quarta-feira, 30 de maio de 2012


A Irrealidade Brasileira

Ruy Medeiros (Digitado, 08/1999)




                                   A irrealidade passou a ser componente da realidade brasileira. É assim. No Brasil tudo é possível. Então não vacile em acreditar que a irrealidade faz parte de nossa realidade brasílica.
                                   Um ministro, o da saúde, resolve dizer que famosa produtora-apresentadora de programa de televisão não é bom exemplo para adolescentes porque trombeteou e deu foros de normalidade à “produção independente” de uma filha. O ministro atribui à apresentadora a força de desencadear gravidez a torto e a direito (à direita e à esquerda?): “A exaltação da produção independente estimula meninas de 12, 13 anos a terem filhos”, disse o ministro dentre outras coisas.
                                   A apresentadora-produtora de programas alienados e alienantes para (e na) televisão responde ao ministro: “Olha, eu não me casei, viu? Mas eu tenho condições de criar e educar a minha filha, o que não acontece com a maioria de nosso povo. Sabe por quê? Porque ele é vítima de políticos que preferem dar entrevistas de impacto em vez de tomar decisões que melhorem a vida das pessoas”.
                                   Não pensem que o escrivinhador destas linhas está a inventar lérias (ou lereias). O fato aconteceu. O grande número de gravidez entre adolescentes – fato que se agrava – e a prostituição infantil não tem muito que ver com Dona Xuxa. A contribuição desta não é diretamente com a gravidez dos outros, mas com o reforço de condições de alienação, presente em seus programas, em alto grau. A própria apresentadora televisiva é fruto de alterações ocorridas na sociedade, no comportamento das pessoas, apresentadas de forma diferente por nossos valores. Valores morais que hoje justificam uniões consensuais e gravidez fora do casamento ampliaram-se de um círculo restrito para um ambiente maior. A aceitação disso também. A situação de desinformação, miséria, analfabetismo, alienação, etc., contribui para que pessoas que não têm condições de criar e educar seus filhos “partam para a produção independente”. Mas o fato radica numa realidade social propícia a escolhas não livres por parte dos pobres.
                                   Mas soa irreal ouvir dos lábios da loura televisiva a crítica ao ministro. É evidente que ele mereceu a resposta. É evidente também que o ministro é um dos responsáveis pela situação de miséria em que vive a população brasileira, porque participa de escolha de políticas que têm agravado os problemas sociais. Mas aquela apresentadora “vive” a crítica?  Acredita profundamente no seu teor? Sabe a conseqüência da crítica? Tudo leva a crer que não. O ritual aristocrático e nababesco com que cercou o nascimento de sua filha (e, depois, o aniversário) foi verdadeiro escárnio à maioria esmagadora das mães, num país em que muitas destas fazem parto em filas de hospitais mantidos pela pasta do ministro da saúde (direta ou indiretamente). A crítica da apresentadora teve sentido, mas não induz a que as pessoas imaginem que ela pense de acordo com a crítica que fez. Isto é, trata-se de uma irrealidade tão grande quanto a afirmativa do ministro. Também é irreal dizer que “criança” é produção. Gente não é mercadoria!
                                   A irrealidade não fica só no debate do ministro com a apresentadora; permeia grande parte dos discursos. Recentemente, um senador que cresceu à sombra do regime ditatorial e que patrocinou escandaloso auxílio a uma das maiores empresas do mundo (com dinheiro e recursos que o governo não tem para atender à  “produção independente” de mães pobres) resolveu ser paladino verbal da erradicação da miséria em solo brasileiro. Criou grande rebuceteio. Então, aquele homem que apoiou a ditadura militar (miséria desumana que aumentou a miséria social) agora é o condutor dos povos à redenção? Estranho. Tudo soa irreal. Quando aquele senador atuou politicamente em defesa da população pobre? O que Xuxa falou do ministro aplica-se bem àquele senador? Mas se o fato é irreal – no sentido de que não induz credibilidade – também irreal (fruto da falta de análise séria) é o discurso de apoio ao “discurso” senatorial do novo defensor do povo feito pelo Sr. Prof. Cristovam Buarque, presidenciável do PT. Ou o ex-reitor da UNB não acompanhou (nem conhece) a trajetória daquele senador, ou não sabe ler nas entrelinhas do “plano” de combate à pobreza ou simplesmente não tem projeto alternativo a remendos  demagógicos.
                                   Custa crer.
                                   A irrealidade campeia e agora tem textura de suspense (talvez pelos cem anos de Hitchcock). Qual o próximo lance? Qual a seqüência? Que cena imprevista virá?
                                   Mal pensa o articulista terminar sua meia página e vê e ouve e ouve e vê um senador pregar o calote da dívida interna reconhecida judicialmente (pagamento de precatórios). Ou seja: União, Estados e Municípios não devem pagar direitos reconhecidos em sentenças condenatórias já irrecorríveis. O Presidente da República, de logo, diz não ter detalhes, mas apoia a idéia a princípio.
                                   Vejam só: Trata-se de desrespeitar sentenças transitadas em julgado, na forma de execução prevista em lei (precatórios). Uma ofensa às leis que eles próprios, burgueses, criaram. Muitos destes grandes precatórios são decorrentes de condenações trabalhistas (diferenças salariais, direitos econômicos não pagos por entes públicos, etc.), inclusive pelo Estado da Bahia, o qual deve e recusa pagar vários precatórios. Chega-se à seguinte situação: Sentença contra o poder público não vale nada: Viva o calote! E o presidente (a quem a lei burguesa atribui precipuamente a defesa da Constituição) prega contra esta ao apoiar, em princípio, a proposta de um senador baiano. Proposta, aliás, conveniente ao Estado da Bahia que deve muito a seus servidores em conseqüência de sentenças que reconheceram aquele estado descumpridor de obrigações e o condenou a pagá-las.
                                   Com a palavra o Ministério Público.
                                   Não parece que se está no mundo da irrealidade? Por que não deixar de pagar a dívida externa aos banqueiros internacionais? Não iria o poder público gastar muito menos estancando a sangria de juros pagos pela dívida externa? Quem sabe não será esta a próxima seqüência do filme ficção-realidade?
                                   Tudo muito bem: Cobram-se créditos na Justiça contra o poder público. Este é condenado a pagar. Recebe precatório, feita a quantificação da sentença, diz que provisionou recursos no orçamento seguinte, não paga nunca. O jogo é um faz de conta. Para acabar com isso declara-se abertamente: Não pago! E a “Justiça” fica com cara de pau. Os burgueses rebelam-se contra suas normas?
                                   Toda essa irrealidade brasileira encaminha ideologicamente para um populismo específico, que recusa o Estado de Bem Estar Social (Welfare State), mas começa a sentir as limitações do neoliberalismo nas relações do Estado com a massa no mundo pobre. Está-se gestando em círculos burgueses um novo movimento político com vistas à inquietação social. Aqui e ali aparecerão discursos desse novo populismo de um Estado forte (“gente decidida”, lembram-se?) que tenha um plano de erradicação da pobreza. Um duce? A construção desse discurso é algo real. Infelizmente real.
                                   ( A Alfred Hitchcock, in memoriam, cujo suspense foi superado pelo suspense da violenta irrealidade brasileira mistificante, no ano de seu centenário).

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