo, como detêm, os grandes meios de comunicação, todos os que
lucram com a existência da sociedade burguesa podem dizer “incêndio de mendigos” ao invés de
dizerem: assassinatos. Podem contar o
fato como algo banal e isolado, não como consequência de crimes anteriores que
conduzem ao crime da exclusão e, daí, ao assassinato.
Quem pensa que está a salvo do fascismo cotidiano que tece cada vez mais
a sociedade burguesa ( sob mil justificativas) deve olhar em seu redor: Nas cidades pululam ódios, nos cárceres e nas
ruas assassinatos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário