quarta-feira, 30 de maio de 2012


LEGISLAÇÃO COMO FONTE DA HISTÓRIA
O JURISTA E O HISTORIADOR.




Ruy Medeiros(Digitado, 09/2005)




“Como poderia considerar-se honesto e sincero o historiador que ocultasse algum documento encontrado em suas pesquisas? Se tal fizesse era que não procurava lealmente a verdade, mas, desprezando-a, apenas pretendia vestir com as aparências dela o preceito que o levara à improbidade da tarefa” (Alfredo de Araújo Lopes da Costa – Direito Processual Civil Brasileiro – 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959, vol. 3, p. 193).


Lex (latim), nomos (grego), law (inglês), gesetz (alemão), lei (português), ley (espanhol), loi (francês).... A primeira questão que o tema propõe é a seguinte: A lei é fonte de direito ou fonte da História?

O operador do direito não tem dúvida de que a lei é fonte do Direito, isto é, uma das formas como o Direito manifesta-se: expressão de um dever ser. Aquele profissional opõe lei (regra, norma) a documento (meio de prova), mas pode conceder-se o direito de falar e escrever “documento legislativo” para significar lei. O objetivo do operador do direito é o de preencher de significado normativo o enunciado legal (interpretar) e aplicá-lo. Às vezes ele, no seu mister, necessita de verificar a evolução legislativa, quer para fixar sentidos, quer para verificar revogação. A lei aparece aos olhos do operador do direito como fonte, porém fonte de normatividade.

Houve momento em que o debate quanto à interpretação entre os juristas cingia-se a buscar a voluntas legislatoris (vontade do legislador) ou a voluntas legis (vontade da lei). Aqueles que buscavam encontrar na lei, para interpretá-la, a vontade do legislador entendiam ser necessário que se pesquisasse o momento histórico (“método histórico”) da elaboração da lei, ou da finalidade para a qual esta fora criada (“método teleológico”), porém sempre em busca do sentido da normatividade. Havia, em tais buscas, - é evidente – contato com a História.

Mas hoje os estudiosos do direito tendem a entender que há diferença entre o enunciado da norma e a norma propriamente dita, isto é, o enunciado devidamente interpretado. Só há norma quando o enunciado é interpretado, pois a interpretação é que preenche de conteúdos significativos o enunciado. E a hermenêutica jurídica ficou renovada. O método lógico-sistemático passou a incorporar a idéia de sistema aberto, houve surgimento da tópica, alguns postulados (princípios) interpretativos surgiram sobretudo para as especificidades da Constituição (como o método concretizante, por exemplo). Mas essa não tem sido a visão do historiador.

Para o historiador, a lei é também fonte de direito, mas é sobretudo, documento informativo. Sua interpretação como fonte encontra múltiplas possibilidades: História da Política ou do poder, História da Família, História da cidade, História da Educação, História das mentalidades, etc, etc.

A crítica do documento, inclusive do “documento legislativo” pelo historiador evoluiu de forma diferente daquela da história da hermenêutica jurídica. Com o positivismo, a crítica era o passo necessário e o historiador previamente deveria solucionar: o documento encontra-se no mesmo estado em que foi produzido? Foi danificado? Como foi fabricado? É parte de outro texto? Qual o seu texto original? É falso? É verdadeiro? (crítica externa) Que quis dizer o autor do documento? Tinha condições de dizê-lo? Acreditou naquilo que disse? Por que acreditou? (crítica interna). Com operações para utilizar o documento, o historiador positivista buscava reconstituir o fato. Sua história era a história factual. Buscava o fato, não a norma. O documento valia por si mesmo, inclusive isoladamente.

Depois os historiadores, criticando acerbamente a história na visão dos positivistas, sua visão de fontes e a forma de utilizar os documentos, evoluíram no sentido de alargar o conceito de fonte e o conceito de documento. Documentos que não eram privigeliados (inventários, testamentos, estatísticas, etc) passaram a sê-lo. No âmbito da expressão documento entraram fotografia, filme, fita magnética, etc.

A “crítica” (mais que a velha diplomática) dos historiadores modernos passa por outras considerações: O documento pertence a uma série? E qual a série anterior? Qual sua série posterior? Há coerência com documentos da mesma espécie? Qual o propósito do documento? Qual o seu sentido? Por que silenciou sobre fato? Há sentido na omissão? Há fórmulas repetidas? Por quê?

Ora, a nova “diplomática” dos historiadores não pode distinguir crítica interna de crítica externa porque ambas estão indissoluvelmente vinculadas. O documento falso tem valor para determinados usos, não é descartado, por exemplo. Ele, no contexto de uma série, tem o sentido determinado por esta. À medida que o historiador atual faz crítica interna, procede igualmente àquilo que era chamado crítica externa. O processo é uno.

Agora, o historiador não se preocupa apenas com a dimensão do fato (este mesmo passa a ter outro tratamento), mas com processo, mentalidade, cultura, identidade, relações étnicas, gênero, estado civil, classes, economia, poder, longa duração, etc, etc.

A superação do positivismo, a ampliação do conceito de documento (documento/monumento) e o surgimento de novos objetos da História terminaram por exigir do historiador novos métodos. Mas seu objetivo é outro, não é o objetivo normativo do jurista. Sua crítica documental é diferente da crítica do jurista, assim como seu método e, evidentemente, seu objeto (desnecessário dizer).

É evidente que o diálogo entre ambos é possível e necessário, mesmo que a hermenêutica e o objetivo sejam diferentes.

Não resta dúvida de que a lei (conjunto de enunciados dos quais se extrai norma) é fonte da história: documento-monumento. Seu uso merece os cuidados da hermenêutica documental. Embora não se possa falar da hierarquia documental, o texto de lei adquire importância muito grande face a alguns objetos da História. Veja-se a História do Estado, por exemplo.

Cumpre, portanto, além do rigor que a Ciência da História alcançou no trato com os documentos, certos cuidados em não transformar a História da Educação numa História da Legislação Educacional ou percebê-la apenas em função das forças materiais e ideológicas (inclusive doutrinas pedagógicas) motivadoras do aparecimento da lei.

A lei é um dado essencial da realidade, inclusive da realidade histórico-educacional.

Não se pode, como claramente aparece em certos textos, confundir a lei existente com a realidade. Também, a título de “protesto contra o passado”, negar a eficácia da Lei para moldar relações. Já houve historiador que afirmasse que a Lei de 15 de outubro de 1827 não foi aplicada. Ora, não foi integralmente aplicada e em algumas vilas, no rastro dessa lei, surgiram escolas para meninos, e são erros de quem não faz pesquisa em arquivos, ou daqueles que se apressam a afirmar ou a negar, confundir níveis e espaços de eficácia.

A linguagem da lei exige colaboração entre juristas e historiadores. Como o jurista, sem auxílio da pedagogia, iria entender a expressão ensino mútuo que há na Lei de 15 de outubro de 1827? (Art. 4º. As escolas serão de ensino mútuo nas capitais das províncias; e o serão também nas cidades, villas e logares populosos dellas, em que for possível estabelecerem-se). Trata-se no caso (ensino mútuo) do “Método de Lancaster”. Como o historiador da educação ou o pedagogo historiador iria entender a expressão “exercício consciente da cidadania” que há na Lei 5.692, de 11 de agosto de 1971? (Art. 1º. O ensino de primeiro e segundo graus tem por objetivo geral proporcionar ao educando a formação necessária ao desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de auto-realização, qualificação para o trabalho e preparo para o exercício consciente da cidadania). O historiador ficaria atônito com o fato de a ditadura militar ser tão cínica a ponto de dizer o que hoje muitos democratas dizem: Educação para a cidadania. Mas o jurista iria evidenciar que cidadania é princípio e que estes são lidos de forma aberta e atualizável em cada momento. Para a fixação do sentido de princípios desenvolve-se pugna interpretativa entre operadores e a ideologia penetra necessariamente o debate.

O diálogo entre operadores do Direito e Historiadores da Educação é algo necessário – quando se trata de utilizar documentos normativos como fonte da História. Ninguém de bom senso e rigor, ao escrever, por exemplo, a História da Educação no Brasil, pode deixar de utilizar crítica e contextualmente as leis nacionais e estaduais. Mas se é certo que para entender expressões como método de ensino mútuo, ensino técnico, ensino científico, jubilamento, pré-requisito de disciplina, núcleo comum, aceleração, educação sistemática, educação seriada, ciclo, etc, o jurista necessita do pedagogo ou do historiador da educação, estes necessitarão do jurista para entender significado de diretrizes legais, normas gerais, preceitos, regras, princípios, normas cogentes, validade, eficácia, competência legislativa, etc. Nenhum saber é isolado, muito menos os saberes do pedagogo e do jurista, especialmente em História da Educação e Direito Educacional.

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