LEGISLAÇÃO COMO FONTE DA HISTÓRIA
O JURISTA E O HISTORIADOR.
Ruy Medeiros(Digitado, 09/2005)
“Como
poderia considerar-se honesto e sincero o historiador que ocultasse algum
documento encontrado em suas pesquisas? Se tal fizesse era que não procurava
lealmente a verdade, mas, desprezando-a, apenas pretendia vestir com as
aparências dela o preceito que o levara à improbidade da tarefa” (Alfredo
de Araújo Lopes da Costa – Direito Processual Civil Brasileiro – 2ª ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1959, vol. 3, p. 193).
Lex (latim), nomos (grego), law (inglês), gesetz
(alemão), lei (português), ley (espanhol), loi (francês).... A primeira questão
que o tema propõe é a seguinte: A lei é fonte de direito ou fonte da História?
O operador do direito não tem dúvida de que a lei é
fonte do Direito, isto é, uma das formas como o Direito manifesta-se: expressão
de um dever ser. Aquele profissional opõe lei (regra, norma) a documento (meio
de prova), mas pode conceder-se o direito de falar e escrever “documento
legislativo” para significar lei. O objetivo do operador do direito é o de
preencher de significado normativo o enunciado legal (interpretar) e aplicá-lo.
Às vezes ele, no seu mister, necessita de verificar a evolução legislativa,
quer para fixar sentidos, quer para verificar revogação. A lei aparece aos
olhos do operador do direito como fonte, porém fonte de normatividade.
Houve momento em que o debate quanto à
interpretação entre os juristas cingia-se a buscar a voluntas legislatoris
(vontade do legislador) ou a voluntas legis (vontade da lei). Aqueles que
buscavam encontrar na lei, para interpretá-la, a vontade do legislador
entendiam ser necessário que se pesquisasse o momento histórico (“método
histórico”) da elaboração da lei, ou da finalidade para a qual esta fora criada
(“método teleológico”), porém sempre em busca do sentido da normatividade.
Havia, em tais buscas, - é evidente – contato com a História.
Mas hoje os estudiosos do direito tendem a entender
que há diferença entre o enunciado da norma e a norma propriamente dita, isto
é, o enunciado devidamente interpretado. Só há norma quando o enunciado é
interpretado, pois a interpretação é que preenche de conteúdos significativos o
enunciado. E a hermenêutica jurídica ficou renovada. O método
lógico-sistemático passou a incorporar a idéia de sistema aberto, houve
surgimento da tópica, alguns postulados (princípios) interpretativos surgiram
sobretudo para as especificidades da Constituição (como o método concretizante,
por exemplo). Mas essa não tem sido a visão do historiador.
Para o historiador, a lei é também fonte de
direito, mas é sobretudo, documento informativo. Sua interpretação como fonte
encontra múltiplas possibilidades: História da Política ou do poder, História
da Família, História da cidade, História da Educação, História das
mentalidades, etc, etc.
A crítica do documento, inclusive do “documento
legislativo” pelo historiador evoluiu de forma diferente daquela da história da
hermenêutica jurídica. Com o positivismo, a crítica era o passo necessário e o
historiador previamente deveria solucionar: o documento encontra-se no mesmo
estado em que foi produzido? Foi danificado? Como foi fabricado? É parte de
outro texto? Qual o seu texto original? É falso? É verdadeiro? (crítica
externa) Que quis dizer o autor do documento? Tinha condições de dizê-lo?
Acreditou naquilo que disse? Por que acreditou? (crítica interna). Com
operações para utilizar o documento, o historiador positivista buscava
reconstituir o fato. Sua história era a história factual. Buscava o fato, não a
norma. O documento valia por si mesmo, inclusive isoladamente.
Depois os historiadores, criticando acerbamente a
história na visão dos positivistas, sua visão de fontes e a forma de utilizar
os documentos, evoluíram no sentido de alargar o conceito de fonte e o conceito
de documento. Documentos que não eram privigeliados (inventários, testamentos,
estatísticas, etc) passara m a sê-lo.
No âmbito da expressão documento entraram fotografia, filme, fita magnética,
etc.
A “crítica” (mais que a velha diplomática) dos
historiadores modernos passa por outras considerações: O documento pertence a
uma série? E qual a série anterior? Qual sua série posterior? Há coerência com
documentos da mesma espécie? Qual o propósito do documento? Qual o seu sentido?
Por que silenciou sobre fato? Há sentido na omissão? Há fórmulas repetidas? Por
quê?
Ora, a
nova “diplomática” dos historiadores não pode distinguir
crítica interna de crítica externa porque ambas estão indissoluvelmente
vinculadas. O documento falso tem valor para determinados usos, não é
descartado, por exemplo. Ele, no contexto de uma série, tem o sentido
determinado por esta. À medida que o historiador atual faz crítica interna,
procede igualmente àquilo que era chamado crítica externa. O processo é uno.
Agora, o historiador não se preocupa apenas com a
dimensão do fato (este mesmo passa a ter outro tratamento), mas com processo,
mentalidade, cultura, identidade, relações étnicas, gênero, estado civil,
classes, economia, poder, longa duração, etc, etc.
A superação do positivismo, a ampliação do conceito
de documento (documento/monumento) e o surgimento de novos objetos da História
terminaram por exigir do historiador novos métodos. Mas seu objetivo é outro,
não é o objetivo normativo do jurista. Sua crítica documental é diferente da
crítica do jurista, assim como seu método e, evidentemente, seu objeto
(desnecessário dizer).
É evidente que o diálogo entre ambos é possível e
necessário, mesmo que a hermenêutica e o objetivo sejam diferentes.
Não resta dúvida de que a lei (conjunto de
enunciados dos quais se extrai norma) é fonte da história: documento-monumento.
Seu uso merece os cuidados da hermenêutica documental. Embora não se possa
falar da hierarquia documental, o texto de lei adquire importância muito grande
face a alguns objetos da História. Veja-se a História do Estado, por exemplo.
Cumpre, portanto, além do rigor que a Ciência da
História alcançou no trato com os documentos, certos cuidados em não
transformar a História da Educação numa História da Legislação Educacional ou
percebê-la apenas em função das forças materiais e ideológicas (inclusive
doutrinas pedagógicas) motivadoras do aparecimento da lei.
A lei é um dado essencial da realidade, inclusive
da realidade histórico-educacional.
Não se pode, como claramente aparece em certos
textos, confundir a lei existente com a realidade. Também, a título de
“protesto contra o passado”, negar a eficácia da Lei para moldar relações. Já
houve historiador que afirmasse que a Lei de 15 de outubro de 1827 não foi aplicada.
Ora, não foi integralmente aplicada e em algumas vilas, no rastro dessa
lei, surgiram escolas para meninos, e são erros de quem não faz pesquisa em
arquivos, ou daqueles que se apressam a afirmar ou a negar, confundir níveis e
espaços de eficácia.
A linguagem da lei exige colaboração entre juristas
e historiadores. Como o jurista, sem auxílio da pedagogia, iria entender a
expressão ensino mútuo que há na Lei de 15 de outubro de 1827? (Art. 4º.
As escolas serão de ensino mútuo nas capitais das províncias; e o serão também
nas cidades, villas e logares populosos dellas, em que for possível
estabelecerem-se). Trata-se no caso (ensino mútuo) do “Método de Lancaster”.
Como o historiador da educação ou o pedagogo historiador iria entender a
expressão “exercício consciente da cidadania” que há na Lei 5.692, de 11 de
agosto de 1971? (Art. 1º. O ensino de primeiro e segundo graus tem por objetivo
geral proporcionar ao educando a formação necessária ao desenvolvimento de suas
potencialidades como elemento de auto-realização, qualificação para o trabalho
e preparo para o exercício consciente da cidadania). O historiador ficaria
atônito com o fato de a ditadura militar ser tão cínica a ponto de dizer o que
hoje muitos democratas dizem: Educação para a cidadania. Mas o jurista iria
evidenciar que cidadania é princípio e que estes são lidos de forma
aberta e atualizável em cada momento. Para a fixação do sentido de princípios
desenvolve-se pugna interpretativa entre operadores e a ideologia penetra
necessariamente o debate.
O diálogo entre operadores do Direito e
Historiadores da Educação é algo necessário – quando se trata de utilizar
documentos normativos como fonte da História. Ninguém de bom senso e rigor, ao
escrever, por exemplo, a História da Educação no Brasil, pode deixar de
utilizar crítica e contextualmente as leis nacionais e estaduais. Mas se é
certo que para entender expressões como método de ensino mútuo, ensino técnico,
ensino científico, jubilamento, pré-requisito de disciplina, núcleo comum,
aceleração, educação sistemática, educação seriada, ciclo, etc, o jurista
necessita do pedagogo ou do historiador da educação, estes necessitarão do
jurista para entender significado de diretrizes legais, normas gerais,
preceitos, regras, princípios, normas cogentes, validade, eficácia, competência
legislativa, etc. Nenhum saber é isolado, muito menos os saberes do pedagogo e
do jurista, especialmente em História da Educação e Direito Educacional.
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