“Triste Baía, ó quão dessemelhante”...
(Ruy Medeiros) (Digitado, 07/1999)
Um dia, Gregório de Matos, poeta, debruçou
sobre a Bahia e lamentou sua sorte. Achou-a diferente de sua antiga
situação: “triste Baía, ó quão
dessemelhante. / estou, estás/ de nosso antigo estado”...
Ora,
o passado não era bom, mas ao poeta parecia melhor que o presente: “Pobre te vejo/ e tu a mim (vês)
empenhado”...
Triste
Bahia ( prá que “h”?), pode-se repetir,
sem o saudosismo do poeta: triste Bahia. Deve-se repetir, sobretudo diante da doença
que contagia nossa terra.
Um
sintoma profundo daquele mal ocorreu no último desfile do 2 de Julho, data
considerada nos velhos livros de
“História da Bahia” magna da Província, depois Estado e hoje fazenda, e
assim repetida em ordens do dia, discursos oficiais, oficiosos, acadêmicos,
estudantis: data Magna.
Ao
que interessa:
Como
na época do terror da ditadura militar, a polícia militar foi jogada
(jogou-se?) brutalmente contra os adversários dos detentores do poder.
Empurrões, safanões, murros, cacetadas, cativeiro em um posto de gasolina até
que os mandões do pobre estado já estivessem distantes e não pudessem ouvir os
desagradáveis sons e tons da divergência. A coisa foi tão séria que o
arqui-conservador editorialista do jornal mais influente da Bahia pediu
desculpas às vítimas, pela população. Caso inédito, segundo a lembrança ( que
pode haver falhado).
Livres
de tons e sons destoantes do ufanismo oficial, as autoridades continuaram
seguindo o cortejo. Não podiam ser incomodadas. Estão acima do bem e do mal,
orgulhosos de serem baianos.
Quem
já acompanhou o desfile do 2 de Julho sabe o que esse tem significado
ultimamente (sem falar na “adoração aos
cablocos”): É um espaço em que as pessoas manifestam-se politicamente. Antes,
as autoridades confinavam-se no palanque; desde há algum tempo, no entanto,
resolveram acompanhar o cortejo, que é longo: de Santo Antonio ao Campo Grande.
Repetem-se, no desfile, críticas ao Governo, a atos, a políticos e a instituições. “Volantes” são distribuídos. Afinal, o 2 de Julho
atrai muita gente às ruas.
É
mesmo impressionante como o festejo-desfile continua, inclusive com forte
participação popular. O imaginário baiano está impregnado do 2 de Julho. Muitos
entendem as alegorias. Muitos (muitos mesmo!) sabem que aqueles vaqueiros
montados representam o batalhão do rico padre Brayner: são os encourados do
Pedrão, grupo formado e custeado pelo padre para a luta da independência (?)
do Brasil na Bahia.
No
último 2 de julho veio o fato terrível: A repressão brutal, absurda,
prepotente, ditatorial, autoritária contra oposicionistas (aliás uma oposição
moderada, domesticada, como tem sido certa oposição, mas cuja característica não
impede a solidariedade, diante da agressão de que fora vítima).
A
agressão sofrida por adversários que também queriam participar do desfile, é um
dos sintomas da doença que se abate sobre a Bahia.
Na
Bahia, vive-se momento em que o Estado é como uma fazenda, tem seus feitores.
Vigora obediência cega a um homem, cujos correligionários o endeusam e o tratam
com total subserviência. Seus partidos (porque são vários os grupelhos
auto-intitulados pomposamente de partidos) tratam-no como se fosse “o”, e
não “um”, dentre vários, com a reverência de camponês
alienado ao beato-santo. Esse culto à personalidade encobre ou eleva tudo, a
depender da conveniência: Quando não se atribui ao chefe o que de positivo (?)
acontece, manipula-se o negativo manipulável. O pior é que os sequazes tudo
promovem para agradá-lo, para exaltá-lo, para expô-lo triunfante nos espaços
publicitários (mídia?), ad majorem dei gloriam...
No
entanto, escondem-se vergonha e fracasso: Um Estado com índices de
analfabetismo de 4º mundo; um Estado que paga salário base inferior ao valor de
dois salários mínimos a seus médicos; um Estado que paga a seus professores
universitários um salário vergonhoso; um Estado cuja capital é campeã de
desemprego; um Estado miserável cujos governantes trombeteiam que fizeram
o “dever de casa”(quem será o
professor?). Um Estado, enfim, que apresenta como vitória o fato de conceder
vantagens (que não concede a sua própria população) para u`a multinacional vir explorar mão-de-obra
barata, ganhar rios de dinheiro, numa vergonhosa prática de privatização de
recursos públicos.
Ora,
escamoteando e encobrindo a realidade, endeusando o chefe e o colocando como
superior, é evidente que tudo o mais é segundo plano para as autoridades:
democracia, respeito às divergência, liberdade, direitos individuais...Basta,
para o tipo de política que os poderosos exercitam na Bahia, exaltar o chefe, não
deixar que o incomodem.
Uma
doença profunda adoece e animaliza a Bahia: a subserviência. Há muita gente
mais realista que o rei. Deve haver mesmo aqueles que, para agradarem o chefe,
terminam por criarem problemas (certamente deve haver aqueles que, nessas
circunstâncias, tentando advinhar-lhe os segredos, terminam fazendo bobagem).
Triste
Baía, ó quão dessemelhante... Voltarás a ser uma Capitania Hereditária?
O
articulista fica a imaginar aquele distante cortejo do 2 de julho de 1823, que
percorreu a cidade do Salvador, capital da Província, após a rendição das forças
portuguesas: Naquele momento, os vitoriosos permitiram que o povo seguisse o
cortejo, porque o próprio povo sentia-se vitorioso (não sabia o que viria
depois).
As
crônicas falam das forças que, mal arrumadas embora, entraram na cidade.
Dessas, as últimas foram soldados famintos e andrajosos, geralmente do sertão
baiano, organizados no exército da esquerda (porque ficara aquartelado à
esquerda de Salvador), inclusive uma
campanhia de soldados improvisados da Aldeia da Conquista (hoje Vitória da
Conquista). Aqueles andrajosos penetraram na cidade e foram ovacionados pela
população soteropolitana. Fosse hoje, seriam escorraçados para que não fosse
exposta a miséria das faces encalavradas
e das vestes sujas e rasgadas, puramente andrajos. Hoje, cumpriria
afastar a denúncia das próprias vestes rotas para que não empanassem (nem
fossem comparados a) o brilho de um par de “tênis” triunfante insistentemente exibido no
ecran dos televisores. Triste Baía, ó quão dessemelhante!
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