Em palpos de aranha
A
administração pública municipal de Vitória da Conquista encontra-se em palpos
de aranha.
Quando
candidato a Prefeito Municipal, o atual gestor prometeu aos condutores de Vans
que iria regularizar o serviço que realizavam sem qualquer cobertura legal.
Passava a impressão que, assumindo a chefia da gestão pública, logo daria a
todos aqueles condutores a possibilidade de continuarem o transporte público de
passageiros legalmente e sem transtornos.
É
provável que o candidato, hoje chefe do poder executivo local, soubesse que a
coisa não podia dar-se por artes de berliques e berloques, pois se espera de
qualquer candidato de um município importante que realmente conheça os desafios
da administração pública e as limitações que a lei impõe ao trato da coisa
pública. Apostou na promessa fácil e no voto dos interessados.
Hoje,
é bem difícil que desconheça outros aspectos necessários à prestação do serviço
público de transporte de passageiros. Afinal de contas, possui um bom corpo de
procuradores jurídicos. Mas, mesmo tendo sido alertado (é o mínimo que se
espera dos procuradores, alertar), e conhecendo a capacidade dos procuradores
acredito que se manifestaram sobre o assunto, mas a administração continua
dando passos e declarações de que oficializará o transporte coletivo de
passageiros feitos pelos veículos tipos vans, hoje existente.
Os
condutores daqueles veículos que fazem o transporte coletivo, incentivados pela
administração municipal, distribuíram linhas, numeraram seus veículos,
uniformizaram a pintura desses, ocupam uma garagem e vestem fardamento de
trabalho uniformizado, tudo como se fossem verazes concessionários. Tudo às
claras.
Recentemente,
em programa da rádio, o chefe do executivo municipal, declarou que já está
providenciando estacionamento para as vans. Disso e de outras manifestações
existem gravações. Dá a coisa como decidida.
Sem
entrar no mérito se o serviço de transporte por vans é bom ou ruim, é
necessário que, com a devida sobriedade, a questão seja discutida à luz do
ordenamento jurídico, isto é, sob o prisma da constitucionalidade / legalidade.
A
Constituição Federal, quando trata da competência material dos Municípios, diz:
Art.
30. Compete aos Municípios:
(...)
V
– Organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os
serviços públicos de interesse local, incluindo o de transporte coletivo que
tem caráter essencial.
Considerando
que nada está a justificar permissão (não há qualquer situação de emergência ou
colapso do serviço), para que seja colocado em prática (organizar e prestar,
diz a Constituição) o serviço do transporte coletivo de passageiros será necessário
que haja lei prevendo-o e que os serviços sejam prestados diretamente pelo município
ou mediante concessão, ou permissão antecedidas de licitação. Existe uma
constitucionalidade/legalidade que deve ser observada e cuja não observância
traz sérias consequências ao administrador público. Não pode ser negada
vigência ao art. 175 da Constituição da República: Art. 175. Incumbe ao Poder
Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão,
sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
As
diversas linhas de transporte coletivo urbano / suburbano de passageiros já
foram licitadas e duas empresas de ônibus tornaram-se concessionárias do
serviço. Só elas, legalmente, encontram-se autorizadas, por que venceram
concorrência pública e são legalmente concessionárias, a realizar o transporte
coletivo.
Quando
se incentiva, promete, permite oralmente, informalmente, o transporte coletivo
de passageiros, diante da existência de empresas que o executam, sob concessão,
e que inclusive pagaram outorga, descumpre-se contrato de concessão,
desequilibra-se projeção de ganho, quebra-se o equilíbrio de despesa/receita,
deixa-se desprotegido o passageiro quanto a alguns de seus direitos (passe
livre para quem a esse tem direito, sistema de reclamação, responsabilidade
objetiva do condutor, são exemplos), o modelo de culpa por danos a terceiros
deixa de ser objetivo, etc. Mas, sobretudo, descumpre-se constituição e lei
(inclusive lei municipal). Uma das empresas ajuizou ação de obrigação de fazer
(processo nº 0500354-48.2016.8.05.0274), que mereceu liminar que proíbe o
transporte de Vans.
A
situação, nesse ponto, adquire gravidade maior: a consequência punitiva
prevista na lei de improbidade administrativa (LGIA), ou Lei nº 8.429, de
02.06.92, e a pena prevista no Código Penal, por usurpação de função pública
(neste último caso, quanto aos transportadores).
Realmente,
a Lei nº 8.429/92 tipifica como ato de improbidade administrativa os que
atentam contra a legalidade ou os princípios da administração pública. A
consequência do descumprimento da Constituição, da lei e dos princípios da
administração (improbidade) pelo gestor público ou servidores é grave: “Os atos
de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a
perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao
erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal
cabível” (Constituição da República Federativa do Brasil, art. 37, § 4º). E, na
LGIA: Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao
erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda
patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou
haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:
(...)
VIII – frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo
indevidamente.
A
Omissão também pode caracterizar a improbidade, como deixa claro o caput do
art. 10, citado, da LGIA.
O
Código Penal, por sua vez, tipifica o crime de Usurpação de Função Pública:
Art.
328. Usurpar o exercício de função publica:
Pena
– detenção de 3 (três) meses a 2 (dois) anos e multa.
Parágrafo
único. Se do fato o agente aufere vantagem:
Pena
– reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa.
Assim,
não apenas o administrador é atingido.
Há
decisões de tribunais que entendem que o transporte coletivo irregular de
passageiros caracteriza o crime de usurpação de função pública. A pena para o
crime de usurpação de função pública está bem clara. Quanto à improbidade a
pena será “ressarcimento integral do dano, perda dos bens ou valores acrescidos
ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância, perda da função
pública, suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos, pagamento de
multa civil de até duas vezes o valor do dano e proibição de contratar com o
poder público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios”
(...).
A
administração municipal sabe que é ilegal permitir, incentivar e dar guarida à
situação, sabe que há leis que obrigam a submissão de concessão ou permissão à
devida licitação, sabe que há decisão judicial liminar proibindo referido tipo
de transporte. Pressionado por cobrança de promessa, a administração municipal
persiste na prática administrativamente irregular. Não pode atribuir a outrem
seus apuros causados por promessa cujo cumprimento muito provavelmente tinha
conhecimento que não podia realizar. Há inúmeras apreensões anteriores de Vans
no transporte não concedido.
A
administração pública municipal tem conhecimento de que, em provimento de
tutela provisória, em ação de obrigação de não fazer, (processo nº
0500354-48.2016.8.05.0274), um grupo grande de transportadores de passageiros
está impedido de realizar o serviço. As empresas concessionárias do serviço de
transporte de passageiros, por ônibus, em Vitória da Conquista, submeteram-se a
processo de concorrência pública, na forma da lei federal nº 8.987/1995, e
legislação municipal, pagaram outorga, e têm o direito de explorar o serviço
sem a concorrência das Vans.
É
isso tudo que coloca a administração municipal em palpos de aranha.
Com
a palavra o Ministério Público.
The Rock (1996)